30/04/2018

RESENHA DAS ATIVIDADES DO IHGRN



 O dia 19 de abril foi de mais uma edição da QUINTA CULTURAL
 A palestrante convidada foi a Professora e Pesquisadora ZÉLIA BRITO, 
desenvolvendo o tema "O Atol das Rocas".
 vista parcial dos assistentes
 Nossas QUINTAS CULTURAIS vem sendo consideradas
 um sucesso de conhecimentos.

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 Na manhã do dia 23 deste abril recebemos a visita de cortesia do ilustre do presidente da OAB/RN Paulo Coutinho.  Na mesma ocasião, também esteve em nosso Instituto do insigne magistrado, juiz federal Francisco Eduardo Guimarães, que nos presenteou com alguns livros históricos do ano de 1800. 

 Constituição Portuguesa de 1821. 
 Relíquias de valor inestimável.

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Nosso jardim do Largo Vicente de Lemos vem oferecendo, 
diariamente, um alento especial com flores exuberantes, 
que ornamentam nossos ambientes.
  




IHGRN, a biblioteca e a bibliotecária

Entrevista com Cristiane França 
A diretoria de Biblioteca, Arquivo e Museu conversou com a bibliotecária Cristina França, formada em biblioteconomia pela UFRN em 2015.2, que tem participado do processo de reestruturação do acervo do IHGRN. A entrevista foi realizada em março de 2018, no IHGRN, o entrevistador é o diretor Gustavo Sobral.


IHGRN: Em que consiste o trabalho de um bibliotecário em um acervo híbrido como o IHGRN?

Cristiane França: Assim como nos demais centros de informação, recuperar, tratar e disseminar a informação, é o principal objetivo do bibliotecário. A diversidade do acervo agrega um vasto conhecimento, não só técnico, mas também intelectual para o profissional. Em se tratando do IHGRN, é de suma importância conscientizar a sociedade, sobre a importância e qualidade da biblioteca e do arquivo da instituição.


IHGRN: Qual a importância e o papel do bibliotecário na organização, guarda e manutenção do acervo?

Cristiane França: O profissional bibliotecário tem papel fundamental, principalmente, na organização e catalogação do acervo, evitando o desperdício de tempo do usuário na hora da busca. O bibliotecário tem a missão de garantir a qualidade da informação através do conhecimento e técnicas adquiridos na sua formação.


IHGRN: Quais a s principais dificuldades que um bibliotecário encontra nas suas atividades diárias?

Cristiane França: Identificar e selecionar a informação, ter a percepção sobre os usuários reais e potenciais, afim de satisfazer a necessidade informacional de cada um. A extensa demanda de informações ocasionada pelo avanço tecnológico, dificulta esse trabalho, o que exige habilidades e atualização do profissional.


IHGRN: Qual a sua opinião sobre a importância do IHGRN e do seu acervo para o Rio Grande do Norte?

Cristiane França: O IHGRN, representando a memória do Estado, proporciona o conhecimento quanto ao seu desenvolvimento, histórico e geográfico, principalmente, através do seu rico acervo, contribuindo junto a sociedade para sua formação intelectual, e valorização a memória.


IHGRN: Lições, desafios, aprendizados, o que representa participar deste processo de organização do acervo do IHGRN?

Cristiane França: É de valor imensurável colaborar com tão nobre trabalho e adquirir experiência profissional numa instituição de referência como o IHGRN. Um privilégio e uma oportunidade de, como cidadã norte-rio-grandense, conhecer a história do Rio Grande do Norte e contribuir para a sua disseminação.



Para se esparramar, poltrona


Texto Gustavo Sobral e ilustração de Arthur Seabra

Sua diferença para a cadeira é a de ter braços. Então se pode dizer que a cadeira é uma poltrona maneta. Mas não é só. A cadeira serve muito mais ao uso na mesa de refeições, para a escrivaninha ou mesa de trabalho.  Já a poltrona, ah, a poltrona!, com licença, é como aquelas senhoras sorridentes, matronas, uma mãezona. Geralmente acolchoada já indica para que veio, sente-se e fique é o comando. 

O conforto incita à permanência e demora, por isso, está no quarto, ao lado de uma mesinha com abajur esperando um leitor; ou a avó que vai bordar; e até a mãe que vai amamentar o filho.  Pode estar na sala de visitas, esperando justamente elas, as visitas.

Conta que de tão confortáveis já teve sujeito que puxou ronco e cochilo em suas dependências reconfortantes. E que um dia um fotógrafo necessitado de repousou outra encomenda a Sérgio Rodrigues, arquiteto brasileiro: quero uma poltrona para me esparramar!

Sérgio, que tinha loja na General Osório (praça em Ipanema, Rio de Janeiro, Brasil), fez então uma poltrona com os seus instrumentos de trabalho prancheta, régua e lápis, uma borrachada aqui, outra acolá. Do papel, levou para a fabricação em madeira e couro a que se julga (peça premiada, se adianta, e em museu em Nova Iorque, o de arte moderna) a coisa mais confortável para se reclinar.  Na verdade, para cumprir totalmente o propósito de se esparrar sem inibições.


Eis então a famosa, afamada, falada, sentada, disputada, colecionada, sonho de consumo, Poltrona Mole. E como não poderia deixar de ser, nada de capítulo à parte, uma banqueta no mesmo material e estilo  para que possam os pés cansados se refastelarem de conforto. Assim, a Mole ficou conjugada para sempre escrevendo o maior capítulo do mobiliário brasileiro, aquele que se dedica totalmente ao conforto de esparramar, que, sem sombra de dúvidas, é muito melhor do que sentar.

O POETA E O CAIS – Berilo de Castro

O POETA E O CAIS – 
O poeta e escritor Nei Leandro de Castro, sempre que volta a Natal, nas suas boas vindas da cidade do Rio de Janeiro, se une aos seus velhos e inesquecíveis amigos, com os quais procura revisitar e reviver aqueles lugares que jamais esquecera quando da sua permanência na cidade dos Reis Magos. A memória exige e reclama.
O início de sua peregrinação se dá pela rua Professor Zuza, casa de número 254, uma de suas primeiras paradas, quando deixou a sua cidade berço: Caicó. Lembra com sorrisos das embustices  exageradas dos seus personagens inesquecíveis: Galego Assis, de Pedro Bala, do primo Itamar; da mercearia de seu Matias, com suas gostosas e irresistíveis cocadas.
Volta no tempo e se deslumbra com o rio Potengi;  recorda das travessias de barco para a praia da Redinha; revive os seus momentos da infância feliz, quando ia pescar nos navios velhos, nos quebra-mares do outro lado do rio; das incursões nos  desconhecidos braços d’água  da Gamboa do Jaguaribe. Relembra a caça aos caranguejos nas marés altas, quando eles deixam suas locas e ficam de bobeira na superfície do manquezal. Volta ao Mercado da Redinha para saborear a iguaria famosa e inigualável: ginga com tapioca, acompanhada de uma geladinha, no bar de Dalila, em papos infindáveis com o fraterno amigo, Castilho.
Nessas suas andanças, revisita o centenário Estádio Juvenal Lamartine, onde como jovem atleta atuou no time juvenil do América FC, treinado por Lelé Galvão e Lu. Dizia: estou recarregando a bateria e enchendo a alma de boas e inesquecíveis recordações.
Em um desses felizes reencontros se vê na localidade da Ponta do Morcego, Praia do Meio, no bar Cais 43, recanto deslumbrante de boêmios, de paisagem indescritível do mar com a cidade. O poeta, entre um drinque e outro, na solidão da noite, tendo como testemunha a sua fiel e enamorada parceira – a lua –, escreveu em um guardanapo de papel o poema SAUDADE DE PEDRA:
         Nesta saudade de pedra
         Eu, exilado de mim
         Plantei solidão, colhi dálias, lírios e
         jasmins
         Sobre as águas vinha a lua
         Lá das bandas da Redinha
         Deu-lhe as flores,
         Perguntei se ela queria ser minha
         Em silêncio ela se foi
         Nua, bela, branca, em paz
         Só me restou mais um drinque
         À beira do caos do cais.
O  poema ficou exposto no mural daquela casa noturna, admirado, documentado e declamado pelos seus frequentadores boêmios. Um deles, Vicente Neto, um poeta musical bissexto. Cantor amador, amante da boa música. De uma voz encantadora. Ao ler e reler o poema, ficou encantado e lhe veio de imediato a inspiração de musicá-lo. Colocou melodia e a sua admirável voz transformando o poema “Saudade de pedra”, em uma belíssima Canção.
Composição: Saudade de pedra (do poema de Nei Leandro de Castro) – Música/Intérprete: Vicente Neto – 2010
Berilo de Castro – Médico e Escritor
As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores

28/04/2018


MEROS PALPITES

Valério Mesquita*

O mundo virou bando de interesses guardados por polícia. E com ele a lei, os direitos individuais, o patrimônio público e até o crime, vez por outra. Os códigos instituídos pelos homens e os mandamentos de Deus são quebrados todos os dias, minuto a minuto. O facínora, o bandido dos crimes hediondos, têm como defesa “os direitos humanos”, as ONGs e até ministério. Há mais direitos para eles do que para os cidadãos e cidadãs comuns. O sistema prisional e as penas aplicadas são uma lástima e não corrigem e nem despencam as estatísticas criminais. Antes, são estimulantes para novas práticas e revoltas. Bem, e daí? Aonde quero chegar? Bom, o assunto é tão emblemático que nem sei se chegarei à sua conclusão. Por isso, intitulei o texto de “meros palpites”, abordagem ligeira e descomprometida, tudo à luz da experiência de vida, debruçado à janela, lendo jornais e vendo a máquina mortífera chamada televisão. Começo perguntando: o estado brasileiro está falido no enfrentamento dos desafios sociais, principalmente a saúde e a segurança? Não. Não está. O problema é de gerência, de competência. O regime democrático é lento e o organismo corroído de chagas é de caríssima manutenção. Anotem: na próxima crise econômica de origem européia ou americana o nosso país pifará. Essa ordem (ou desordem?) econômica explodirá, pois a impunidade que campeia já acendeu o estopim, baldados os esforços do Ministério Público e da Polícia Federal. O abuso de concessão de liminares aí está para confirmar. Os tribunais de contas votam criteriosamente intervenções municipais em prefeituras corruptas, mas os governos estaduais não executam as decisões por conveniência política. Nos hospitais públicos a pobreza morre à mingua, abandonada com dores físicas e morais insuportáveis porque o deficitário sistema único de saúde não dá votos e sim o “bolsa família” e a dinheirama drenada e desviada das “emendas parlamentares”.
Semana passada, uma senhora que reside num condomínio se lastimava com piedade de um marginal, detido por populares em flagrante. Levou uma merecida sova. Aliás, a única punição que receberá realmente. “Minha senhora”, disse-lhe, “deixe o povo aprender a punir, porque a dor física é a única que mete medo”. Aí me lembrei que foi a dor do corpo (para mostrar a única fragilidade veraz do ser humano) aquela escolhida pelo filho de Deus – Jesus – para redimir os pecados do mundo. Esbofeteado, cravado de espinhos, cuspido, furado com pregos os pés e as mãos, e crucificado. E Pilatos, simbolizando “liminarmente” a justiça romana e judia de Caifás, lavou as mãos “diante do sangue desse inocente”. Jesus deixou-se condenar porque assim estava escrito e predestinado. Mas os homicidas diabólicos do mundanismo de hoje, verdadeiros animais e os ladrões de colarinho branco são tratados com pachorra e facúndia, com homenagens de praxe e de apreço frutos de uma legislação fáctil, fóssil, fútil e fácil. E assim, já dizia o comerciante assuense Luis Rosas, que desfrutou de grande riqueza e, depois tendo perdido tudo, foi surpreendido por amigos vendendo avoetes na feira das Rocas, em Natal: “Amigos, não se preocupem, tudo é comércio!”.

(*) Escritor

25/04/2018

COISAS DO PASSADO


Sinhazinha do bolo de São João


Por Gustavo Sobral

Noite e a festa de São João ao pé da fogueira com balões que faziam o céu e o Recife. Na casa da Bela Vista preparava-se o bolo. Belina, Lourdes, Abigail e as filhas de Sinhazinha, Candinha e Ilda, cada uma, uma tigela. Sinhazinha colocava manteiga, batabatabatabatabata, daqui a pouco o açúcar, batabatabatabatabata. Já coloquei ovo ai, mamãe a senhora já botou, não botei não, e pá, botava mais ovo, e essas meninas não fazem nada que preste, está uma porcaria, olhe só como é que é que isso ai está, no fim os bolos não prestavam para nada.




24/04/2018


 
   
Marcelo Alves

 

Os comentaristas (II)

Se na semana passada tratamos da história e dos principais personagens da chamada “Escola dos Comentaristas”, chegou a hora de explicarmos, mesmo que resumidamente, as razões da difusão e do triunfo, no fim da Idade Média, do método dos “comentaristas” ou “italiano” (“mos italicus”) de enxergar e trabalhar o direito romano. 

Antes de mais nada, o surgimento e consolidação da Escola dos Comentaristas foi uma resposta aos novos tempos – de forte crescimento citadino e mercantil em fins do século XIII e, sobretudo, nos dois séculos seguintes –, para os quais o método essencialmente teórico dos glosadores já não tinha mais valia. Fazia-se necessário adaptar o direito romano redescoberto à vida, mais precisamente às novas instituições e direitos locais (em especial os estatutos das cidades italianas em veloz crescimento) que emergiam Europa afora. 

Para tanto, estavam a postos os tais comentaristas, que, embora rendessem todas as homenagens ao direito romano, não tinham para com este a veneração quase sagrada que era comum aos glosadores. Mais realistas, os comentaristas estavam dispostos a se debruçar sobre todo o arcabouço jurídico de então – o direito romano redescoberto, o direito canónico, o direito feudal, os vários estatutos citadinos – e, orientados por finalidades essencialmente práticas, unificá-lo e prepará-lo para as necessidades políticas, sociais e econômicas deste entardecer da Idade Média. O próprio Bartolo, como registra Jean-Marie Carbasse em “Manuel d'introduction historique au droit” (Presses Universitaire de France – Puf, 2017), “considera a compilação justiniana como um vasto reservatório de palavras e conceitos no qual o jurista poderia trabalhar à sua própria conta. Ela não é mais que uma matéria-prima própria a ser refundida em vistas de compor um novo direito. Assim, Bartolo não hesita em fazer uso de outras fontes, concorrentemente às fontes romanas, em particular os estatutos municipais das cidades italianas e o direito canônico”. 

Ademais, ao contrário do caráter assistemático do trabalho dos glosadores (que não tinham um cuidado maior em interligar e harmonizar a análise dos vários textos glosados), nesse contexto de integração de várias ordens jurídicas, uma das maiores preocupações dos comentaristas era dar à sua obra de interpretação e criação do direito um caráter sistemático e harmônico. Como explica António Manuel Hespanha em “Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações Europa-América, 1998), com a expansão desse “novo tipo de vida econômica e social a regiões cada vez mais vastas e com estabelecimento de laços comerciais intercitadinos e inter-estaduais, tornou-se necessário que estes princípios de direito novo introduzidos pelos iura-propria nas cidades italianas fossem integrados no ius commune (romano-justinianeu) e que este, de um amontoado de normas (agora) de proveniência diversa (romano-justinianeu, romano-vulgares, canônicas e estatutárias), se transformasse num corpo orgânico dominado por princípios sistematizadores, que correspondesse ao ideal intelectual de um discurso orgânico, embora, como dissemos, respeitador dos pontos de vista dissonantes. Está, portanto, em pleno desenvolvimento um processo de integração de princípios novos – oriundos de necessidades de novos estímulos sociais (aqui incluídos os culturais) e inicialmente incorporados nos direitos próprios, mais sensíveis à vida – no ius commune. O ideal de concórdia legislativa é perseguido pelos juristas não só no limite do direito romano-justinianeu (objectivo que, como vimos, não era de todo estranho aos glosadores), mas relativamente a todo o ordenamento jurídico positivo. A contínua referência, a partir do século XIV, ao direito antigo e ao direito novo, e, sobretudo, ao problema das suas relações mútuas, reflecte plenamente o processo histórico de actualização e alargamento do direito comum”. 

É importantíssimo frisar que, nessa nova aventura intelectual, os comentaristas fazem uso de processos racionais cuidadosamente disciplinados por regras de lógica, retiradas dos filósofos clássicos – de Aristóteles, sobretudo – e da escolástica tomística em voga, o que era, para os fins do direito, algo inédito até então. Essa foi uma ferramenta filosófica fundamental para uma empreita desse jaez, que exigia uma mentalidade analítica e, sobretudo, uma enorme capacidade de construção e sistematização de conceitos. 

O bom fruto disso tudo é visível na qualidade emprestada aos comentários, frequentemente extensos, dos textos romanos refundidos. Peguemos o caso do multicitado Bartolo. Ele foi, sem dúvida, um grande inovador do direito, tendo construído inúmeros novos conceitos jurídicos e sistematizado outros tantos, derivados do direito romano redescoberto, que chegaram aos nossos dias. No direito constitucional, por exemplo, é célebre a doutrina “bartolista” acerca das relações e das divisões de poder entre as grandes entidades políticas (a exemplo dos impérios e das nações) e as coletividades regionais ou locais (cujo exemplo mais visível seria a cidade). Também é célebre a doutrina “bartolista” concernente ao “conflito entre leis” – que se dá entre sujeitos de direito residentes em diferentes jurisdições, com sistemas legais próprios e frequentemente conflitantes –, citada e repetida por séculos, que está na origem de muitas das doutrinas contemporâneas do direito internacional privado. 

Por fim, apesar da propensão reformista dos comentaristas em comparação aos glosadores, ainda aqui se mantém a ideia de que o direito, fundado sobretudo no direito romano redescoberto, é um repositório da experiência humana e um conjunto de normas que o intérprete pouco pode alterar. A ordem jurídica dada era algo basicamente indiscutível, mesmo quando ela se mostrava desatualizada. Toda e qualquer sistematização ou mudança, se é que ela era possível, tinha de ser efetuada dentro dessa ordem jurídica prefixada autoritariamente fazia séculos. 

De toda sorte, tudo – ou quase tudo, vão dizer alguns – tem um fim. Não foi diferente com a Escola dos Comentaristas. Como anota Paulo Jorge de Lima em “Dicionário de filosofia do direito” (Sugestões Literárias S.A., 1968), ao final do século XV, essa “escola estava em decadência, hostilizada pelos humanistas, os quais, voltados para o estudo da Antiguidade clássica, passaram a combater os juristas medievais, censurando-lhes o uso do método escolástico, o emprego do latim bárbaro e o desconhecimento das letras, da história e das instituições antigas. A obra de Giasone del Maino, apontado como o derradeiro dos comentaristas, mestre de Andrea Alciato, prenunciava já a nova orientação da chamada Culta Jurisprudências do período renascentista”. Mas isso é outra história. 

Marcelo Alves Dias de Souza 
Procurador Regional da República 
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL 
Mestre em Direito pela PUC/SP
   
Marcelo Alves



Os glosadores (II)

No artigo da semana passada, nós tratamos aqui da “Escola dos Glosadores”, também apelidada de “Escola de Bolonha”, que, em fins do século XI e durante os séculos XII e XIII, dedicou-se à aventura de “redescobrir” o direito romano (leia-se: o “Corpus Iuris Civilis” do Imperador Justiniano), estudando-o com propósitos essencialmente teóricos. Focou-se essencialmente na história da Escola e nas biografias (muito mais que resumidas) dos seus luminares, entre eles o lendário Pepo, o fundador Irnério e seus discípulos Búlgaro, Martinho, Jacobo e Hugo, passando por Rogério, Pillio da Medicina, o Piacentino e João Bassiano, e terminando com Azzone e Acurssio, aquele professor deste último, que, por sua vez, já mestre, se fez o representante máximo dessa jurídica medieval. E deixou-se para hoje a análise propriamente dita do método dos glosadores, em termos de forma, conteúdo e resultado. 

Formalmente, o trabalho dos glosadores assemelhava-se ao dos gramáticos de então: visava a explicação de um texto, neste caso, o texto da compilação de Justiniano. O mestre lia o texto e parava em frase ou mesmo palavra importante ou difícil, para propor uma explicação, ou seja, uma “glosa”. Como explica Jean-Marie Carbasse em “Manuel d'introduction historique au droit” (Presses Universitaire de France – Puf, 2017), “essas glosas, primeiro orais, eram em seguida manuscritas, quer pelos próprios mestres (e, nesse caso, fala-se de uma glosa “redigida”, glossa redacta), quer por um ouvinte, qualificado de “repórter” (reportator: e agora se fala de uma glosa reportada, glossa reportata). As glosas eram algumas vezes anotadas entre as linhas do texto [justinianeu] (glosas interlineares) e, mais frequentemente, à margem deste (glosas marginais). Elas eram em geral identificáveis: o seu autor era mencionado por sua sigla (uma abreviação do seu nome, por exemplo W. para Irnerius/Wernerius, M. para Martinus, Pla. para Placentin, etc.) posta ao final da glosa”. 

Do dito acima, dessa análise texto a texto, palavra a palavra, intui-se o carácter analítico e, sobretudo, não sistemático da coisa. De fato, os glosadores faziam análises isoladas de cada passagem do texto, primeiramente a partir das suas “leituras” (a já referida oralidade), em seguida postas no papel sob a forma de glosas interlineares ou marginais e, só muito raramente, sob a forma de texto mais completo, chamado de “apparatus”. Parece mesmo natural que uma atividade intelectual desse tipo se desenvolva, em regra, sem uma preocupação maior em interligar e harmonizar a análise – e o produto desta, por consequência – dos vários textos glosados. 

Quanto ao conteúdo/resultado das glosas, o método bolonhês primava pela fidelidade ao texto de Justiniano. Como relata António Manuel Hespanha, em “Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações Europa-América, 1998), era predominante a ideia entre os glosadores “de que os textos justinianeus tinham uma origem quase sagrada, pelo que seria uma ousadia inadmissível ir além de uma actividade puramente interpretativa destes textos. A actividade dos juristas devia consistir, portanto, numa interpretatio cuidadosa e humilde, destinada a esclarecer o sentido das palavras (verba tenere) e, para além disso, a captar o sentido que estas encerravam (sensum eligere)”. 

Apesar do caráter assistemático dos seus trabalhos e da fidelidade quase religiosa ao texto justinianeu, cabe aos glosadores, como explica o mesmo António Manuel Hespanha, “o mérito de terem recriado, na Europa Ocidental, uma linguagem técnica sobre o direito. Não se trata mais de descrever ou reproduzir algumas normas ou fórmulas de direito romano, com intuitos exclusivamente práticos, como tinha sido relativamente comum nos estudos de arte notarial usuais em algumas chancelarias eclesiásticas ou seculares. Trata-se, agora, de começar a fixar uma terminologia técnica e um conjunto de categorias e conceitos específicos de um novo saber especializado – a jurisprudência”. 

Bom, como dito no artigo da semana passada, isso tudo conheceu o seu clímax por volta de 1240, quando Acurssio reúne o conhecimento doutrinal da Escola dos Glosadores na famosa “Magna Glosa”. Mas se o trabalho de Acurssio pôs fim à aventura dos glosadores, a longa história do renascimento do direito romano não parou com eles. Esse trabalho já prenunciava uma nova fase. Veio, em seguida, em fins do século XIII, a “Escola dos Comentaristas”, sobre a qual conversaremos na semana que vem. 


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP