30/10/2018



Viajando com a amiga (V)
Na nossa conversa da semana passada, aqui, eu disse que conhecia duas formas de aproveitarmos as andanças de Agatha Christie (1890-1976) mundo afora. Minha amiga, como sabemos, fez muitas viagens, na vida e em literatura.
Uma dessas formas, que taxei de mais tradicional e sobre a qual já tratei, é simplesmente fazer um turismo literário baseado na obra ou na vida da Rainha do Crime.
A outra é mais poética e considero até uma invenção minha, num tempo em que, estudante de PhD numa fria Londres, alternava dias muitos felizes com uma vontade imensa de voltar a Natal e rever meus entes queridos nas esquinas da minha infância.
Foi com essa mistura de sentimentos que descobri uma forma de ter como fundamental – imperiosa, posso dizer – aquela minha estada em Londres. E não era a necessidade de assistir às aulas e aos seminários no King’s College London – KCL, onde fazia meu doutorado. Na verdade, descobri que, somente por me achar no Reino Unido, eu teria a oportunidade de ler os muitos romances da minha amiga Agatha Christie, que tanto me encantaram na adolescência, estando, no momento da leitura mesmo, nos locais onde se passam as suas estórias, saboreando, em tempo real e deveras encantado, a atmosfera dos lugares descritos por minha amiga.
Recordo-me de haver descoberto isso em Russell Square, mesmo no coração do bairro universitário (e alegadamente intelectual) de Bloomsbury. A vizinhança estava sendo citada em um dos romances de Agatha Christie, que ali eu lia numa tarde de verão. Curiosamente, já não me lembro qual deles. Mas é uma recordação que sempre me volta, gostosa, quando penso em Christie e em Londres. Não sei precisar a razão disso. Talvez seja porque morei muitíssimo perto dali, numa residência estudantil na vizinha Woburn Place. Talvez porque eu tenha estudado, dias e mais dias, na Biblioteca do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados (“Institute of Advanced Legal Studies Library”) da Universidade de Londres, que fica no número 17 da tal Russell Square. Talvez porque, em dias de sol, o que eu mais adorava era ler sentado nos seus bancos, vendo a vida passar. Talvez seja simplesmente porque foi ali que eu tive essa minha epifania.
O fato é que descobri simplesmente algo maravilhoso para fazer.
E, a partir daí, rodei muito por Londres levando a minha amiga Agatha Christie a tiracolo. Juntos vinham Hercule Poirot e Miss Marple (esta, confesso, bem menos). Assim como, sempre que podia, viajei de trem, pelo interior da Inglaterra, com as mesmas companhias. No meu matulão tinha sempre algo como “The Mysterious Affair at Styles” (1920), “The Murder of Roger Ackroyd” (1926), “Lord Edgware Dies” (1933), “Murder on the Orient Express” (1934), “The ABC Murders” (1936), “Murder in Mesopotamia” (1936), “Death on the Nile” (1937), “Hercule Poirot’s Christimas” (1938), “Evil under the Sun” (1941), “The Mirror Crack’d from Side to Side” (1962) e por aí vai.
Lembro-me, por exemplo, de ter transitado e corrido entre locais como Piccadilly, Covent Garden, Sloane Square, Regent’s Park e Grosvenor Square, apenas por antever, quando da leitura de “Lord Edgware Dies” (“A morte de Lorde Edgware” ou “Treze à mesa”), que essas paragens seriam cenários desse típico policial “agathiano” londrino. E continuava a deliciosa leitura do romance “in loco”.
Lembro-me, também, de ter ido algumas vezes ler em frente aos prédios da Scotland Yard – especialmente aquele mais antigo, hoje conhecido como “The Norman Shaw Buildings” e usado pelo Parlamento britânico, onde ficava a Polícia Metropolitana de Londres no tempo de Christie –, toda vez essa famosíssima força policial era citada nos romances de minha amiga, como, por exemplo, estou certo, em “The ABC Murders” (“Os crimes ABC”).
E se não pude fazer isso com todos os romances de Agatha Christie – “Murder in Mesopotamia” (1936) e “Death on the Nile” (1937), obviamente, são dois exemplos característicos –, descobri uma forma de remediar essa minha impossibilidade de estar, ao lado do meu amigo Hercule Poirot, no Iraque ou no Egito, quando ele desvendava, para mim, os mistérios dessas histórias. Simplesmente, eu fui ler esses romances em pleno British Museum, tomando um café e me protegendo do frio. Me punha ali a admirar as estátuas gigantes do palácio de um tal Sargão II, mesmo sem saber se a Mesopotâmia de Agatha Christie era a mesma do grande rei assírio. Sem qualquer preocupação em compreendê-la, dava uma olhada na Pedra da Roseta, espiava também os muitos sarcófagos vazios e imaginava-me descendo o grande rio Nilo. Mas voltava sempre para o enorme salão principal do Museu, cheio e iluminado, onde o gosto do café com leite, ao lado da minha amiga, adormecia os (poucos) demônios da minha alma.
Pensando bem, tudo isso era mais que uma viagem, em um tempo e por um tempo que não voltam mais.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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