11/11/2013

 

REMINISCÊNCIAS DA RUA PRINCESA ISABEL – A SAGA DE FLORIANO - EL BODEGUERO – IV

Ormuz Barbalho Simonetti
...Em uma prateleira suspensa acima do balcão, pendurados com arame, podiam ser vistos outros itens tais como: peças de corda de agave, rodinhas de madeira para carro de brinquedo, baladeiras, tranças com cabeças de alho e de cebolas, vassouras de palha de carnaúba, canecos de alumínio e ágata, colheres de pau, raladores do coco, urupemas, espanadores, pinico, o velho conhecido urinol nas versões alumínio e ágata, colheres de pedreiro, lamparinas feitas de lata, pavios para candeeiros e lampiões, etc. No canto da parede, vassouras de piaçava – industrializadas - e cabos feitos com vara de marmeleiro, complemento que acompanhavam as vassouras de palha de carnaúba. 

Em uma gaveta abaixo da mesa do centro o dinheiro graúdo ficava dentro de uma caixa de charutos. O de menor valor, separado para troco, misturava-se com caixas de fósforos da marca Olho, cigarros em retalho e os famosos charutos Cesário. Por ser mais seguro, colocava também naquela gaveta pólvora negra da marca Elefante e espoletas guarani, vendidas para espingarda de soca. Em um “fiteiro”, bem a mostra numa das prateleiras de fundo, guardava produtos de aviamento tais como: carretéis de linhas branca e coloridas, lixa para unha, fecho ecler (zíper), colchetes, botões de diversas cores e tamanhos, alfinetes, agulhas para costura e agulhas de palombá – usadas para coser sacos de cereais – dedais, etc. Em cima da mesa arrumados uns sobre os outros, marços de cigarros industrializados como o Astoria, Gaivota, Continental, Hollywood e, ainda, os fabricados no Ceará, Asa e Iolanda. Vendia também para uma clientela seleta fumo de rolo e rapé (torrado) vindo direto de Arapiraca, como também o papel Colomy, utilizado na confecção dos cigarros também conhecidos como “brejeiros”. Naquele bazar, tinha de um tudo. Se o cliente procurasse e tivesse paciência podia encontrar até mesmo o famoso freio pra gato.

Dizem que a velha balança da bodega foi presenteada por sua mãe quando ele ainda era criança em uma de suas viagens a Macaíba. A peça foi adquirida de um artesão na feira domingueira daquela cidade.  Invocando o espírito altaneiro de Fabrício Pedroza, expoente máximo do comércio em toda região, lhe entrega a peça com a seguinte recomendação: ”vai Floriano, e seja um grande comerciante na vida!”

Ao lado do balcão, encostada na parede, uma velha quartinha de barro coberta por com uma caneca de alumínio atendia os pinguços mais sedentos, principalmente nas primeiras horas da manhã. A colocação estratégica da quartinha era beneficiada por uma brisa fraca, porém constante, que entrava pela porta voltada para o nascente. Em cima de um tamborete, uma velha lamparina a querosene, permanentemente acesa para o acendimento de cigarros. Recusava-se peremptoriamente a emprestar caixa de fósforos para acender cigarros dos fregueses. Em sua concepção, um gasto desnecessário, além do risco de perdê-la para os clientes mais “esquecidos”.
        

       Próximo às caixas de cervejas, empilhadas uma sobre as outras, uma lata de querosene Esso Jacaré e vários litros e garrafas com barbante amarrado no gargalo para facilitar o transporte e o contato com a mesma. O funil era colocado na primeira da fila e à medida que fossem enchendo, ia passando para as outras. Após o envasamento eram lacradas com tocos de sabugos de milho. Esse serviço era supervisionado por Floriano, porém, executado com a ajuda de alguns dos pinguços de plantão, que ao final do dia, eram regiamente pagos com um copo bem cheio da “prata da casa”.

Em cima do balcão um balaio de pão coberto com um pano feito de saco de açúcar, diariamente abastecido pela manhã e a tarde. Pães tipo crioulo, francês, carteira e doce eram rapidamente vendidos as donas de casa da redondeza.
       
      No centro do balcão papeis para embrulhos misturados com pedaços de jornais, usados na embalagem dos produtos, descalçavam sob um enegrecido cepo de madeira. Para essa tarefa contava com a habilidade das mãos de Floriano que após acondicionar o produto vendido no centro do papel, começava a torcê-lo de baixo para cima executando uma série de dobras, uma sobre a outra, até transformar o embrulho em uma embalagem hermeticamente fechada. Coisas daquela época... Diferentemente do hoje que temos um saquinho plástico para tudo, inclusive, contribuindo para a poluição do planeta.
          

        Em baixo do balcão, suspensa em uma prateleira, uma bacia com água usada na lavagem dos copos de pinga. Chacoalhava o copo dentro da bacia e em seguinte o pendurava num secador de madeira preso na parede. Pouco tempo depois o copo já estava “esterilizado” e pronto para ser utilizado novamente. A água da bacia, naturalmente, só era trocada ao final do dia.

Sentados em velhos tamboretes ou em caixas vazias de cerveja, os “pinguços” mais assíduos. Entre uma lapada e outra, inevitavelmente precedida de um sonoro estalo de língua, degustavam a marvada. Como parte do ritual, após sorver aquele néctar, grossa cuspidela era atirada naquele chão de antepassados companheiros de garrafa, já encaminhados pelo Altíssimo, pra o andar de cima. Contavam suas aventuras, recheadas de devaneios, muitas vezes produto de suas mentes já corroídas pelo álcool.
        
      O anfitrião debruçado por cima do balcão com o queixo apoiado em um dos braços, com olhar sonolento e distante, escutava as mesmas estórias fantasiosas, somente despertado pela chegada abrupta de algum cliente. O pinguço alheio a tudo e a todos, continuava sua narrativa muitas vezes sem que a presença do cliente fosse notada. Vez por outra também eram interrompidos pelos gritos estridentes de Minervina, esposa de Floriano, que vivia com cara de poucos amigos, a procura do papagaio fujão. Louro! Louro! Cadê você louro? Às vezes o papagaio fugia e se empoleirava na porta de duas folhas que dividia a casa da bodega. Tanto Floriano como seus asseclas, mesmo sabendo da localização da ave fujona deixavam que Minervina continuasse a procura que certamente terminava em boas risadas quando a ave finalmente era encontrada. Dessa forma vingavam-se da matrona, que vez por outra, estando ela de maus bofes, invadia a bodega e esculhambava todo mundo.

        

       Quando os pinguços não tinham dinheiro, Floriano não se fazia de rogado: sacava debaixo do balcão um litro branco lacrado por uma rolha de sabugo de milho, também conhecida como cachaça mole, e oferecia ao tradicional freguês, generosos copos bem cheios da “prata da casa”. Depois, sempre dava um jeitinho de ser ressarcido da generosidade com algum serviço de pouca monta (...).

07/11/2013

Cultura    

Coletivo Aboio inaugura exposição ‘Uma Parte de Nós’, na Pinacoteca do Estado

Clarissa Torres, Rodolfo Fernandes e Viviane Fugiwara unem seus estilos e trabalham em conjunto na exposição coletiva


Por Assessoria da FJA
Com a licença poética das artes visuais, o Coletivo Aboio pensou na definição de Câmara Cascudo sobre o trabalho do vaqueiro, para nomear a pequena quantidade de pessoas que se reúne para discutir referências artísticas, desenhar no mesmo esboço e pintar trabalhos a seis mãos. O trio composto pelos artistas visuais Clarissa Torres, e Rodrigo Fernandes e Viviani Fujiwara  realiza a primeira exposição dos trabalhos produzidos em coletividade. O vernissage de Uma Parte de Nós será nesta quinta, às 18h, na Pinacoteca do Estado. A mostra permanecerá em cartaz até o dia 7 de dezembro.
Exposição permanece em cartaz até 7 de dezembro
Exposição permanece em cartaz até 7 de dezembro
Cada qual com uma linguagem visual marcante, desenvolvida dentro de muito estudo e seguindo referências que guiaram os artistas à marca registrada de cada um, sejam personagens femininas, animais ou figuras geométricas, todos têm seus trabalhos elaborados dentro de um estilo peculiar. A ideia do grupo é experimentar e explorar novas técnicas pesquisadas em trabalhos de outros artistas que são referências para o trabalho individual, procurar novos suportes de pintura e desenho, sentir o outro e complementar o traço já feito na obra, criar novas personagens e universos artísticos em cada tela.
“A ideia mesmo era sair do comodismo do estilo de cada um e criar uma nova assinatura a seis mãos. Nosso grito é visual, nossa linguagem é urbana, nossa produção é coletiva”, declara Clarissa Torres. Ela e os colegas explicam que o título da mostra, Uma Parte de Nós, faz referência à natureza e a interação com ela. “Somos parte da natureza, viemos dela e, no final, nos juntaremos a ela. Essa é a essência dos trabalhos, onde algumas vezes, homem e bicho e plantas se confundem e se unem, se mutam num único ser”, afirma Viviane. Os trabalhos trazem, para o contexto emocional e atual, cores e reflexões visuais da busca dos artistas pela evolução. Mostra com sensibilidade e poesia a relação do ser humano com a natureza e seus ensinamentos.
Significado da palavra Aboio, do Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís Da Câmara Cascudo:
1) canto entoado, sem palavras, pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado. Os vaqueiros aboiam quando querem orientar os companheiros dispersos durante as pegas de gado.
2) Canto em versos, modalidade de origem moura, berbere, da África Setentrional; veio para o Brasil, possivelmente da Ilha da Madeira… Para “aboiar” o vaqueiro gera sons – música! – compreensíveis dentro do grupo, o trabalho é em conjunto e o desafio é se manter e manter o gado unido.
Serviço:
Uma Parte de Nós – Coletivo Aboio – Vernissage, quinta-feira, 7, às 18h, Pinacoteca do Estado. Visitação: de terça a domingo, das 8h às 17h, até 7 de dezembro. Entrada franca. Tel.: (84) 3201-3498.

06/11/2013

Clarissa Torres
Clarissa Torres 6 de novembro de 2013 15:09
Mais sobre nós:

Aboio. 1) canto entoado sem palavras, entoado pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado. Os vaqueiros aboiam quando querem orientar os companheiros dispersos durante as pegas de gado. 2) Canto em versos, modalidade de origem moura, berbere, da África Setentrional.
Definição retirada do Dicionário do Folclore Brasileiro, 2ª edição, de Luís Da Câmara Cascudo.
Para “aboiar”, o vaqueiro precisa estar acompanhado. Através dos sons -música- o grupo se movimenta em conjunto para trabalhar, unindo o gado. É exatamente sob essa ótica que o coletivo de artes visuais produz/se une, para criar em total sintonia grupal, um aboio, coisa de quem mal precisa extrair palavras inteiras para se fazer entender dentro do grupo, e assim gerar uma obra de arte em cada encontro.
O trio é composto pelos artistas visuais Clarissa Torres, Viviani Fujiwara e Rodrigo Fernandes. Cada qual com uma linguagem visual/estilo artístico marcante, desenvolvido dentro de muito estudo e seguindo referências que guiaram o trabalho individual. Juntos, os artistas deixam transparecer a marca registrada de cada um, seja em forma de personagens femininas, animais ou figuras geométricas. Todos têm seus trabalhos desenvolvidos dentro de uma linguagem visual elaborada.
A necessidade de se conectar a outros artistas, e consequentemente a outras técnicas e referências distintas das usadas, fez com que o trio decidisse se reunir para pintar em conjunto, explorando o universo da criação totalmente comunitária, testando outros suportes, outros locais de interferência artística. A ideia era mesmo sair do comodismo do estilo de cada um e criar uma nova assinatura a 6 mãos.
“Nosso grito é visual, nossa linguagem é urbana, nossa produção é coletiva!”

05/11/2013

Exupéry e Pinto Martins

João Felipe da Trindade (jfhipotenusa@gmail.com)
Professor da UFRN, membro do IHGRN e do INRG
 
Se Exupéry esteve aqui em Natal, não sei dizer, mas, com certeza, Natal não esteve nele, como se vê dos vários livros que escreveu, mesmo nossa cidade sendo parte estratégica da travessia aérea do Atlântico. Com vários colegas transitando por aqui, é estranho que nenhuma importância teve esta cidade para ele, nos seus escritos. Muitos estrangeiros que por aqui passaram ao longo dos anos da existência de Natal, quando escreveram, fizeram algum comentário, favorável ou desfavorável. Será que ele esteve aqui e ficou traumatizado por algum acontecimento?

O piloto Euclides Pinto Martins é considerado herói do primeiro raid aéreo Nova York - Rio de Janeiro, 1922/1923. Ele nasceu em Camocim, foi batizado em Macau, mas alguns dos seus irmãos nasceram aqui em Natal, depois que sua família veio para cá, por volta de 1900. Aqui, ele estudou, trabalhou e, foi aqui, também, que nasceu sua filha Céres. Vamos conhecer os registros, aqui encontrados, dos seus irmãos.

Aos trinta de outubro de mil novecentos e quatro, na Igreja Bom Jesus, de minha licença, Pe. Manoel de Carvalho batizou solenemente Esther, nascida a vinte e um de julho deste ano, filha legítima de Antonio Pinto Martins e Maria do Carmo de Araújo Martins, padrinhos Dr. Francisco Gomes do Valle Miranda e D. Maria Amélia do Valle Miranda. Do que faço e assino este termo. O Pároco João Maria Cavalcanti de Brito (Pe. João Maria).

Esther Pinto Martins, que usou o nome de Sóror Maria Armanda Pinto Martins, da Congregação Filhas de Nossa Senhora da Misericórdia, faleceu em 1939. Uma irmã de Ester, de nome Guiomar Pinto Martins, entrou para essa mesma Congregação, em 1927, usando o nome de irmã Ester Pinto Martins. Foi professora laureada pela Escola Normal de Natal, e, em 1913, aparece como professora em Currais Novos. Faleceu em São Paulo, no ano de 1945.

Aos dezesseis de abril de mil novecentos e nove, foi por mim solenemente batizada, nesta Matriz, Lucarda, filha legítima de Antonio Pinto Martins e Maria do Carmo de Araújo Martins, nascida aos vinte e três de outubro deste mesmo ano, foram padrinhos Avelino Alves Freire e Antonia de Medeiros Freire; do que mandei fazer este que assino. Vigário Moysés Ferreira do Nascimento.

Lucarda Pinto Martins, em 1931, foi aprovada em um concurso de datilografia da Escola Royal, em 1936 era nomeada como servente de 2ª classe das escolas elementares do Departamento de Educação do Distrito Federal. Foi membro do Partido Proletário do Brasil, e por esse partido foi candidata a vereadora no ano de 1941. Em 1948, encontramos Lucarda como Diretora do Departamento Social e Cultural da Federação Brasileira de Escolas de Samba.

Aos quatro de outubro de mil novecentos e três na Matriz de Natal, batizei, solenemente, Raymundo, nascido em três de fevereiro do corrente, filho de Antonio Pinto Martins, e Maria do Carmo de Araújo Martins, padrinhos Francisco Justiniano Cascudo e D. Anna Maria da Conceição Cascudo. Do que faço e assino este termo, o pároco João Maria Cavalcanti de Brito.
Raymundo foi assistente técnico do Núcleo de Serviço Técnico de Aviação, cargo que abandonou. Em 1959 aparece como capitão da Marinha de Guerra. Em 1960 como Comandante da Marinha Mercante. Em 1968 era superintendente geral da Frota Comercial Marítima e de Cabotagem do Brasil S/A.

Maria, filha legítima de Antonio Pinto Martins e Maria do Carmo Martins, nasceu aos nove de setembro de mil novecentos e cinco e foi pelo Coadjutor Reverendo José solenemente batizada, na Igreja Bom Jesus, desta Freguesia, aos seis de janeiro do ano seguinte; foram padrinhos Dr. Arnobio Marques e Maria do Carmo Marques. Do que mandei fazer este que assino. Vigário Moyses Ferreira do Nascimento. Não sei o destino dessa Maria.Sei que em 1917, partindo de Natal, chegava a Recife, Antonio Pinto Martins, sua esposa, suas filhas Dina Pinto Martins, Esther Pinto Martins, Maria de Lourdes Pinto Martins (Em 1929, ela casou no Rio de Janeiro com Dr. Antonio Henrique José Gatti Edler Von Campofiore), Maria do Carmo Pinto Martins, Antonieta Pinto Martins e mais cinco filhos menores.

Um filho de Antonio e Maria do Carmo, que não encontrei o registro, foi Christalino Pinto Martins. Era escrevente da Prefeitura do Distrito Federal, participou do raid Rio de Janeiro/Maranhão/Rio de Janeiro, em um pequeno barco, com dois amigos. Casou em 1929 com Rosa Carlos Magno, irmã do Embaixador Pascoal Carlos Magno. Faleceu em 1932. Um dos filhos de Christalino e Rosa foi Armando Nicolau (homenagem a um tio e a um avô) Pinto Martins, que teve um relacionamento com Bibi Ferreira. Deste casal, Armando e Bibi, nasceu, em 1954, Teresa Cristina Ferreira Pinto Martins (atriz e diretora Tina Ferreira). Como Bibi, Armando casou várias vezes. Com Vera Greenhalgh teve Lu Martins (Luciana Martins).

Outro, do qual não encontrei registro de batismo foi Armando. No Jornal do Brasil, de 7 de abril de 1927, encontro a notícia: faleceu ontem, nesta capital o preparatoriano Armando Pinto Martins, de 13 anos, irmão do aviador brasileiro Pinto Martins.

Antonio Pinto Martins faleceu, subitamente, em 1931. Segundo o jornal “A Batalha” era um patriota exaltado que muito trabalhou pela revolução, sendo um dos membros proeminentes da Legião Brasil Novo. Deixou órfãos dois filhos. Quando morou em Macau foi tesoureiro da Loja Maçônica “Amor e Serenidade”.
Maria do Carmo Pinto Martins, que faleceu em 1950, em 16 de janeiro de 1945, mandou celebrar missa pelo óbito de sua neta, filha de Euclydes, Céres Pinto Martins Kenney e marido Edward T. Kenney, falecidos no desastre de Clipper, em 8 de janeiro de 1945 em Port Spain.

O piloto Euclydes Pinto Martins tem muito mais relação com Natal do que Exupéry.



03/11/2013

 
 
Canção do Expedicionário

1942 – O BRASIL e sua GUERRA QUASE DESCONHECIDA
Minha fotoCarlos Roberto de Miranda Gomes, escritor.

Com esse título, terminei de ler o livro escrito por João Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso.
Confesso: possuído de um injustificável preconceito – por ser o escritor um músico, acreditei tratar-se de um livro promocional. Ainda, sob o sentimento mesquinho, achei que a capa era um chamativo, haja vista a cobra representativa da FEB, uma águia da simbologia nazista, avião, fuzis e bombas.
Dei-me à leitura e, logo nas primeiras páginas, fui constatando o meu ledo engano. É um trabalho sério, muito honesto, bem escrito e até cativante, no sentido de que, quando era obrigado a suspender a leitura, ficava numa vontade irrefreável de retomá-la.
E assim fui devorando, capítulo a capítulo, rememorando fatos históricos que já conhecia de trabalhos anteriores, mas pontilhado o texto em comento por indicações particulares que aumentavam o meu interesse.
Afinal, o livro me trouxe emoções e conhecimentos, transmitindo sensações de tristeza de um lado, mas orgulho de outro, ao conhecer o empenho dos nossos pracinhas, mal equipados, com pouco treinamento, mas exultantes de patriotismo e de amor à liberdade.
Bastante didática a narração dos prolegômenos da guerra no Estado brasileiro, o recrutamento, os pendores iniciais, os torpedeamentos de navios nas costas brasileiras, relação de batalhas, de navios, batalhões, comendas, fotografias e mapas e o papel notável da mocidade da União Nacional de Estudantes - UNE, aspecto fundamental para forçar uma definição do Governo Vargas em entrar no Teatro da Guerra e ao lado dos Aliados contra a corrente nazifascista que dividia o mundo.
Um destaque especial é a capacidade de improviso dos nossos soldados, quando em uma cerimônia de formatura e desfile de boas-vindas- enquanto a tropa americana cantava o hino da sua força aérea, o Brasil não tendo algo semelhante em razão do pouco tempo da criação da sua Força Aérea, entoou a conhecida marchinha “A jardineira”, de Benedito Lacerda e Humberto Porto notabilizada pelo Cantor das Multidões Orlando Silva, recebendo efusivos elogios dos membros do Estado Maior da Guerra. A FEB só ganharia o seu hino “Canção do Expedicionário”,no clamor da guerra, composta a música por Spartaco Rossi, ironicamente oriundo da terra itálica e simpatizante do regime nazista e a letra de Guilherme de Almeida, gravada pelo Rei da Voz Francisco Alves: “Você sabe de onde eu venho? Venho do morro, do engenho, Das selvas, dos cafezais, Da boa terra do coco, Da choupana, onde um é pouco, Dois é bom, três é demais”... Os direitos foram cedidos à Cruz Vermelha e foi assimilada pelos brasileiros.
O Brasil no palco da luta, as missões no campo de batalha, as tragédias, as vitórias e as perdas - heroísmo. Nomes de pessoas (dezenas) e lugares que se tornaram famosos como Natal, Recife, Montese, Monte Castelo, Fornovo, Milão, Toscana, Emília-Romanha, Porreta Terme; expressões que marcaram na história – “A cobra vai fumar”, “Senta a Pua”, a “Força Expedicionária”, a “Canção do Expedicionário”.
No calor da batalha os pracinhas brasileiros mostraram o seu diferencial – o humanismo, repartindo alimentos com a população sofrida da Itália e por isso reconhecidos até os dias presentes, pois o alimento chegara no momento mais crítico daquela contenda.
Por fim a paz, a desmobilização e o descaso do Governo brasileiro com os seus heróis, mas não do povo. Ficou em Pistoia o registro da grandeza dos brasileiros.
Ao concluir a leitura, com sua última oração: “Os caboclos brasileiros, os pracinhas da FEB, foram os que deixaram as melhores lembranças”, tive um gesto espontâneo e impulsivo: beijei o livro, como o faço tão logo concluo a minha leitura diária da Bíblia. Fui dormir feliz e em paz, guardando no recôndito da alma a expressão:
“Non dimenticare”.

02/11/2013


Casa do mestre: Casa de Câmara Cascudo, o sabido das coisas

TRUBUNA DO NORTE - Publicação: 02 de Novembro de 2013 às 00:00

Gustavo Sobral 
Ilustração: Arthur Seabra

Um canto de muro esconde muito coisa que só ele revela. Um canto de muro habitam insetos, passeiam pássaros, andam formigas, caem goteiras, crescem ervas daninhas, passeiam e sonham meninos. Um canto de muro feito assim vira literatura quando nas mãos de um Cascudo amigo que pela janela do seu sobrado rosa claro coleciona os fins de tarde do rio Potengi. Na av. com nome do dono, Câmara Cascudo, que é mesmo a subida da Ribeira para Cidade Alta, Natal/RN, ou vice-versa. Na porta de entrada, a segurança necessária: um cangaceiro pintado pelo artista completo de todos, e amigo, Dorian Gray Caldas. Transposta a segurança, a escadaria leva ao alpendre que ali toma nome de vento e sossego de um chão desenhado de mosaico. A sala de entrada com retratos do zepelim que sobrevoou a cidade dos anos 1900 e jogou flores ao aeronauta Augusto Severo é também de outros retratos, Villa Lobos oferece uma testa larga para um Cascudo amigo. E depois, na casa, as paredes que se pintam com as assinaturas de quem entrou porta adentro daquela casa e viu e viveu o mestre quando conversava no balanço da cadeira e baforava a lentidão no charuto.
Arthur Seabra

A máquina de escrever descansa mais de cento e sessenta livros e plaquetes escritos e publicados sobre tudo, história, folclore, alimentação, cultura, e tanto de tudo que teve de virar livro trabalho de toda hora e de todo tempo para escrever sobre todas as coisas numa disciplina da madrugada de leitura e redação que o aviso na porta advertia: o mestre Cascudo só atende à tarde, que pela manhã dorme e à noite escreve.

O endereço ficou marcado para que não se perdesse ganhando a rua seu nome, então a casa antiga ficou pertencendo à rua do dono, Avenida Câmara Cascudo, 377. Dizem que sua forma é chalé, a que gosto de época não se sabe, mas suas obras findaram em 1900, até ser comprada pelo sogro de Cascudo em 1910, e depois por ele em 1947. Os pedacinhos da casa estão nas páginas do seu livro, porque foi naquele chão e embaixo daquele teto de telhas vãs que livros, e mais livros, e muita história com sabor de quem conta, sairam por ai pelas páginas provocando o encanto da descoberta de ler o que Cascudo conta.