23/09/2019

Marcelo Alves

Dostoiévski e o seu cárcere



Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881) nasceu em Moscou, em uma família que podemos classificar como da nobreza decadente. Perdeu os pais muito cedo. Formou-se em engenharia. Fez jornalismo. Mas foi sobretudo um escritor. Um ficcionista que tratou com maestria da filosofia, da psicanálise e da religião. “Gente Pobre” (1846), “O Duplo” (1846), “Humilhados e Ofendidos” (1861), “Recordações da Casa dos Mortos” (1862), “Crime e Castigo” (1866), “O Jogador” (1867), “O Idiota” (1869), “O Eterno Marido” (1870), “Os Demônios” (1872) e “Os Irmãos Karamázov” (1881) são alguns dos seus títulos famosos. Simplesmente genial. Dostoiévski faleceu em São Petersburgo.
Mas não vou escrever aqui sobre “Crime e castigo”, “O jogador” ou mesmo “Os Irmãos Karamázov” (1880), embora considere estas as obras-primas do grande literato e pensador russo. Pelo menos não diretamente.
Minha intenção hoje é tratar de um aspecto – juridicamente relevante, aliás – da vida tormentosa de Dostoiévski. E das suas consequências. Para quem não sabe, acusado de conspirar contra o Czar Nicolau I (1796-1855), Dostoiévski foi, em 1849, condenado à morte. Pena essa que, apenas momentos antes do comando para o fuzilamento, foi anunciada como comutada para prisão com trabalhos forçados (diz-se que o próprio Czar exigira a encenação da falsa execução). Dostoiévski, então, com os seus grilhões, foi levado à Sibéria. Quatro anos de prisão. E coisa de dez anos de exílio nesse fim de mundo.
Esse padecimento – a partir da sua experiência de condenado numa prisão decadente, suja e intransponível em Omsk, na Sibéria – foi narrado de modo tocante por Dostoiévski, em “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, talvez como ninguém mais na literatura universal. De 1862, “Recordações da Casa dos Mortos”, construído a partir de uma coleção de fatos e eventos relacionados à vida nas prisões da remotíssima Sibéria, é um romance, é verdade. Mas só quem passou por esse “sofrimento inenarrável”, só quem ali esteve “sepultado vivo”, para usar de expressões do próprio Dostoiévski, seria capaz de descrever (se talento literário tiver para tanto, claro) as condições de vida e a personalidade daqueles que são condenados, culpados ou não, a viver ou morrer nessas condições.
O momento da prisão em si, a solidão do cárcere ou a promiscuidade com delinquentes perigosos, tudo isso é terrível, sobretudo para homens de caráter e de sentimento. Na verdade, como adverte Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio Editora, 1946), quem passa em frente às masmorras “onde se cumprem penas não sabe o que de angústia e desesperos se passa na alma de seus habitadores. Ainda há quem veja o crime e esqueça que o criminoso é um homem, que a sua alma não se petrificou, que a sua sensibilidade não morreu com a prática do ato antissocial. E não adivinha também que do lado de fora se representam outros dramas, ligados àquelas existências esmagadas sob um número e um regime penitenciário, o drama das famílias dos condenados, tão doloroso muita vez quanto o das famílias das vítimas”.
De toda sorte, para além da própria composição de “Recordações da Casa dos Mortos”, podemos tirar algo mais de positivo da dolorosa experiência de Dostoiévski: o incontestável florescimento da genialidade literária do autor de “O jogador”. Afinal, como disse Friedrich Nietzsche (1844-1900), “o que não me faz morrer me torna mais forte” (dito que é uma versão mais chique do nosso “o que não mata, engorda”). Nietzsche, por sinal, dizem, considerava Dostoiévski o único “psicólogo” com o qual teve algo a aprender.
De fato, como nos recorda Lemos Britto, “é comumente aceito e afirmado pelo próprio Dostoiévski, que após a simulação da execução, ele passou a apreciar a vida de uma maneira muito diferente da anterior, iniciando um processo de transformação existencial, literária e política, que estaria terminada quando de seu retorno a São Petersburgo, 10 anos depois”. Aliás, em texto introdutório à recente edição de “Memórias da casa dos mortos” da Editora Nova Fronteira (2018), intitulado “Dostoiévski e a Casa dos Mortos”, Otto Maria Carpeaux também anota: “Comparem-se as obras que Dostoiévski escreveu antes do exílio siberiano – Gente pobre (1846) ou Noites brancas (1848) – com as obras pós-sibéria: Crime e Castigo, O idiota etc. até Os Irmãos Karamázov: a mudança não é somente de amadurecimento intelectual, espiritual e literário. O homem parece outro, o escritor parece outro. Foi, evidentemente, profunda a influência exercida pelos anos de trabalhos forçados na prisão de Omsk”.
Bom, eu nunca estive preso. Deus me livre de um dia ser. E nem que fosse para ser um novo Dostoiévski.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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