06/06/2016

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Marcelo Alves

 

O Código de Hamurábi


Na semana passada, como alguns de vocês vão se lembrar, conversamos aqui sobre o Código de Ur-Nammu, que, datando de aproximadamente 2040 a.C. (época do denominado “Novo Império Sumério” na Mesopotâmia), é comumente apontado como o mais antigo “código de leis” de que temos notícia ou, pelo menos, o mais antigo que chegou até nós. 

No artigo de hoje, damos um salto de quase três séculos na história, para o entorno do ano 1772 a. C., com o objetivo de tratarmos do (bem mais) badalado Código de Hamurábi, aquele do “olho por olho, dente por dente” e exemplo mais conhecido da “lei de talião”, que também é fruto do esplendor político/cultural da Mesopotâmia antiga, desta feita, mais especificamente, do chamado “Primeiro Império Babilônico” (ou “Império Paleobabilônico”). 

O rei Hamurábi (1810-1750 a.C.) subiu ao trono do Império Babilônico, sucedendo ao pai, em 1792 a.C.. Era um período de relativa paz, no qual Hamurábi pôde dedicar-se ao desenvolvimento interno do seu reino (com a fortificação das muralhas da sua cidade, construção e expansão de templos, controle das cheias na região etc.). Já as décadas de 1760 e 1750 a.C. foram marcadas por sucessivas e vitoriosas guerras com os povos vizinhos, o que fez da Babilônia, no período Hamurábi (cujo reinado vai até 1750 a.C., ano de sua morte), indiscutivelmente, senhora de quase toda Mesopotâmia. Mas, certamente, o principal legado de desse grande rei para as civilizações futuras reside no “código de leis” que ele promulgou para a Babilônia durante o seu reinado, por volta de 1772 a.C., e que leva o seu nome. 

Como artefato arqueológico, o Código de Hamurábi chegou até nós em um belo monólito de pedra de diorito, achado por uma expedição francesa que, na virada dos anos 1901-1902, realizava escavações na Acrópole da cidade de Susa, no atual Irã. Pelo que sei, essa “pedra”, mais que preciosa, encontra-se hoje no museu do Louvre, à disposição de especialistas e curiosos de ocasião. 

Composto no alfabeto cuneiforme e na língua acadiana, o Código de Hamurábi contém 282 disposições (ou artigos, para usar de um termo jurídico mais compreensível), organizadas, segundo informa Michael H. Roffer (em “The Law Book: from Hammurabi to the International Criminal Court, 250 Milestones in the History of Law”, Sterling Publishng Co., 2015), por temática: processo, propriedade, direito de família, danos pessoais, forças armadas e por aí vai. 

Devotadas em grande medida ao direito penal da época, com suas gravíssimas punições retributivas – a exemplo da “lex talionis” do “olho por olho, dente por dente” –, mas que podiam variar a depender dos status social do ofensor e da vítima, muitas das disposições do Código de Hamurábi certamente nos parecerão hoje fora de propósito (muito embora, aqui e acolá, partidários da pena de morte ainda as invoquem como justificativas de suas controversas opiniões), mas, à época, o Código firmou um importante precedente para legislações futuras. 

De toda sorte, para além da retórica declaração de propósitos contida em seu prólogo, de que “o forte não deve oprimir o fraco e de que a justiça deve ser proporcionada ao órfão e à viúva”, o Código de Hamurábi contém também, como registra Robert Hockett (em “Little Book of Big Ideas – Law”, A & C Black Publishers Ltd., 2009), alguns elementos bem progressistas para a época, que hoje são repetidos nas codificações/leis contemporâneas, entre eles, por exemplo, o direito do acusado de produzir, em um processo criminal, prova a seu favor. 

Interessantemente, o Código de Hamurábi também firmou um reconhecido precedente para as concepções, desenvolvidas posteriormente, da “rule of law” e do jusnaturalismo. Quanto aos direitos naturais, por exemplo, consta no monólito de pedra acondicionado no Louvre, logo acima das disposições do código propriamente ditas, a imagem de Hamurábi recebendo a “lei” de Shamash, o deus da justiça babilônico, para que ela (a lei) fosse promulgada para o seu povo. E isso é visto, conforme nota o já citado Robert Hockett (em “Little Book of Big Ideas – Law”), como uma primeva afirmação da existência de um direito/autoridade superior ao direito positivado, estabelecendo uma boa base para concepções futuras do direito natural. 

Bom, caro leitor, que tal uma estada no Louvre para estudar pessoalmente o Código de Hamurábi? Isso, claro, se você, além de possuir euros para tanto, for um daqueles muitos nordestinos que leem acadiano fluentemente... 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

31/05/2016


 
Marcelo Alves  

O mais antigo código

No nosso artigo hoje e em alguns outros que se seguirão, conversaremos sobre uma temática que, por passar ao largo das tecnicalidades da ciência jurídica propriamente dita, assim como por sua interdisciplinariedade, vai interessar a muitos leitores (pelo menos assim espero), tenham eles formação jurídica ou não: a “história do direito”.

E nesse afã de reconstruir aqui um pouco da história do direito, começaremos tratando daquele que é por muitos apontado como o mais antigo “código de leis” de que temos notícia (pelo menos o mais antigo que chegou até nós), o Código de Ur-Nammu, que data de cerca de 2040 a.C.

Espacialmente, ao tratarmos existência/vigência do Código de Ur-Nammu, estamos falando da Mesopotâmia, a famosa região do Oriente Médio, delimitada pelos vales dos rios Tigre e Eufrates, que hoje basicamente faz parte do atual Iraque, da Síria e do Kuwait, berço de algumas das mais importantes civilizações da Antiguidade.

Temporal e politicamente, estamos falamos da época de dominação dos Sumérios (nesse período já em grande simbiose com os Acadianos) na Mesopotâmia, mais precisamente da 3ª Dinastia de Ur (cidade-estado da Mesopotâmia), que durou aproximadamente de 2047-1940 a.C.

O fundador da 3ª Dinastia de Ur, também denominada de o “Novo Império Sumério”, foi precisamente o rei Ur-Nammu, que dá nome ao Código de que ora tratamos, sendo esse diploma legal certamente o seu maior mais legado para a nossa civilização. Aliás, o prólogo do Código sugere que o rei Ur-Nammu, pouquíssimo modesto, se achava empoderado (palavra hoje na moda no vocabulário “politicamente correto”) pelos deuses para proclamar sua lei, afirmando, ao final, algo como: “Eu fiz o mal, a violência e o grito por justiça desaparecerem”.

O Código de Ur-Nammu, que reconhecidamente serviu de inspiração para as codificações que vieram a lume nos séculos seguintes (Lipit-Ishtar, Hammurabi e Eshnunna, notadamente), na dimensão como chegou até nós, consiste em um conjunto de aproximadamente quarenta disposições condicionais (de um total de quase sessenta que teria a versão completa do Código). Algo como: se “X”, então “Y”, sendo “X” a conduta e “Y” a consequência legal.

Curiosamente, diversamente das “cruéis” disposições retributivas do famoso Código de Hammurabi (“olho por olho, dente por dente” e outras coisas do tipo), que data de quase três séculos depois, cerca de 1792 a. C., o Código de Ur-Nammu impunha penalidades pecuniárias para uma grande variedade de tipos penais, incluindo hipóteses de lesões corporais causadas a outrem, o que, sem dúvida, se mostra muito mais consentâneo com a concepção humanitária do direito que temos hoje. Assim se dava, como anota Michael H. Roffer (em “The Law Book: from Hammurabi to the International Criminal Court, 250 Milestones in the History of Law”, Sterling Publishng Co., 2015), em casos como os de tirar a visão de outrem, quebrar os ossos de outrem, deflorar escravo alheio, cometer perjúrio, divorciar-se da primeira mulher e por aí vai. Muito interessante e elogiável também é o fato, apontado por Michael H. Roffer, de que o Código de Ur-Nammu tratava de forma muito mais severa os “ilícitos criminais” (levando em consideração o que são “ilícitos criminais” na grande maioria dos sistemas jurídicos ocidentais contemporâneos) do que os “ilícitos civis”, punindo, por exemplo, os gravíssimos crimes de homicídio e estupro com pena de morte e o de sequestro com prisão e multa.

Bom, o Código de Ur-Nammu pode não ser tão badalado quanto o Código de Hammurabi, talvez porque, primeiramente descoberto/traduzido por Samuel Noah Kramer (1897-1990) no começo dos anos 1950, até hoje não foi possível, com base nos fragmentos já encontrados, reconstruir todas as suas disposições. Entretanto, escrito no alfabeto cuneiforme e na língua sumeriana, ele é, conforme faz questão de registrar Klass Veenhof (1935-, apud Michael H. Roffer), professor da Universidade de Lieden e grande especialista no tema, certamente o mais antigo texto verdadeiramente legislativo que chegou até nós.

E isso, meus queridos leitores, é muitíssima coisa.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

29/05/2016


O CAMELO
Quatro amigos caminhavam em silêncio por uma 
estrada, amargando a dor do desemprego. Todos tinham 
sido mandados embora, por terem contrariado o 
 soberano a quem, há anos, serviam. 
Estavam completamente decepcionados, sem saber 
o rumo que iriam tomar na vida. Aproximou-se deles 
um homem muito aflito, que perguntou:
– Os senhores viram um camelo, perdido pela estrada? 
Esse animal me pertence, e desapareceu de repente, 
sem eu saber o caminho por onde seguiu.

Um dos desempregados perguntou:CAMELO
– O camelo que o senhor procura enxerga direito ou é cego de um olho?
– Ele é cego de um olho. – respondeu o dono.
– Ele é manco? É aleijado? – perguntou o segundo desempregado.
– É manco, sim! Vocês o viram?



Ele tem a cauda curta? – perguntou o terceiro.
– Sim, ele tem a cauda curta! Vocês o viram?
– Seu animal sofre do estômago? – perguntou o 
quarto desempregado.
O dono do animal respondeu:
– Sim. O meu camelo sofre do estômago! Então, com 
toda certeza, os senhores o viram!
– Não! Nós não o vimos! – protestaram os quatro homens.
Em seguida, todos se calaram e continuaram a caminhada.
Irritado, o dono do animal perguntava a si mesmo:
– Como é que esses homens conhecem os defeitos do 
meu camelo? Tenho certeza de que eles são ladrões 
e o esconderam.
E foi prestar queixa ao delegado que, 
imediatamente, mandou prendê-los.
Muito nervosos, os quatro homens foram interrogados, 
na frente do dono do animal:
“Este homem acusa vocês de terem roubado o seu camelo.” Disse o delegado.
Os quatro negaram o fato, mostrando-se indignados 
com a injusta acusação.
O delegado, então, perguntou:
– Como é que vocês dizem que nunca viram esse animal 
e ao mesmo tempo sabem que ele é cego de um 
olho, manco, tem a cauda curta e é doente do estômago?
Então, um deles respondeu:
– Como somente as folhas de um lado da estrada 
estão comidas, tenho certeza de que o animal é cego 
de um olho.
Disse o segundo homem:
– Pelas pegadas na estrada, vi logo que se trata de um animal manco.

Disse o terceiro:
– Como há algumas manchas de sangue na estrada, 
entendi que o animal tem a cauda tão curta, que não 
pode espantar os mosquitos.
Finalmente, o quarto desempregado falou:
– Eu vi que as marcas das patas dianteiras do animal são 
bem mais fundas do que as marcas das patas traseiras. 
Isso quer dizer que ele anda inclinado para a frente, 
como andam os animais doentes do estômago.

O delegado ficou impressionado com as respostas 
dos interrogados e viu que estava diante de 
homens decentes, cheios de sabedoria. E os quatro 
foram liberados.

No caminho, encontraram um emissário do rei, 
que os mandava chamar de voltar ao reinado, para 
que continuassem a lhe dar seus conselhos.
No mesmo dia, o animal perdido foi encontrado pelo 
dono.

28/05/2016



O julgamento ampliado

Aproveitando a trilha aberta (e desenvolvida) nos nossos últimos artigos, vamos continuar conversando sobre os institutos/técnicas processuais recentemente introduzidas em nosso direito pelo novo Código de Processo Civil. Hoje, especificamente, trataremos do denominado “julgamento ampliado”, previsto no art. 942 e parágrafos do NCPC.

Antes de mais nada, deve ser registrado que o instituto/técnica do julgamento ampliado veio (ao que parece em boa hora) para substituir o antigo recurso de embargos infringentes, previsto no CPC de 1973. De fato, privilegiando o voto vencido, mas com isso contribuindo para a morosidade do processo, afirmava o CPC revogado em seu art. 530: “Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência”. Trocando em miúdos, desses julgamentos não unânimes, caberia mais um recurso, para o próprio tribunal emitente da decisão recorrida, que seria processado e julgado conforme dispusesse o regimento desse tribunal (art. 533 do CPC/1973), quase sempre por um colegiado ampliado que podia, se assim entendesse, modificar a decisão recorrida”.

A existência dos embargos infringentes sempre causou polêmica. Se por um lado ele fomentava a segurança jurídica (permitindo uma nova e supostamente melhor análise da questão recorrida), por outro ele muito contribuía, sendo mais um de tantos recursos (e para o mesmo tribunal, às vezes para o mesmo colegiado), para a patológica morosidade processual brasileira. Seu cabimento foi sendo sucessivamente restringido com reformas à lei processual civil, culminando com a sua substituição, na sistemática do NCPC, pela técnica do julgamento ampliado.

A técnica/instituto do julgamento ampliado está previsto, como já dito, no art. 942 do NCPC que, em seu caput, dispõe: “Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores”.

No mais, segundo § 3º do art. 942 do NCPC, “a técnica de julgamento prevista neste artigo aplica-se, igualmente, ao julgamento não unânime proferido em: I - ação rescisória, quando o resultado for a rescisão da sentença, devendo, nesse caso, seu prosseguimento ocorrer em órgão de maior composição previsto no regimento interno; II - agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito”. Já não se aplica o disposto no caput do art. 942, segundo reza o seu § 4º, ao julgamento: “I - do incidente de assunção de competência e ao de resolução de demandas repetitivas; II - da remessa necessária; III - não unânime proferido, nos tribunais, pelo plenário ou pela corte especial”.

O melhor, entretanto, vem agora (como grande vantagem em relação aos embargos infringentes, que, como recurso, tinha toda uma formalidade e gasto de tempo): “Sendo possível, o prosseguimento do julgamento dar-se-á na mesma sessão, colhendo-se os votos de outros julgadores que porventura componham o órgão colegiado” (§ 1º do art. 942). Registre-se ademais que “os julgadores que já tiverem votado poderão rever seus votos por ocasião do prosseguimento do julgamento” (§ 2º).

Para se ter uma noção do quão mais desburocratizada e expedita é a técnica do julgamento ampliado, vou dar um exemplo prático do tribunal em que atuo, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Atuo, para fins de realização de sessões, perante a 3º Turma do TRF5, composta por três desembargadores. Nossas sessões são às quintas-feiras pela manhã. No mesmo dia e horário reúne-se a 1º Turma do tribunal. Se porventura, em razão de decisão não unânime em uma das duas turmas (pode ser que calhe acontecer em ambas), for o caso de se realizar um julgamento ampliado, as turmas se reúnem logo quando encerradas as sessões ordinárias, ali, no mesmo dia, com cinco desembargadores (e presidida pelo presidente da turma de onde se originou o caso), para o julgamento da questão. Ou seja, ao invés de se esperar a interposição de um recurso, toda sua tramitação etc., a coisa é resolvida incontinente, com segurança jurídica (valorizando o voto vencido) e rapidamente.

Um único problema – esse de ordem muitíssimo “prática”: em havendo julgamento ampliado, nossas sessões, que normalmente duram algumas horas, entram tarde adentro. E, sem almoço, haja fome, só mitigada por muito café e água.

Bom, mas esses são os “ossos do ofício” e, sem dúvida, somos pagos para isso.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

26/05/2016

RELEMBRANDO NADIR MEIRA GARCIA

Valério Mesquita*


Naquele dia frio e chuvoso de agosto de 2008, a Praça das Flores, amanhecera mais triste. Havia falecido a mais antiga inquilina do seu jardim: Nadir Meira Garcia. O casarão na confluência das ruas Dionísio Filgueira e Joaquim Manoel estava sombrio e silencioso. O frontispício e os interiores da casa me restituíam o casal: Enock e Nadir, numa doce e suave empatia com o passado que aproxima as pessoas na distância do tempo e permite magicamente a confraternização de gerações cronologicamente afastadas. Foi aí, nessa visão, que estabeleci a simbiose perfeita com o nosso passado em Macaíba, lá no sítio do dr. Enock, a residência urbana da família na minha meninice, ao lado dos primos Roosevelt, Franklin, Wallace, Ana e Enoquinho.
A intercorrespondência íntima das duas memórias reveladas, faz-me captar sinais ainda perceptíveis, rumores audíveis, movimentos distintos, brotados do fundo da vida social, política e familiar de Macaíba dos anos quarenta e cinquenta – que apesar de conhecidos e gastos com a morte de Nadir parece sepultar a última herdeira desse universo desaparecido.
Mesmo aos noventa anos de idade, ela ainda detinha a energia dos cristais, o senso agudo de observação das coisas ao seu redor. Lembro-me do seu estilo informal de receber e acolher as pessoas, o brilho intenso dos olhos que lembrava os da sua mãe Amélia Násia Mesquita Meira, minha tia, símbolo admirável de fidelidade, caráter e honradez. Dela, a filha herdou a tenacidade e a autenticidade de ser.
O que impressionava em Nadir era o lado político arrebatado, decidido e determinado. Quando se envolvia, a política virava paixão avassaladora, pois não sabia cultivar a neutralidade. Ainda tremulam na fachada daquela casa, como um milagre de transfiguração, as imensas bandeiras de suas crenças partidárias, pois não tinha medo de assumir a sua identidade coletiva. A idade avançada não lhe trouxe melancolia nem o desinteresse pelos problemas da vida e dos filhos. Buscava sempre o estímulo e o alento para desencadear o movimento da maturidade de viver os netos e reviver os sonhos encantados que sonhou com o seu Enock.
Por tudo isso, não é demais reconhecer que Nadir desempenhou um papel importante na educação dos filhos e ao lado do marido no desbravamento dos caminhos da política, da advocacia, da administração pública e da vida do lar.
Posto-me, novamente, diante da casa da Praça das Flores na certeza de que o passado não passa. O vento forte e monolítico finge permitir que tudo leva e lava. Os meus olhos de vidente retrospectivo passeiam nos corredores, revendo antigas cenas, cristaleiras, porcelanas, armários, lustres e conversas soltas de antigas vigílias. Ali, ainda vejo Nadir e Enock cercados de filhos e netos, apascentando o tempo e cultivando as flores.

(*) Escritor