02/04/2015

AINDA SOBRE A FUNDAÇÃO DO IMPÉRIO

Gileno Guanabara, sócio efetivo do IHGRN

            No momento em que a esquadra real singrava a Baia da Guanabara levando D. João VI de volta a Portugal, o príncipe regente, que acabara de assumir o poder imperial, lançou um manifesto ao povo brasileiro, proclamando o seu programa de governo, premonição do jogo que resultaria no grito do Ipiranga: respeito às leis; cuidado com os juízes; comedimento quanto a Constituição a ser legislada pelas Côrtes; esforço pela educação, pela agricultura e pelo comércio. Por fim, apelou à ordem. A transparência já principiava a seguir, assegurou.
            A cada dia posterior ao regresso da comitiva real, no entanto, o quadro verdadeiro começou a revelar-se de extrema penúria e gravidade. O comércio arrefecera sem consumidores e a tristeza esvaziara os teatros e as ruas. A economia refluía sem fluxo do câmbio, haja vista o desfalque de moeda, que a comitiva real saqueara dos cofres, antes de se despedir, em depósito de ouro e prata, deixando o Banco do Brasil incapaz de cumprir seus pagamentos. Tudo contribuía para levar em cascata a quebradeira da economia. O pânico instalou-se com o aumento súbito dos preços dos alimentos e dos aluguéis, uma espécie de inflação atualmente sentida, uma bancarrota que parecia sem fim.
            A instabilidade tomou conta das Províncias, com inquietações, divisões e luta política. Da Bahia, em direção ao Norte, as Províncias ora demonstravam hostilidade à autoridade do Príncipe, ora se mostravam hesitantes entre o poder das Côrtes e o Governo central. Em tudo se assemelhava à gravidade da experiência sofrida pela família real, em 1808, quando trânsfuga, abandonou Lisboa às pressas, com medo das tropas de Napoleão, transferindo uma trupe de inoportunos funcionários, para o Brasil.  Ao seu tempo, enquanto organizava as finanças públicas, D. Pedro sequenciou outras providências: garantia da propriedade; proibição do sequestro de bens particulares, em face de ônus fiscais; liberação da importação de livros; abolição da censura à imprensa; proibição de prisão sem culpa formada, salvo em fragrante; aboliu o castigo sob açoites e o emprego de correntes, algemas e grilhões; e, por fim, responsabilizou juízes e autoridades por abusos e excessos.
            Ainda hoje se discute se D. Pedro foi levado por acontecimentos tão imprevisíveis, havendo de assumir tamanhas responsabilidades. Era como se delas tivesse pleno conhecimento, ou não. Em carta ao pai reconheceu a grandeza do Brasil: Portugal é hoje em dia um estado de quarta ordem e necessitado, por consequência dependente; o Brasil é de primeira e independente ( ... ) Uma vez que o Brasil está persuadido desta verdade eterna, a separação do Brasil é inevitável, se Portugal não buscar todos os meios de se conciliar com êle, por todas as formas.
            Foram cartas diárias enviadas pelo Regente. De início, revelavam um D. Pedro saudoso, amantíssimo e súdito fiel a El Rei, seu pai, portador de um cauteloso respeito às Côrtes, sem vislumbrar mudanças graves no cenário recebido: tudo no pé em que estava. Diante das dificuldades financeiras que assumiu, no entanto, afirmava estar pronto a servir a nação e a sacrificar-se pela pátria. Mas ao mesmo tempo lamuriava-se, pedindo - por tudo quanto há de mais sagrado, o dispensasse de semelhante emprego. Mais adiante, o Príncipe Regente ponderava, quanto a realidade que teria de enfrentar: a independência tem-se querido cobrir comigo e com a tropa (mas) nem com a tropa, nem com êle conseguiriam jamais a independência, pois a sua honra era maior que todo o Brasil. O recado dado, porém, sinalizava outro sentido: queriam e dizem que me querem aclamar imperador..., assinalava o jovem Príncipe Regente. A sua preocupação diversionista era o de não se mostrar perjuro, dizendo e fazendo crer que seria sempre fiel ao rei, à nação e à Constituição portuguesa.
            Diante da tratativa política por parte das Côrtes de recolonizar o Brasil, o Príncipe revelando-se precavido, teria dito ao deputado do Brasil em Lisboa, Antônio Carlos, ao lhe comunicar a pressão que se avolumava: Proponham os deputados nas Côrtes o que quiserem, decretem, que tudo executarei prontamente a bem da nação. Quatro dias depois de as Côrtes lhe ordenarem a passagem do governo a uma Junta e o seu regresso para Lisboa, o Príncipe, mesmo opinando não querer mais influir no Brasil, mudou de opinião, para afirmar: Se a Constituição é fazer-nos mal, que leve o diabo tal coisa (...) Veja V. M. a que me expus pela nação e por V. M. Contraditoriamente, apesar de manifestas as intenções, prevalecia o sentimento de não voltar à Lisboa e, para isso, bastaria um pedido da Câmara de uma das Províncias, ressalvando: Torno a protestar às Côrtes e a V. M. que só a força será capaz de me fazer faltar ao meu dever, o que será mais sensível neste mundo.
            Enfim, não tardaria o desenlace da dúvida exposta tantas vezes. Comunicou em carta ao pai que, através do Procurador, as Câmaras, a nova e a velha reunidas, lhe solicitaram audiência, quando lhe admoestaram, segundo anotou: (...) que logo que eu desamparasse o Brasil, êle se tornaria independente e ficando eu, êle persistiria unido a Portugal. Eis o dilema em que se amparava o jovem Príncipe, ao que teria respostado: Para bem de todos e felicidade geral da nação (...) diga ao povo que fico.
            Em verdade, a verdadeira resposta que deu o Príncipe a José Clemente foi o de conjugar as intenções da Coroa e os anseios das Províncias do Centro-Sul, a fim de amenizar a reação das Côrtes: Convencido de que a presença da minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguêsa, e conhecendo que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorarei a minha saída até que as Côrtes e meu augusto pai e senhor deliberem com inteiro conhecimento das circunstâncias que têm ocorrido. Uma decisão realmente dita com encômios e sem arrogância.
           
           


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