04/10/2019
Viver a vida e a cidade
28/09/2019
Viver a vida e a cidade
Tribuna do Norte, Caderno FDS, 11/04/2014
Gustavo Sobral, jornalista e advogado
“Advogado, jornalista, escritor, vou me refugiar na vida da cidade.
Todo natalense deveria imitar Cascudo, ser assim provinciano incurável.
Navarrear, e fazer crônica da vida. Viver a vida e a cidade”. É assim
que Gustavo Sobral vê, sente, escreve e vive a capital potiguar. O fim
de semana do jornalista também não escapa dessa visão. Cada esquina, bar
ou restaurante pode render uma crônica.
“Este meu fim de semana, em especial, começará na Feira das Artes.
Praça das Flores, sábado, 16h, quando autografarei 'Petrópolis', guia
saboroso do bairro. Pedaço da cidade cercado por dunas que rabiscam o
horizonte, mata que acompanha o mar, perigo iminente no sonho de Manoel
Dantas; que pode não ter os táxis amarelos frenéticos dos filmes de
Allen, mas que tem as avenidas largas em nome de presidentes; e que se
pode sair pelas suas ruas numa aventura felliniana à 'Dolce Vita'. À
noite brilhará cidade em luzes. Melhor filme e melhor leitura, não há
outro que viver as cenas da cidade.
Natal de cafés, bares, restaurantes e bistrôs, e que precisa de se
completar de museus e galerias, andar mais nas ruas e habitar as suas
praças. Aos finais de semana, não perco café com André e Lígia, chope
com Pedro, almoço em família, encontrar o poeta Paulo de Tarso e Ana
Maria, flanar por ai e viver. Um roteiro que inclui aproveitar a
lentidão do tráfego e fluir o sossego das ruas. Contemplar da avenida do
Contorno, o Potengi, o manguezal, a Redinha; subir e descer Ribeira e
Cidade Alta, ver todos os tempos da arquitetura e história nas fachadas
dos edifícios.
Entre o ir e vir, Tirol ao comando de Temístocles com a turma do
Clube de Engenharia. Café e pôr do sol no Sápida. Ali, Alto do Juruá,
bordejando a avenida Getúlio Vargas. Nos jornais, a Coluna de WM e Cena
Urbana, itens de primeira providência. Viva a Costeira aos domingos. Pés
na areia, Morro do Careca, banhos de mar e caminhada, Old Five em Ponta
Negra.
Dom Vinícius, samba, bossa, Gisa e Mistura Fina. Alterne com o
Benditas. Na Choperia Petrópolis, Wendel e seu time espera com chopinho.
Vinho Magazzino e consulta à simpatia de Marcelo Chianca. Jantar, seu
Sílvio nos recebe à porta no Basilico´s.
Almoços de domingo é vendo as dunas que abraçam Tirol e o vento que
sopra as nuvens. Ouvir passarinho, burburinho das conversas, Nina
Simone, Jobim, Vinícius de Moraes, João Donato.
Cercar-se de pai, mãe, tios, crianças pela casa, tanto melhor, a
família e os amigos, e a comida de casa, licor, café, sobremesa, ou de
se ir deliciar pelos restaurantes da cidade. Terraço do Buongustaio,
terraço do Agaricus. Não perca o Manary Gastronomia e Arte. Mas o bom de
tudo isso é saber que a cada passo a gente sempre descobre a cidade e
exerce um pouco da vida no prazer de contemplar à Navarro e imitar
Cascudo.”
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Comentários
Hortencio Pereira de Brito Sobrinho - 02/10/2019
Natal linda e acolhedora cidade, lá morei nos anos de 64 a fev 68, ainda andávamos a qualquer hora da noite sem receio de violência, cidade bucólica e romântica, belas recordações...
Annie - 29/09/2019
Que doces palavras...que descrição saudosa da minha cidade querida!! Queria poder estar aí para vivenciar estes momentos na sua companhia, meu amigo querido!!!
03/10/2019
Marcelo Alves
ublicado antes de ontem, dia 29 de setembro de 2019, no jornal Tribuna do Norte (de Natal/RN):
Wilde no cárcere
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Na semana passada, conversamos aqui sobre a experiência pessoal e
literária de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) com o cárcere. Esse tipo de
experiência e de posterior narrativa, entretanto, não é uma
exclusividade do grande romancista russo. Pondo angústia e sofrimento no
papel, outros grandes escritores também se permitiram retratar a
realidade das masmorras, em seus aspectos visíveis e recônditos, nas
quais são recolhidos, para cumprimento de duras penas, os que
supostamente afrontam as leis penais.
Um desses grandes
escritores, dos mais badalados, foi o irlandês Oscar Wilde (1854-1900), o
autor do romance “The Picture of Dorian Gray” (1890) e da série de
comédias teatrais “Lady Windermere’s Fan” (1892), “A Woman of No
Importance” (1893), “An Ideal Husband” (1895) e “The Importance of Being
Earnest” (1895).
Por mais incrível que isso pareça hoje – pelo
menos para nós, minimamente civilizados –, Oscar Wilde foi processado e
condenado, em 1895, na Inglaterra, pelo “crime” de homossexualismo.
Wilde mantinha, desde pelo menos 1891, uma relação homossexual com Lord
Alfred Douglas, o Bosie, alegadamente o grande amor de sua vida, apesar
do seu casamento com Constance Lloyd, com quem teve dois filhos. Em
1895, o escritor tomou a insensata decisão de processar criminalmente o
pai de Bosie, o Marquess of Queensberry, por crime contra a honra, dando
início a uma série de eventos que levariam ao seu próprio julgamento
por homossexualismo. O Marquês estava preparado. Vasculhou a vida íntima
do escritor. Reuniu provas contundentes em sua defesa e foi absolvido à
unanimidade. Kafkamente, como resultado, Wilde foi levado à prisão, com
fundamento nas provas produzidas em seu desfavor no julgamento do
Marquess of Queensberry. Preso por um mês, antes mesmo do seu próprio
julgamento, ele teve a insolvência civil declarada. Já no banco dos réus
e abandonado por Bosie, Wilde foi pego em mentiras e teve a vida ainda
mais exposta. O veredicto: culpado. Pena: 2 anos de prisão, com
trabalhos forçados.
Assim, em maio de 1895, Wilde é novamente
preso. Após uma sucessão de transferências, finalmente chega à prisão de
Reading, cidade no sudeste da Inglaterra, que se torna o cenário de sua
“Ballad”. Por mais limpa e perfeita que seja em sua organização – e
imagino que a prisão de Reading fosse bem melhor que a prisão siberiana
de Dostoiévski –, qualquer prisão, da Ilha do Diabo às penitenciárias
brasileiras, é sempre terrível. Mas acredito que a solidão do cárcere ou
a promiscuidade que ali gracejam sejam muito mais dolorosas para homens
sensíveis como Wilde, que, em sociedade, personificava, quase à
perfeição, a figura do dândi. As humilhações pelas quais Wilde passou, o
horror da prisão em si, por ele depois descritas, podemos bem imaginar.
Ele ficou preso em Reading Gaol, hoje chamada HM Prison Reading, até
1897.
Ainda em Reading Gaol, Wilde escreveu uma longuíssima e
tocante carta ao seu amante, o Bosie. Nela, ele relembra o caso de amor e
suas experiências de condenado. O tom é de lamento e ataque. Em 1905,
foi publicada uma versão reduzida dessa carta com o título “De
Profundis”. Em 1949, apareceu uma nova versão com partes inéditas. E,
finalmente, em 1962, a versão original revisada foi publicada, conforme
nos informa A. Norman Jaffares, no “O’Brien Pocket History of Irish
Writers: from Swift to Heaney” (de 1997).
Uma vez libertado,
Wilde foi viver na França, autoexilado. Ali, em Berneval-le-Grand,
cidadezinha da Normandia, ele escreveu o célebre poema “The Ballad of
Reading Gaol” (“A balada da prisão de Reading”). A balada – denominação
que se dá a certo tipo de composição musical ou poética – tem como ponto
de partida a execução de um tal Charles Wooldridge, acontecida em 1896,
quando Wilde estava encarcerado em Reading Gaol. Wooldridge, um
militar, foi condenado à morte por haver brutalmente assassinado a
própria mulher. O enforcado tinha 30 anos quando cumprida a sentença.
Para além do testemunho, Wilde amplia o sentido da sua narrativa, para
simbolizar a situação de todos os prisioneiros, mas não para criticar a
justiça das decisões que os condenaram, e sim para mostrar, como
“advogado” de uma reforma penal, a brutalização da punição do condenado à
morte e de todos aqueles ali aprisionados e esquecidos. O verso
autoaplicável “cada homem mata as coisas que ama” restou célebre.
Antes de terminar, quero fazer uma comparação. A reação mental e
intelectual de Oscar Wilde ao martírio da prisão foi bem diversa da de
Dostoiévski (vide o artigo da semana passada). Liberto em 1897, para a
outrora celebridade londrina, agora falido e humilhado, sem contato com
os filhos, restou o autoexílio do outro lado do canal. As habitações na
França não eram as melhores; as roupas, também não. Wilde viveu sob o
pseudônimo de Sebastian Melmoth. E, sobretudo, a sua produção literária
tornou-se escassa.
Em 1900, com apenas 46 anos, convertido ao
catolicismo, ele morreu de meningite, talvez causada pela sífilis.
Certamente, agravada pela depressão e pelo alcoolismo. No Cemitério de
Père Lachaise, em Paris, ainda hoje ele está preso nesse exílio.
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
MACAÍBA, ONTEM
Valério Mesquita*
Escrever sobre o passado
de Macaíba é um momento raro confidências emocionais. Macaíba é um centro
catalizador e irradiador de emoções, dotada de poderes mágicos. Percorrendo
suas ruas, desfilam comigo todo um universo espiritual de amigos ruidosos ou
silenciosos, densos e penetrantes. As ruas do centro, umas largas outras
estreitas, o rio poluido, o cais desfeito, os lugares que já foram, os casarões
destruídos, tudo comanda uma série de imagens, de sensações auditivas, visuais,
olfativas ou mesmo táctil, entre o passado e o presente.
São sensações-lembranças
povoando os espaços da memória e a recomposição não de um tempo perdido como
queria Proust, mas o sentido e o rumor do humano, da paisagem e do tempo, todos
síntese e fascinação de horas vividas e profundas.
Política folclórica,
intensa, arrebatada, patética. Digna do teatro shakeaspereano. Neco Freire,
Estevão Moura, Alfredo Mesquita, José Maciel, Aguinaldo Ferreira, Magno Tinoco,
Paulo Mesquita, Aldo Tinoco, Theodorico Freire, Neco Alves, Enock Garcia,
Severino Aleixo, Francisco Falcão Freire, Leonel Mesquita, Luís Cúrcio Marinho,
entre tantos outros, emergem do tempo com força evocativa de ressurreição de
ambientes.
De tipos humanos
inesquecíveis relembro, Macaíba social, lírica, romântica, ingenuamente
irresponsável, jovem, de Neif no saxofone, Nestor Lima no violão, Raimundo
Cavalcante, a voz, José Inácio Neto, o emérito historiador, Ranilson Costa,
ruminando sempre, a cordialidade de Bridenor Costa, Né Massena e seu torrado
indefectível, Perequeté, Banga, Passarinho, Jorge de Papo, Maria Cabral, Zé
Caíco, Sérgio, “o cabeceiro borçal”, Pereira e o seu piston, Gutemberg Marinho,
seu irmão Epaminondas e o velho Luís Marinho de Carvalho, Maceira e o seu choque
irreprimível, Chico Moura, Olímpio Maciel, D. Nazaré Madruga, Carlos Mesquita e
o pisa na fulô, padre Chacon, Nassaro Nasser (Danga) e a coleção de gibi,
Chicozinho e o cavaquinho, o jogo de botões pelas calçadas com elenco
insuspeito de moleques, Napoleão sapateiro e Charuto, o seu vizinho, as bodegas
de Alfredo Almeida e João Manteiga, Miguel Pelado, Zé Pelado do “Café Gato
Preto”, o Pax Club, enfim, uma verdadeira procissão de lembranças de um mundo
desaparecido mas ainda vivo nas paredes, no chão por onde pisaram, como queria
Sartre.
Enfim, devo dizer que
ainda ouço com extraordinária nitidez, as mesmas canções eternas de todo esse
universo perdido, de todo esse coquetel humano, como se estivesse de uma
janelinha aberta e mágica, vendo-os passar numa comovida recomposição de
gestos.
(*) Escritor
Síndrome da hipocrisia brasiliense
Tomislav R. Femenick – Jornalista. Do Instituto Histórico e Geográfico do RN
Apesar dos percalços, a chamada melhor idade (eu quero saber quem inventou essa baboseira; é velhice mesmo) tem em si duas vantagens. A primeira é que os idosos conseguiram vencer a única opção para não envelhecer, a morte. A segunda, é que eles (nós) possuem um enorme estoque de memórias, reminiscências, lembranças de fatos passados, banais ou relevante.
Essa reflexão veio a mim lendo as últimas notícias do mundo político nacional, das marchas e contramarchas dos governantes: deputados, senadores, ministros de governo, ministros togados e outros figurantes do cenário brasiliense. Não é fácil entender essa gente. Aí veio-me à lembrança um fato acontecido há muito, muito tempo.
O ano era 1958 ou 1959, no governo de Juscelino Kubitschek, quando o dínamo das alterosas instalava a indústria automobilística no país, abria estradas, inovava nas relações políticas e construía uma nova capital federal, lá no planalto central. Havia um certo entusiasmo nacional. Somente a “banda de música” da velha UDN aparecia contestando esse ou aquele ponto do rolo compressor mineiro. Estávamos no Rio de Janeiro, mais precisamente no bar da Pérgula do Hotel Copacabana Palace. Éramos quase todos norte rio-grandenses, capitaneados pelo meu primo Mota Neto, ex-deputado federal, que conhecia o Rio de Janeiro e sua gente da “alta roda” como ninguém. Conhecia de Walter Moreira Salles, dono do Unibanco; Ibrahim Sued, cronista social; ao Fred, o garçom do Antonio’s Bar, e um monte de outros cariocas ilustres.
Mas voltemos àquele momento no Pérgula. Como não poderia deixar de ser, a conversa do grupo terminou se voltando para a construção Brasília. Uns achavam que seria bom, pois levaria o progresso para o interior do país, outros lamentavam a perda de status que irremediavelmente o Rio sofreria e outras opiniões afloraram. Só Mota Neto estava calado, até que alguém lhe perguntou: “Mota, você não fala nada”. Então ele respondeu que seu medo era que a capital isolada, lá no meio do cerrado, fizesse como que os representantes do povo também se isolassem da nação, perdessem seu vínculo com a realidade do país e passassem a viver em um mundo diferente do Brasil verdadeiro. Todos aqueles palácios, aquelas residências separadas por quadras qualificadas, aquelas moradias pagas com dinheiro público e, também, outras modalidades do viver da nova capital poderiam transformar a visão pública (atualmente, diríamos republicana) dos políticos e servidores públicos.
Sem dúvida, essa foi uma visão profética. Hoje os políticos e servidores públicos que habitam Brasília só olham para seus umbigos, se tornaram nababos e transformaram os brasileiros (a quem deveriam servir) em seus vassalos. Quer exemplos? Vamos a eles: bilhões de reais que fazem falta aos hospitais, escolas e segurança pública são destinados aos fundos partidários, que no fundo, no fundo, só visam reeleger suas excelências; pagamento de auxílio moradia para quem tem residência própria, enquanto milhares de pessoas, famílias inteiras, moram na rua; pagamento de planos de saúde com assistência ilimitada, para alguns, enquanto pessoas morrem na fila do SUS, que vive à mingua de verbas; aviões da FAB e passagens aéreas “para autoridades” pagas com dinheiro público, enquanto os trabalhadores pagam passagem de ônibus para ir trabalhar, geralmente em veículos inseguros e superlotados; professores de universidades públicas e outros servidores têm custeados seus estudos de pós-graduação, doutorados e pós-doutorados por órgãos do governo, enquanto os outros mortais pagam tudo com dinheiro do próprio bolso.
Se em Brasília é assim, não há por que nos Estados e Municípios ser diferente. Não interessa o tamanho de suas receitas, as beneficies não replicadas automaticamente. Dessa forma os penduricalhos federais se espalham por todos os entes federativos. É a síndrome da hipocrisia brasiliense.
02/10/2019
A crise brasileira e os cristãos
Padre João Medeiros Filho
O
Brasil padece de uma ingente crise econômica, política, social, ética e
cultural. Analistas verificam que o descaso com a “res” pública, a
corrupção e a injustiça têm sido marcas constantes, ao longo de anos.
Nas últimas décadas, propagadores da impunidade assumiram abertamente a
postura da desfaçatez. Não disfarçam de qual lado se posicionam.
Colocam-se contra a pátria e os direitos dos cidadãos indefesos,
empobrecidos e altamente explorados. Há muito, o poder econômico domina.
A ética agoniza. Interesses de alguns importam mais do que o bem comum.
Sobre os ombros dos carentes, sofridos e injustiçados, vítimas dos
desmandos governamentais, recai o ônus das mazelas pelas quais passa o
país. Vive-se em meio aos destroços causados pelo desemprego, pela baixa
qualidade de ensino, fragilidade da saúde do povo, falta de
investimento em serviços públicos etc.
Aos cristãos três caminhos se
abrem diante dessa triste conjuntura. O primeiro consiste em permanecer
ao lado dos insensíveis. O segundo, manter um silêncio omisso e
conivente, beneficiando a iniquidade. Por fim, cabe-lhe assumir uma
atitude de engajamento contra essa realidade desumana. É preciso um
compromisso de serviço ao próximo e à pátria, antecipação do Reino de
Deus. Ao longo da história, setores da Igreja trilharam, em determinados
momentos, por essas três direções. É necessário, com inspiração
evangélica, assumir o lado da solidariedade, presença e diálogo
transformador. Não se pode desviar dessa opção. É o compromisso de todo
cristão que, pela vivência do Evangelho, se envolve com a causa do
próximo e o Reino de Deus. Este consiste também na equidade, na garantia
de direitos dos justos e honestos.
Os verdadeiros seguidores de
Cristo – apesar de esperar uma vida plenificada, após a peregrinação
terrestre – não podem cruzar os braços diante dos empecilhos do
despontar do Reino na realidade histórica e no cotidiano. O sinal da
cruz, traçado na fronte dos cristãos, deve significar o seguimento ao
Mestre, que colocou sua vida inteiramente a favor dos irmãos. A Igreja –
enquanto sacramento terreno e continuação da missão do Filho de Deus –
deve assumir o ousado e bíblico papel da profecia, opondo-se a tudo que é
sinal de morte, injustiça, desonestidade e falta de ética, ou seja, o
contratestemunho da doutrina de Jesus. Mas, é importante que se diga: o
profetismo não se refere à mera condenação ou crítica, construída em
confortáveis gabinetes, surdos aos gritos ou gemidos dos que sofrem. O
compromisso da Igreja é o do diálogo com todos, da busca de soluções
adequadas e sugestões de atitudes que possam iluminar as ações dos
dirigentes. É fácil condenar, mas não é cristão. “Porque não vim para
julgar o mundo, mas para salvá-lo” (Jo 12, 47). Rabindranath Tagore
insistia: “É mais fácil condenar milhares de pessoas do que tocar uma só
com a verdade”.
A laicidade do Estado não deve ser óbice para o
diálogo das forças religiosas com os poderes públicos. As igrejas têm um
importante papel na defesa de direitos dos cidadãos, filhos de Deus.
Desde que voltadas para os verdadeiros interesses do bem comum, elas
detêm legitimidade na discussão da coisa pública, em favor da população e
contra as práticas opressoras, vindas daqueles que deveriam ser os
autênticos representantes do povo.
Tal como João Batista, precursor
do Senhor, os cristãos necessitam ser uma voz que clama, como sinal de
esperança para os sofredores, vítimas da maldade e injustiça. “Devemos
ter uma palavra de paz, alegria, consolo, diálogo e ternura”, dizia
Santa Dulce dos Pobres. A fidelidade ao Evangelho não pode assumir uma
posição de indiferença ante o sofrimento daqueles que não têm voz e vez
na sociedade. Isso não significa que a Igreja deva ser partidária, como
pensam e pregam alguns, esquecendo o que disse o Mestre: “O meu reino
não é deste mundo” (Jo 18, 36). Inspirados na Palavra de Cristo, os seus
discípulos precisam assumir sua vocação, fundamental para o autêntico
testemunho da vivência religiosa e expressão da fé. “Somos cidadãos do
céu, mas não podemos tornar a terra num inferno”, advertia Santo
Agostinho
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