28/06/2014

Velhos tempos




Ah! Os guarda-chuvas!

Elísio Augusto de Medeiros e Silva

Empresário, escritor e membro da AEILIJ
elisio@mercomix.com.br



Quando eu era criança, tive muitas capas de chuva, fabricadas de tecidos impermeáveis, e um sem-número de guarda-chuvas, que normalmente eram comprados na “Formosa Syria”, na Av. Rio Branco.
Perdi tantos... que acabei desistindo de usá-los. Desde essa época, que vivi sem nenhum desses abrigos contra a chuva. Também em Natal não chovia muito! De uns tempos para cá é que resolveram cair essas chuvas torrenciais na Cidade do Sol! Chove de dia, de tarde, de noite!...
Então, de início, em vez de andar com um guarda-chuva pendurado, pingando água, preferia usar as proteções das marquises das lojas, ou dos estacionamentos cobertos, dos shoppings, embora, ocasionalmente, isso não impedisse um ou outro banho de chuva.
Esse ano, como vocês devem ter percebido, está chovendo muito em Natal, e como preciso deslocar-me diariamente a vários lugares, resolvi não tomar mais chuvas. Então, decidi comprar novamente um guarda-chuva, mesmo sabendo de antemão que seria um problema conduzi-lo... e não perdê-lo.
A Formosa Syria não existe mais, porém, vocês precisam ver como existem camelôs que vendem guarda-chuvas na Av. Rio Branco.
Desde que os ingleses passaram a adotá-lo, em 1786, com a função correta, tornou-se um dos objetos mais fáceis de perder, principalmente, pelos proprietários que não têm o hábito de saírem com eles todos os dias. O uso ocasional faz com que ele suma na primeira distração – dizem os mais antigos que isso não acontecia com as bengalas, que, acredito, serem parentes dos guarda-chuvas. Pelo jeito, só se é fiel àqueles a quem faz dele uso constante!
Como vocês sabem, o guarda-chuva dobrável, surgido em 1805, permaneceu imutável: quase os mesmos, pois nunca conseguiram mudá-lo totalmente: austeros, de tecidos pretos, cabo curvo (vários materiais) e as infinitas aspas... como quebram essas aspas! Embora convenhamos, atualmente, vários modelos dispõem de recursos sofisticados.
Desde que foi inventado, a sua função continua a mesma: proteger os usuários. Faça chuva ou faça sol!
A história nos informa que, na Mesopotâmia, região atual do Iraque, há 3400 anos, já se usavam artefatos destinados a proteger a cabeça dos reis – mas, contra o sol, pois a chuva era rara ali.
Então, lembro-me que, durante a minha infância, mesmo não sabendo do detalhe acima, os guarda-chuvas tinham o aspecto de coisa muito antiga. Em alguns países, uma de suas características era ser usado em enterros. Fúnebre, não?!
Quando, após ser usado, está molhado e escorrendo água, descansa normalmente encostado a uma parede, sem ter a liberdade de ser aberto para secar – isso somente no sol!
As senhoras adoram as sombrinhas, que têm a mesma função, enquanto o pessoal mais jovem não lhes dá muita atenção, mas, mesmo assim, nunca saiu de uso.
Existem uns parentes seus, próximos, bem maiores: os guarda-sóis de praia, que, com seus coloridos, enfeitam as nossas orlas, desde os anos 50.
Durante o carnaval, os passistas do frevo usam umas sombrinhas pequenas, para embelezarem os seus passos. Embora com uma função totalmente diferente, devem ser da mesma família.
Depois que voltei novamente a usar o guarda-chuva, constatei que se encontram totalmente em desuso os porta-guarda-chuvas, tão comuns nos finais do século XIX. Estou procurando um, se souberem, me avisem.
Pelo jeito, vou incorporar novamente o guarda-chuva no meu dia a dia, e aprender a conviver com ele. A propósito... vocês o viram por aí?

25/06/2014

A viagem de Leão Veloso (II)




João Felipe da Trindade (jfhipotenusa@gmail.com)
Professor da UFRN, membro do IHGRN e do INRG

Continuemos o relato de Francisco Othílio, iniciado no artigo anterior. Preparados que foram as cousas, partimos para a Vila do Príncipe (Caicó), chegando nós às 9 horas à fazenda São Paulo, do Sr. Rodrigo de Medeiros Rocha, onde passamos a força do sol.

Aquele lugar merece que eu faça dele especial menção, não só pela notável afabilidade com que fomos obsequiados, mas pelo indizível prazer que mostraram todas as pessoas da família do Sr. Rodrigo com a nossa chegada.

Com efeito, o Sr. Rodrigo, de quem tanto se não esperava, não pela falta de bons desejos, mas em razão de suas circunstâncias pouco lisonjeiras, obsequiou-nos a nada deixar a desejar.

A Vila do Príncipe não há dúvida que é hoje uma das melhores do sertão; e apesar de ser o seu solo nimiamente árido, todavia ali não faltam recursos; porque os seus habitantes empregam todos os seus esforços a fim de lhes serem menos difíceis e penosos os meios de subsistência.

O terreno sobre que se acha ela plantada nada tem de agradável, e ao contrário é feio e bastante pedregoso, porém muito nova e boa a sua edificação. A sua matriz é antiga, porém de boa construção; tem menos cômodos do que a de nossa capital, e é mesmo alguma coisa diferente em sua divisão interior, mas excede-a em asseio. Há um gosto extraordinário na festa da padroeira e tem ela tanta nomeada que muitas pessoas do centro do Ceará, Paraíba e até mesmo de Pernambuco vão ali passá-la com suas famílias. 

Um povo imenso assiste sempre às novenas e às missas cantadas, que ali celebram-se durante dez dias de festas. 

Calculou-se em quatro mil pessoas que acompanham a procissão, inclusive muitas senhoras, que por esse ato não são censuradas em razão de ser costume antigo.

O madamismo apresenta-se sempre com muito luxo, mas esse luxo pouco brilhava, porque muitos dos seus vestidos ainda são feitos por usos que por aqui vão sendo esquecidos.

O bom acolhimento, que prestaram os senhores Vigário Rafael Fernandes, e o Dr. Paulino Ferreira da Silva, é digno do maior elogio.

Depois de quatro dias de folganças passados entre o bulício de uma numerosa população, que igualmente gozava dos prazeres da festa, voltamos ao nosso primitivo estado de insipidez e de incômodos, sócios inseparáveis daqueles que viajam pelos sertões em épocas já um pouco inconvenientes.

E qual não foi a tristeza que infundiu em meu coração o dia 29, em que pela manhã muito cedo vi deixar aqueles lugares tantas famílias que haviam abrilhantado a festa com a sua assistência. A nossa viagem estava destinada para a tarde do dia acima referido. E de feito às 4 horas encetamos a jornada com destino à Serra do Martins, servindo-nos de guia até aquele ponto o Sr, José Bernardo de Medeiros, um excelente companheiro. Ao sairmos acompanharam-nos muitas pessoas, algumas das quais nos fizeram companhia até a – Saudade – Fazenda do comandante superior Mariz, onde pernoitamos e fomos recebidos cavalheiramente. Ali chegamos às 7 da noite.

No dia 30 pela manhã continuamos nossa marcha tocando na povoação de Jardim de Piranhas às 9 horas pouco mais ou menos. Demoramo-nos um pouco enquanto sua excelência examinava a Capela daquela povoação, e depois seguimos. Às 11 horas do dia estávamos na Fazenda Pilões (Distrito da Paraíba), fazenda de uma viúva cujo nome não tivemos a curiosidade de perguntar. Ali descansamos, recebendo-nos ela belissimamente. Às 5 horas da tarde tivemos de partir.

Ainda se viam perfeitamente no horizonte os coloridos raios de sol quando avistamos na eminência de um longo campo dois edifícios; eram a casa do major José Batista Saraiva e uma capelinha que acha-se ainda em obra. Estávamos na fazenda Cachoeira também na Paraíba, uma das mais bonitas que encontramos pelo Centro.

Naquele lugar passamos uma noite bem divertida. Depois de uma lauta ceia, que foi presidida por três filhas e sobrinhas do mesmo major, levamos até uma hora da noite ouvindo-as cantarem várias modinhas; dando eu também nessa ocasião uma prova de que não era muito hóspede no violão.

No dia 31 pela manhã muito cedo estávamos de marcha, passando às 7 horas na povoação de Belém (ainda na Paraíba) e chegando-se ao Patu de fora às nove e meia.

Tomamos a casa do capitão José Severino de Moura, que preventivamente havia mandado um próprio à Cachoeira com uma carta convidando ao Sr. Presidente para descansar lá, no caso de passar por aquele lugar. O Sr. José Severino tratou-nos como permitiam as suas circunstâncias, e convenço-me de que ninguém de nossa comitiva ficou descontente.

Antes de encerrar este artigo, alguns comentários: o dono da fazenda Saudade, citado por Othílio, não era o comandante superior das Legiões da Guarda Nacional da Vila do Príncipe e Acari, Antonio Álvares Mariz, como pensou Câmara Cascudo, pois faleceu em 1854, mas o filho dele, Manoel Monteiro Mariz, comandante superior da comarca do Seridó, que faleceu em 1864; José Bernardo de Medeiros era avô dos ex-governadores Dinarte Mariz e José Augusto; O vigário citado por Othílio devia ser Padre Francisco Rafael Fernandes, sobrinho do senador, Padre Francisco de Brito Guerra; Dr. Paulino Ferreira da Silva, bacharel, foi promotor e deputado da Assembleia Provincial; Havia um Rodrigo de Medeiros Rocha (Rodrigo Gordo), dono da Fazenda São Paulo, mas que em 1834 já era falecido. Talvez o Rodrigo, citado por Othílio, seja descendente daquele; O presidente Pedro Leão Velloso tinha 33 anos de idade, nessa época.





ALEJURN





ACADEMIA DE LETRAS JURÍDICAS DO RIO GRANDE DO NORTE
A L E J U R N

COMUNICADO

A Diretoria da ALEJURN, ao tempo em que cumprimenta todos os seus Acadêmicos, comunica que o Presidente Adalberto Targino ficará ausente do Estado até os meados do mês de julho vindouro e, por necessidade administrativa, assumimos a direção da entidade e, desde logo, por convite formulado pelo eminente confrade Diógenes da Cunha Lima, conclamamos a todos a prestigiarem hoje, pelas 17 horas, na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, o lançamento da nova edição da Revista da ANRL, sob a responsabilidade dos escritores Manoel Onofre Júnior e Thiago Gonzaga.
Oportunamente faremos a divulgação das ações programadas para o período de substituição.
Natal, 25 de junho de 2014
ZÉLIA MADRUGA
Presidente, em exercício
Carlos Roberto de Miranda Gomes
Secretário-Geral

24/06/2014


MIGUEL JOSINO

Jurandyr Navarro
Do Conselho Estadual de Cultura

De um tempo para cá a Advocacia modernizou-se. Antes, era um sufoco sair à pro­cura duma legislação aplicável ao caso concreto ou um texto jurisprudencial adequável para dar sustentáculo à tese esposada.
Daí, vir a propósito, a citação de Seabra Fagundes, em trabalho apresentado à 3ª Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção federal, em Recife (1968), sob o título "As imperfeições da elaboração legislativa e o exercício da Advocacia :
"Atualmente é tal o tumulto de legislação abundante e mal elaborada, que o exercício da Advocacia exige, na maioria das vezes, seja ela de empresa, seja forense, virtualidades além do comum. Por vezes a simples localização e identificação da norma aplicável, em meio a múltiplas leis que interferem com o mesmo assunto, um emendando ou revogando parcialmente as outras, exige horas e horas de pesquisa e estudo. Eis porque já se disse, com espírito satírico, porém veraz, que hoje é mais penoso para o advogado achar a lei ajustável a uma relação de direito do que interpretá-la ".
A evolução da Informática modernizou os Escritórios advocatícios, o trabalho dos Cartórios e o desempenho dos Tribunais.
A Justiça, hoje, anda mais célere e julga melhor. O advogado, o promotor, o procu­rador e o juiz são mais preparados profissionalmente que os seus colegas de antanho, salvante exceções. Para isto contribuiu muito o progresso tecnológico e a metodologia de ensino. Os cursos de pós-graduação são mais acessíveis, a especialização por áreas, os congressos, as palestras e conferências são facultados a um maior número de interessa­dos; sendo também, mais objetivos e práticos. O próprio Curso de Direito mudou. No nosso tempo tínhamos noventa por cento de aulas doutrinárias. No presente, as aulas práticas são dominantes, com a Prática Jurídica implantada, entre nós, pelo Professor Edgar Smith Filho, cujo pioneirismo no Nordeste tem sido aplaudido.
O telefone (DDD), o Fax, a Xerox, o gravador, o computador e outros instrumentos revolucionários no campo da técnica e da cibernética, são instrumentos preciosos e utilíssimos, enfim, a automação, possibilita o rápido desempenho e a mais perfeita tramitação processual e julgados da Justiça.            Miguel Josino Neto foi um advogado moderno e avançado nesse sistema informatizado, além de talentoso e competente profissional. Formando ainda, fez estágio na Consultoria Geral do Estado, recebendo apreciáveis ensinamentos.
O aprendizado em Direito Administrativo deu-lhe os meios imprescindíveis à sua  atuação na Procuradoria Geral do Estado, assim como na área judicial onde defendeu as  causas do Estado com diligente capacidade. Tudo fazendo jus ao título de primeiro lugar em concurso de provas e títulos para Procurador do Estado.
Em plena juventude, Miguel Josino já despontava como um dos melhores causídicos do Rio Grande do Norte. Nos dias que passam os moços se adiantam cedo na jornada intelectual.
O soberbo "batalhão sagrado " que Péricles criou a sua Atenas - a Mocidade, é que as pátrias depositam a sua esperança.
São dois pronunciamentos merecedores de meditação por parte daqueles que têm sen­so de responsabilidade: o primeiro, expresso por um pensador de renome internacional; e, o outro, de um mandatário espiritual de visão profética.
O dever e o exercício advocatício é dos mais importantes para a salvaguarda do Estado de Direito, porque, sem ele, tudo resvala para o governo da ignorância, das decisões apressadas e deliqüescentes, sem o imprescindível amparo jurídico.
"O governo de homens " — o que empurra o Legislativo com a barriga para dar azo ao seu ego paranóico - "é o governo do arbítrio"; o outro, "o das leis" - e da juridicidade - "é o Estado de Direito ", enfatizou o constitucionalista pátrio Luís Pinto Ferreira.
Diante da situação político-administrativa do Brasil, em que os escândalos se suce­dem na telinha da mídia eletrônica, o Direito deve resguardar a sua ética, a sua sisudez, o seu caráter deontológico. É o que se impõe, para o momento, a fim de neutralizar os efeitos deletérios do atraso em que se encontra a máquina administrativa dos Estados brasileiros; em sua maioria, dirigida por pessoas de formação técnica incompatível com o trato de maté­ria de direito administrativo.
O grande Hauriou foi um dos precursores a pregar a moralidade administrativa. Alu­de Cármen Lúcia Rocha, em trabalho especializado - Princípios Constitucionais da Admi­nistração Publica, 1994:
"A moralidade administrativa tornou-se não apenas Direito, mas direito público subjetivo do cidadão: todo cidadão tem direito ao governo sério e honesto".
Infunde-se, portanto, tais considerações, acima relacionadas, para a aplicação cor­reta do vero Direito atualizado nas questões estatais, exigindo-se o dever a ser cumprido consoante as normas jurídicas embasadas pela égide da moral.
E por essa diretiva prudente que é pautado o trabalho de Miguel Josino Neto, na Advocacia e na Procuradoria Geral do Estado.
Declarou José Ribeiro de Castro Filho, antigo Presidente do Conselho Federal da OAB:
"O advogado tão necessário como a justiça e como ela tão antigo, colocado entre os homens e a lei, deve ser o combatente armado, a palavra em luta, onde quer que o chame o direito ameaçado ".
Dos mais desgastantes o ofício advocatício. O culto advogado Levi Carneiro, certa vez, foi a um médico em Paris. Sem saber quem era o cliente, o clínico o examinou e disse: - "O senhor é Advogado ". - "Por quê? ", indagou Levi, admirado, já que não dissera a sua profissão. Respondeu-lhe o médico francês: - "O seu fígado está martirizado pelas coisas da vida ocasionadas pela profissão: o senhor tem "um fígado jurídico".
Como se vê, o advogado paga oneroso tributo à saúde pela sua atividade estressante, embora haja uma compensação, na sua tarefa nobilitante para a sociedade: é ele, o juris­ta, um criador de bens culturais, no dizer de Miguel Reale.
Orador eloquente da sua geração, Miguel Josino foi um Advogado para o terceiro Milênio da Era da Cristandade, porque abeberou-se das fontes cristalinas da cultura do Direito.
Atuante e competente o seu desempenho como Procurador Geral do Estado. Exorbitava, às vezes, das atribuições do cargo, a fim de melhormente servir ao Estado e aos cidadãos.


23/06/2014

A PRIMEIRA SANTA-CASA NO BRASIL

Por: GILENO GUANABARA, sócio do IHGRN


            No Relatório que fez o então provedor da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos, Cláudio Luís da Costa, em junho de 1857, consta a informação de que o português Braz Cubas fundou, no ano de 1548, uma Santa-Casa, nas proximidades do povoado de São Vicente, o primeiro hospital do Brasil e da América, ao qual foi dado o nome de Casa dos Santos. Na mesma época, a sua mantenedora, a Confraria da Misericórdia, fora criada e também por sua iniciativa. A par e no entorno do hospital, com a contribuição dos primeiros habitantes, Braz Cubas edificou também uma igreja, a de Nossa Senhora da Misericórdia. Dada a similaridade com a Casa dos Santos (ou Hospital de Todos os Santos, como também era chamada) e a sua mantenedora, Confraria da Misericórdia, fundadas em Lisboa no ano de 1498, e para que servisse de referência o até então conhecido Porto dos Escravos, passou a constar o nome – Porto dos Santos - nas correspondências trocadas com a corte. Em face da sua importância comercial/marítima, ficou o nome da atual cidade de Santos, na baixada paulista.
            No relato histórico de João Luís Promesse – in Reminiscências de Santos, D. João III, Rei de Portugal, em Almeirim, no ano de 1551, concedera à Casa dos Santos igual tratamento dado por seu pai, D. Manuel, as casas de misericórdia instituídas em Portugal. A mesma informação também se encontra nos escritos do beneditino e paulista Gaspar da Madre de Deus (Memórias para a História da Capitania de São Vicente-1797).
            O português Braz Cubas havia chegado em São Vicente no ano de 1532, na comitiva de Martim Afonso de Souza, donatário-mor da Capitania, de quem recebeu em doação uma gleba de terra, onde atualmente se acha encravado o perímetro urbano do litoral, escoadouro de índios escravizados para as minas do Peru, atual cidade de Santos. Conhecedor da experiência da Casa dos Santos, fundada em Lisboa, bem como passando a conviver com a situação precária dos patrícios aqui residentes, vítimas das doenças que atingiam os primeiros povoadores, se propôs fundar nos limites de sua propriedade uma casa de socorro público, nos moldes da experiência da metrópole.
            Edificada a sede e organizada a lista dos confrades, enviaram carta ao rei de Portugal, com pedido de facilidades para a instituição que fundaram. A publicação conservada no Arquivo Nacional (Documentos Históricos), na referência à Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência de Santos, traz a informação de que o rei, D. João III, em setembro de 1548, solicitara esclarecimentos sobre o pedido de regalias e licença que os subscritores teriam requerido e obtido para a fundação daquela Casa, portadores que foram os integrantes do Conselho Ultramarino, Rafael Pires Pardinho e Antônio Henriques.
            Ainda hoje é mantida no arquivo da Santa-Casa de Santos o termo de Compromisso, tal como foi originariamente lavrado: - Compromissos e privilégios pelos quais a Irmandade ordena sejão cumpridas todas as obras de Misericórdia e espirituais, no quanto fôr possível, para socorrer as tribulações e miseria que padecem nossos irmãos em Christo, que recebem gozo do Santo Baptismo, a qual Confraria foi instituída no anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Crhristo de mil quinhentos e quarenta e oito, no mês de agosto, na Sé Cathedral desta mui sempre leal cidade de Lisboa, por permisso e consentimento da Illustrissima Senhora Rainha D. Leonor, a segunda que Santa é, a qual, aos tempo da instituição da dita confraria e irmandade, governava os Reinos e Sonhorios de Portugal, pelo muito alto, Excelentissimo e muito poderoso Senhor Rei D. Manoel Nosso Senhor...
Segue-se anexo à cópia do Compromisso o da Confraria da Misericórdia, com seus 21 capítulos que serviram de estatuto, tal como observado aqui, na colônia vicentina. Dispunha: Das obras de Misericórdia; como serão ordenadas e compostas para o serviço; como hão de ter ao entrar de confrades e em repreenderem os que não forem de forte condição; da eleição dos oficiais; do provedor e dos mordomos de cada mês e os da capela; dos pedidores de pão; das propriedades da Confraria; dos condenados à morte; a repartição dos cargos; de como visitar os presos e os envergonhados; da arrecadação das esmolas; Da confirmação e aprovação do compromisso por El-Rei; e os privilégios que sejam concedidos por El-Rei Nosso Senhor.
            O modelo da instituição Santa-Casa adotado em São Vicente copiou o modelo de Portugal. A piedosa rainha, casada com D. João II, instituíra no ano de 1498, a Casa dos Santos, a primeira Santa-Casa de Portugal. Coube ao seu confessor e esmoler, Frei Miguel Contreiras, influir para que se adotasse ali o espírito das confrarias de misericórdia fundadas em Florença, no ano de 1350, as quais se destinavam a dar guarida aos desamparados, abrigo e educação aos órfãos, dotes as donzelas desprevenidas, remédio aos enfermos, esmolas aos necessitados, pousada aos retirantes e sepultura aos mortos. Já em Portugal, as confrarias serviam também para dar apoio e manutenção financeira àqueles hospitais beneficentes.

            A rainha Leonor, irmã de D. Manuel I e viúva de D. João II, dera apoio material àquele primeiro hospital público instalado no claustro da Sé de Lisboa. Pela ordem, o rei e a rainha eram o primeiro e o segundo confrades, a que se seguiam os membros da nobreza que obrigatoriamente aderiam ao gesto de caridade e, por isso, eram chamados irmãos de misericórdia, motivo de orgulho de seus portadores. A fim de angariar fundos, para os fins filantrópicos a que se propunham, organizavam-se festas e se realizavam comemorações religiosas. Numa delas, no Natal de 1518, ficou famosa a fala de Gil Vicente. Nas presenças do rei, da rainha e das Damas da Corte, o escritor, doublé de comediante e ourives, declamou pela boca de um dos seus personagens, vivente no purgatório: “ – Vêdes outro perrexil/ e marinheiro sedes vós;/ ora assim me salve Deus,/ e me livre do Brasil.” (Auto da Devoção – Obras Completas, 1572). O dramaturgo satirizava as contradições, contabilizava o medo que causava o Brasil e as personagens pitorescas da sociedade da época. Era tempo da acumulação comercial que se expandia nos mares à distância; da linguagem satírica dos autos pastoris/medievais; do renascimento europeu e da prática salvadora da filantropia misericordiosa.