08/10/2020

 

LEIAM A BÍBLIA

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

“Pois não me envergonho do evangelho de Cristo, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê.” Romanos 1.16.

 

Não li, em minha vida, tanto quanto gostaria de ter lido sobre autores das literaturas brasileira, francesa, portuguesa e inglesa – as minhas prediletas. Enveredei cedo pela política gastando o meu tempo e o latim. Mas selecionei e degustei obras preferidas. O tempo passou. Sem vocação para a advocacia não me interessei pelos filósofos e juristas. Admirava-os sem conhecê-los bem. As biografias dos grandes estadistas, os episódios marcantes da história da humanidade me alimentaram por algumas estações. Enfim, tenho do mundo uma visão humanista, política, administrativa e social. A chamada cultura bacharelesca sintonizada com o homem e o ambiente em que vive. Sou um provinciano saudosista ou memorialista, como queiram.

A leitura da Bíblia, desde a fase adolescente, pouco me seduzia, mesmo tendo estudado oito anos no Colégio Marista, ao qual muito devo a minha formação educacional e espiritual. Estudava-se a história sagrada de forma pedagógica dos livros da FDT. Quase não se compulsava a Bíblia. Percebo, hoje, o quanto isso me fez falta. Agora, na maturidade, senti uma imensa sede da palavra dos evangelhos, dos profetas, dos salmistas e das epístolas do maior de todos os apóstolos: Paulo de Tarso, o que fora perseguidor dos cristãos, que contribuiu para o martírio de Estêvão e que estava ao lado da guarda pretoriana quando Jesus foi crucificado. Aquele mesmo chamado depois por Cristo para receber o Espírito Santo de Deus e se tornar o mais importante pregador do cristianismo em diferentes partes do mundo até os nossos dias.

Ah! Como seria bom se ele pudesse pregar ao vivo, em Aparecida, São Paulo, perante os maiores dignitários deste mundo, realçando sempre acima dele, mais a Santíssima Trindade do que o homem mortal, como atualmente assim, não agem certos pregadores sem humildade através do aparato humano, do show gospel, da cantoria vulgar, da banalização do nome de Jesus Cristo e de falsos milagres por intermédio da televisão comercial. Se lhe fosse dada a chance de exortar que: “Só há um Senhor, uma só fé e um só batismo”. E que há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. “Sede uns para com os outros benignos, perdoando-vos uns aos outros como Deus vos perdoou em Cristo. Sede imitadores de Cristo e que ninguém vos engane com palavras vãs”. (Efésios).

Falta em muitos doutores das igrejas da modernidade o sentimento da humildade que o apóstolo Paulo detinha. Disse ele em Coríntios: “Sou o menor dos apóstolos e não sou digno de ser chamado apóstolo pois persegui a igreja de Deus”, apesar de Cristo viver nele. E se lhe dessem a oportunidade de falar na Rede Globo para todo o Brasil e principalmente para o Rio de Janeiro: “Se esperamos um Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos. Pois, Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir os sábios, e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir os fortes. E Deus escolheu as coisas vis deste mundo e as desprezíveis, e as que não são para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele”. Por isso, hoje proclamo: leiam a Bíblia. Além de instruir, ela santifica.

 

(*) Escritor.

 

 

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Bons profetas?
Jules Verne (1828-1905) – que é um dos pais do “roman d’antecipation”, um tipo de ficção científica que evoca as supostas realizações do amanhã – imaginou a sua Paris do futuro. Isso foi no já bem distante ano de 1863. Deu ao livro/romance o título de “Paris no século XX” (“Paris au XXe siècle”, no original).
A Paris de 1863, ao tempo de vida de Verne, era muito diferente da cidade que conhecemos hoje, muito embora estivessem começando as reformas urbanas empreendidas por Napoleão III (1808-1873) e pelo Barão Haussmann (1809-1891). Entretanto, como explica Jessica Powell, em “Literary Paris: a Guide” (The Little Bookroom, 2006), na Paris do visionário Verne, na sua “Paris do futuro”, existem “elevadores, música eletrônica, carros, computadores e trilhos suspensos, nos quais correm trens movidos a ar comprimido e forças eletromagnéticas. E embora ainda fossem as lâmpadas a gás que dominavam as ruas parisienses em 1860, Verne previu que elas seriam um dia substituídas pelo barulho da eletricidade – e mesmo em Notre Dame, onde ‘o altar brilhava com a luz elétrica, e feixes de mesma fonte escapavam do ostensório levantado pelas mãos do padre’”. Uma agradável modernidade, pode-se dizer, que vimos acontecer plenamente. Mas tudo tem seu preço, inclusive nos romances de Verne: nessa Paris no século XX, “o latim e o grego são ‘línguas não apenas mortas, mas também enterradas’, e a Academia Francesa – o clímax da cultura e literatura da França – não mais tem qualquer literato entre seus membros. Bancos substituíram os antigos monumentos culturais, e os grandes homens da cidade não são mais os poetas e os filósofos, mas, sim, aqueles que falam ‘em gramas e centímetros’”. Aqui já é um triste cenário.
Curiosamente, embora fosse talvez o primeiro grande passo na formulação do que chamamos de “roman d’antecipation”, “Paris no século XX”, à época (1863), teve sua publicação rejeitada. Aliás, o manuscrito só foi redescoberto no final do século XX, constando dele uma deveras desestimulante crítica do editor: “Se você fosse um profeta, ninguém hoje acreditaria nas suas profecias”. E o romance acabou sendo publicado tardiamente, só em 1989.
Esse editor, pelo que sei, foi Pierre-Jules Hetzel (1814-1886), que fez fama no ramo da literatura para a infância e a juventude. Certamente Hetzel não acreditava nas suas próprias palavras. E dizem que ele apenas rejeitou “Paris no século XX” por considerá-lo um romance depressivo, que não cairia bem no gosto do público pelas “viagens extraordinárias”. Até porque a parceria Verne-Hetzel – e a amizade, pode-se dizer – talvez seja sem igual na história da literatura. Como explica Bruno Blasselle, em “Histoire du livre: le triomphe de l’édition” (Gallimard, 2006, vol. 2), “se existe um autor no qual o progresso científico há inflamado a imaginação das pessoas, este é Jules Verne. A aventura começa em 1862, quando Hetzel recebe o manuscrito intitulado Voyage en l’air, inspirado nas experiências com balões de Nadar. O editor fareja o sucesso, demanda ao autor várias correções, rapidamente executadas, e o faz assinar ao fim do ano um primeiro contrato, por aquilo que viria a ser Cinq Semaines en Ballon. Um autor, o mais lido do século XIX, nasce. A colaboração e mesmo a amizade entre Hetzel e Jules Verne não se acabará jamais”.
Bom, Verne passa a entregar a Hetzel dois ou três títulos por ano. Uma produção espetacular. A lista é enorme. Os meus preferidos são “Viagem ao centro da terra” (“Voyage au centre de la terre”, 1864), “Vinte Mil Léguas Submarinas” (“Vingt mille lieues sous les mers”, 1870) e “A volta ao mundo em 80 dias” (“Le tour du monde en quatre-vingts jours”, 1873). E temos, ao final, as famosas “Viagens Extraordinárias” (“Voyages Extraordinaries”) do autor alegadamente mais traduzido da história.
Loas para Hetzel, ele também um visionário, que apostou nas profecias de Jules Verne. O resto é história. De e da ficção científica.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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01/10/2020

 

 

OS OITOCENTOS ANOS DE ASSIS

Valério Mesquita

Mesquita.valerio@gmail.com

 

Foi o momento mais terno e denso do senado da república. Nunca, lá, havia presenciado cenário semelhante. O senador Pedro Simon, tal qual um anjo da noite, discorreu da tribuna sobre a vida e o exemplo do santo e cidadão Francisco de Assis, que celebrava oitocentos anos de existência. O notável parlamentar gaúcho, elaborou um texto que emocionou a todos. O fundador da Ordem Franciscana, segundo ele, reeditou no tempo, através da caridade e do sofrimento, a vida do próprio Jesus Cristo, somente tendo lhe faltado as chagas da crucificação e a eugenia do Criador que somente o Filho Unigênito recebeu.

Num plenário calcinado por gestos menores, por retaliações pessoais, viu-se uma luz, um momento santificado, como se Deus ali tivesse permitido uma trégua. Como o Congresso Nacional se ergueria se recitasse e fizesse da oração de São Francisco o instrumento de sua paz e o encontro com a verdadeira missão de legislar em favor dos mais pobres? Na primeira década de 1.200, Francisco de Assis elaborou a sua carta a todas as nações da época, suplicando ajuda para estancar a fome e curar as doenças. Hoje, como ontem, Pedro Simon relembra o fato no sentido desse documento ser revivido entre as autoridades do país, em favor dos pobres, enfermos e oprimidos.

O santo italiano era de origem burguesa. Seu pai, rico comerciante, não entendeu quando o filho abandonou toda a riqueza para criar no mundo a mais completa situação de

 

humildade e caridade cristã: a “pobreza franciscana”. Ao final, num verdadeiro toque mágico e sobrenatural, a palavra de Simon se alçou ao patamar superior do seu grande mérito. Enquanto no mundo hodierno, os mais poderosos países do mundo sacam verdadeiras e colossais fortunas de bilhões de dólares para socorrer os papeis podres do mercado financeiro e bancos gananciosos – a humanidade pasma e estarrece ao concluir quanta fortuna as nações ricas armazenam em detrimento de milhões de seres humanos que passam privações e morrem de fome.

Esta é a grande reflexão a ser feita nesses oitocentos anos da vida de Francisco de Assis. A sovinez, a avareza, a indiferença dos governantes de hoje pelo sofrimento humano são de causar revolta, asco, choro e genuflexão contrita de perdão ao Pai Eterno pelo equívoco da raça humana. O senado brasileiro, naquela tarde/noite, pela voz gaúcha de pregador do senador Pedro Simon lembrando versículos, capítulos, salmos e epístolas, como se fosse de um novíssimo testamento, tornou-se, por instante, num templo de santidade e de denuncia contra o mundo moderno de perversidade e contradições. Vi a minha paz cósmica satisfeita.

(*) Escritor

 

 


30/09/2020

 Monsenhor Lucas. 50 anos de sacerdócio

Padre João Medeiros Filho
“A minha alma engrandece o Senhor, e meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 47), exclamou Maria, extasiada diante da grandeza divina invadindo a sua alma. O Evangelho não é mera narração histórica. É proclamação da perene Boa Nova ao coração do homem (cf. Lc 4, 43). Em Belém, a Mãe de Cristo foi testemunha da inefável gratuidade do Pai, quando viu na pessoa de seu Filho, o Messias tão esperado, presente na simplicidade e pureza de uma criança. Análogo mistério se manifestou em outro ser humano, há cinquenta anos, quando pela imposição das mãos de Dom Nivaldo Monte, em 26/09/1970, na Matriz de São Pedro do Alecrim (Natal/RN), Lucas Batista Neto tornou-se sacerdote do Altíssimo, “Tu es sacerdos in aeternum secundum ordinem Melquisedec” (Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec. Cf. Hb 5, 6). Graças e louvores lhe sejam dados por meio século de vida dedicado a Deus e ao seu Povo.
Lucas tem o toque de Deus e ama encontrá-Lo na beleza da Palavra. Não é apenas um sacerdote que lê a Sagrada Escritura. Ele a vivencia, por isso pediu para ser ordenado no mês dedicado à Bíblia. Não se trata de um religioso que recita o Ofício Divino. Encontra intimidade com Deus no Saltério. Não é um simples padre que cumpre o ritual da Eucaristia, mas um místico consciente da transcendência dos sacramentos e da liturgia. Por isso, entendemos a sua preocupação, em vários momentos, diante da superficialidade de tantos. Para ele tudo é manifestação do Sagrado. As aves do céu, os lírios do campo, as criaturas são uma sinfonia do grande Mistério. Tornar a vida bela e plena de sentido é uma das formas de oração!
Inúmeras são as virtudes e os carismas de Monsenhor Lucas. Encanta-nos o seu jeito de ser: espontâneo, disponível, manso e humilde. Sofre, quando precisa dizer não. Coloca-se diante de Deus numa singeleza, que nos faz lembrar Santa Edith Stein: “Ó doce Luz, que iluminas as trevas do meu coração. Tu me guias como uma mãe. Se eu me afastasse de Ti, não conseguiria dar um passo a mais”. Devemos elevar ao Pai Celestial nossa prece de reconhecimento e gratidão por tudo aquilo que nosso querido sacerdote representa para os cristãos da Arquidiocese de Natal e também do Rio Grande do Norte.
Suas palavras sacerdotais nos enriquecem e suas preces nos fortalecem. É preciso rezar pelos homens e pelo mundo. Muitos acumulam fortunas, mas mendigam o pão da alegria. Tantos são eruditos, mas lhes falta a paz tão necessária e desejada. Vários detêm poder e glória, mas carecem do essencial: Deus. “Só Ele é necessário”, afirmou Roger Garaudy, não obstante se considerar ateu. Vivemos num mundo, onde a solidão se alastra. As pessoas conhecem diversas línguas, mas desconhecem a linguagem do amor. Parecem próximas em virtude das redes sociais, da mídia e da globalização. Mas, não raro, essa proximidade é ilusória, pois são insensíveis. Monsenhor Lucas tem sido um elo entre Deus e os homens. Segue Maria Santíssima, que, em prece silenciosa, se tornou ponte entre o Eterno e o efêmero, o Divino e o humano. Fervorosamente, Lucas eleva a sua oração, intercedendo por nós. Lembra-se do que dissera Romano Guardini: “Uma coisa tu podes e deves fazer: rezar. Deus escutará a tua prece de homem sofrido”.
Em suas súplicas sentimos a sua sintonia com Raissa Maritain: “Meu Senhor e meu Deus, só em Ti encontro encanto, pois sei da tua incomensurável bondade e da tua misericórdia infinita”. Deus ilumine sempre o coração de nosso caríssimo pastor, fortaleça a sua alma, console-o nas tribulações e aumente a sua fé na graça divina, que transforma o homem e o mundo! O Senhor o proteja e transborde sua vida de bênçãos e sede do Infinito, envolvido na poesia e na beleza da Criação. Nossa Senhora lhe dê cada vez mais a certeza do quanto o Pai nos ama e opera em nós maravilhas, porque “Santo é o seu nome!”´(Lc 1, 49).

29/09/2020

 

Elefantes brancos no Elefante Potiguar

Tomislav R. Femenick - Jornalista

 

Partindo da premissa de que o nosso Estado é um dos menores e mais pobres do país, é lógico se pensar com parcimônia no que gastar os parcos recursos de que dispomos. Mais lógico ainda é que se empreguem nossas pobres riquezas em projetos que gerem bem-estar para a população e que possam alavancar nossa renda, através de aumento da produção agropecuária, extrativista, industrial, comercial e de prestação de serviços.

Entretanto, a realidade não é bem assim. Entram governos, saem governos, e o que impera é a construção de “elefantes brancos” que consomem nossos impostos em obras faraônicas e sem serventia, ou, quando muito são empreendimentos que usam apenas parte de suas respectivas capacidades produtivas ou de geração de conforto para nós potiguares. Vejamos alguns exemplos.

O caso exemplar é o Aeroporto Aluízio Alves, localizado em São Gonçalo do Amarante, e que tinha por mote servir a população da região metropolitana de Natal e, por extensão, de todo o Estado. Tudo indicava que fosse mais do que uma superfície terrestre dotada de pista, prédios e equipamentos necessários ao embarque e desembarque de passageiros e cargas; fosse mais que um simples aeródromo. Uma série de fatores apontava esse “algo mais”. Tem a localização privilegiada e a tendência mundial das empresas aéreas de adotarem para suas rotas a logística conhecida como “hub-and-spoke”, usando um aeroporto como ponto de conexões de suas rotas. Não foi o que aconteceu. O aeroporto de Recife, e não o nosso, assumiu este posto. Restaram-nos as agruras de um aeroporto longe, que exigiu investimentos em estradas de acesso. E lá se foram mais gastos públicos.

Outro “nó górdio” foi a Ponte Newton Navarro, necessária como nova ligação do centro à zona norte da capital, já que a ponte de Igapó estava saturada. O problema é que a nova ponte é baixa e não permite a passagem dos grandes transatlânticos. Mesmo assim, o porto de Natal foi dragado e foi construído um moderno e caro Terminal de Passageiros, que custou R$ 74 milhões, até hoje só parcialmente utilizado, quando o é. Por falar no Porto, há também há um terminal pesqueiro, no qual foram investidos R$ 28,1 milhões, cuja situação atual de uso é de “estudo”.

Agora vem o “crème de la crème”, a imponente Arena das Dunas, erguida para a Copa de 2014. São 77.783,50 m² de área construída, que ocupa um terreno de 114.063 m² e tem capacidade para 31.375 pessoas, com custo de ‎R$ 423 milhões. Imponente e belo, ocupa o espaço em que antes existia o recém reformado Estádio João Machado. O problema é outro: um belo palácio que realça a precariedade do futebol potiguar. Os dois principais clubes do Estado, o América e o ABC, patinam, quando muito, entre a série “D” e “C”. Traduzindo a situação: é como se os pobres de Paris visitassem o Palácio de Versalhes.

Para driblar a escassez de futebol, a Arena se transformou em espaço multiuso. Lá são realizados shows musicais, espetáculos circenses, quadrilhas juninas e o escambau. Mesmo assim, a operação é deficitária. Sabe quem cobre o rombo? O Erário do governo do Rio Grande do Norte. Um estudo da Controladoria Geral do Estado calcula que nós, o povo potiguar (através do governo do Estado, que usa os nossos impostos para isso), já pagamos à OAS, construtora e operadora da Arena das Dunas, a bagatela de R$ 707 milhões.

Enquanto isso, o Estado está inadimplente com seus funcionários. Há duas folhas de salários atrasadas há cerca de dois anos e sem previsão de quitação. Falta dinheiro para a gasolina dos veículos da saúde e da segurança pública. Nas unidades regulares de saúde falta tudo; algodão, gases, mertiolate. Nas escolas (agora fechadas) há necessidades de reformas, faltam giz, cadernos, livros e lápis. Na Secretaria de Segurança faltam pessoal, coletes à prova de balas, armamento moderno e até a munição é regrada.

A primeira obrigação de qualquer governo é fazer seu povo feliz, não iludido. O Aeroporto de São Gonçalo enchouriçou a vida dos passageiros; a ponte Newton Navarro (por não telas de proteção), virou ponto de suicídios; a Arena virou apenas dunas. 

 

Tribuna do Norte. Natal, 27 set. 2020

 

 

 

 


 


Uma distopia?
Na querida Aliança Francesa de Natal, onde estudamos o idioma de Jules Verne (1828-1905), conversamos estes dias sobre as “cidades do futuro”. Tema importantíssimo, já que, segundo consta do nosso livro/curso, se no começo do século XIX apenas 2% da população mundial vivia em cidades, esse percentual será de 66% lá pelo ano 2050.
Mas como serão, então, essas cidades do amanhã? Segundo o nosso livro/curso, é possível apresentar quatro grandes tendências de evolução das cidades: (i) a criação de espaços verdes, inclusive para fins alimentares, integrados aos imóveis residenciais e comerciais; (ii) bairros ou cidades inteiras autossustentáveis energeticamente; (iii) uma mobilidade urbana muito mais diversificada e conectada; (iv) e, com o desenvolvimento galopante das tecnologias, a existência de um verdadeiro big data urbano. Até aí tudo bem. Parece um cenário positivo.
O problema é que os próprios especialistas estão preocupados com essa última tendência. As vantagens de uma cidade “inteligente” são inegáveis. Conforto e segurança serão dois pontos bem positivos. Mas isso pode cair no exagero. Numa videovigilância quase total. Pelo governo, por gigantescas empresas ou por um algoritmo qualquer. Uma sociedade pan-óptica. Um Big Brother. Em detrimento do cidadão e da democracia. Da privacidade e das liberdades civis.
E foi aí que a conversa caminhou para aquilo que eu mais gosto: a literatura. Por sugestão da própria professora, começamos a discutir o que os franceses chamam de “roman d’antecipation”, um tipo de ficção científica que “evoca as supostas realizações do futuro. Que se apoia no estado atual da ciência, da tecnologia e da sociedade, e imagina as suas consequências num futuro mais ou menos próximo”. E talvez seja Jules Verne, citado acima, o primeiro nome que nos vem à mente quando tratamos desse tipo de literatura.
Se não me engano, falamos de livros/distopias como “Admirável mundo novo” (“Brave New World”, 1932), de Aldous Huxley (1894-1963), que imagina, para a Londres do ano 2540, uma sociedade inflexível, condicionada física e emocionalmente, por critérios reprodutivos e de nascimento artificialmente estabelecidos. De “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury (1920-2012), que descreve um futuro em que os livros são proibidos e queimados, o pensamento crítico e as opiniões próprias são vedadas. Uma América anti-intelectual, pode-se dizer, sem suspeitar qualquer paralelo com o estado atual das coisas por lá. E, claro, de “1984” (“Nineteen Eighty-Four”, 1949), de George Orwell (1903-1950), que mostra o cenário de uma sociedade totalitária futura, sob a dominação do “Partido”, em um mundo pós-guerra nuclear total. Um ambiente de total monitoramento, no qual o “Big Brother is watching you”.
Todavia, para mim, a coisa mais interessante se deu com a apresentação de um romance distópico que eu não conhecia: “Les Furtifs”, de Alain Damasio (1969-), lançado pelas Éditions La Volte, quase agora, em 2019. Novíssimo, portanto. E sem tradução para nosso português.
Basicamente, num futuro próximo, as cidades que hoje conhecemos foram adquiridas por multinacionais. Paris pela LVMH, Lyon pela Nestlé, Cannes pela Warner e por aí vai. Com todas as consequências disso decorrentes, como a expulsão dos habitantes de suas moradias, o super encarecimento destas, o fim da democracia comunal etc. Há quem ache bom. Mas há também quem resista. Na cidade de/a Orange, isso se dá. Há os “furtivos”, criaturas extraordinárias que, mimetizando animais, plantas e minerais, misturam-se ao ambiente e escondem-se da nossa visão. E há a história pessoal de um pai em busca da filha desaparecida, alegadamente sequestrada pelas tais criaturas quase invisíveis. O romance foi muito bem recebido. Vendeu bem, críticas positivas (em especial quanto à riqueza do vocabulário, certamente por isso sugerido no nosso curso de francês) e já recebeu alguns prêmios. Quero ler, sem dúvida.
Só uma coisa me encafifou: com essa ideia (de alguns) de privatizar de tudo e mais um pouco, será mesmo “Les Furtifs” apenas uma distopia?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

22/09/2020

 

gustavosobral

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Relíquias que contam a história, o Instituto Pro-Memória

 

Um homem e a sua obra

Patrimônio

 

Macaíba, 17 de setembro de 2020. O sol já ia alto e ventava em setembro como se ainda fosse agosto. Na entrada da cidade, obras na estrada, e o busto de Augusto Severo, impávido, como se estivesse como o aviador a ver o mundo de um balão, indiferente às mudanças.

 

 

A cidade caminhava um dia de semana, o comércio agitado, no centro.  A fachada da igrejinha e o prédio da prefeitura restavam como uma lembrança do passado até que, mais adiante, no fim de uma rua sem fim, uma pequena casa sem azulejo na fachada, portão de alumino ou vidraças, recebia o vento e a luz da manhã de sol.

 

 

À sombra da buganvília, a casa parava o tempo como no tempo que só ela existia e tudo aquilo era um descampado. A casa restou como coisa de dois séculos passados. A data está presente: 1856. É o Solar Caxangá, Instituto Pro-Memória de Macaíba.

 

 

As paredes, as portas, os vãos, os caibros, nada mudou e a casa está lá, e como tudo que fica no tempo exigiu os reparos necessários e o acompanhamento do arquiteto Ubirajara Galvão que, incrédulo, orientava o processo de recuperação e restauração, nos conta Olimpio Maciel, da porta, o homem que fez da casa um instituto e do instituto um memorial do Rio Grande do Norte.

 

 

É o Rio Grande do Norte e a sua Macaíba no retrato das velhas figuras, em bustos, no mobiliário que conta não só outros tempos, mas outros usos nos objetos de ontem como uma carteira escolar, um gramofone, uma máquina fotográfica, e tantas outras peças, sem contar os livros.

 

Tudo parece imóvel, indistinguível, estático, mas tudo ganha vida quando Olímpio Maciel deita um olhar sobre uma peça ou é indagado acerca disto ou daquilo que ali está. Então, os retratos ganham nome, lugar, data, as famílias recuperam os seus parentescos, os artistas revivem em suas obras, tudo ganha vida.

 

O instituto de Olimpio Maciel é um projeto inovador, pioneiro, único, de um homem que, não só como médico radiologista, salvou vidas ao diagnosticar os seus pacientes, mas que fez para Macaíba e para o Rio Grande do Norte o que cada município deveria ter, um santuário da sua vida cultural, das suas figuras, dos seus artistas, dos seus nomes, um espaço dedicado ao passado.

 

 

E, assim, o médico, no seu silencioso oficio de colecionador, construiu a sua obra. Salvou durante toda a sua vida a memória e a cultura do Rio Grande do Norte que hoje ele reúne no seu acervo e apresenta no seu museu. Um gesto que deveria não só ser copiado a torto e a direito mas que também deveria ser tombado como patrimônio cultural.

 

Para mais informações, navegue: http://www.institutojosejorgemaciel.org.br/

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