27/09/2021

Marcelo Alves Um inimigo dos loucos Henrik Ibsen (1828-1906), o genial dramaturgo, nasceu numa pequena vila portuária da Noruega. Mas o seu teatro (ele foi também diretor) e a sua poesia não mimetizaram a gelidez da sua terra natal. Ao contrário, ele foi um dos precursores do realismo e do modernismo nas artes cênicas. Fez escândalo, na verdade. Era um “denunciante” de falsos moralismos e coisas que tais. Algumas de suas peças são conhecidíssimas: “Peer Gynt” (1867), “Casa de Bonecas” (1879), “Um Inimigo do Povo” (1882), “O Pato Selvagem” (1884) e por aí vai. Alguns dizem ser ele, no seu métier, o segundo, apenas atrás de Shakespeare (1564-1616). E gigantes do teatro, gente como Gerhart Hauptmann (1862-1946), George Bernard Shaw (1856-1950), Oscar Wilde (1854-1900) e Eugene O’Neill (1888-1953), lhe pagaram tributo. Ibsen perambulou muitos anos pela Europa. Sobretudo pela Itália e Alemanha. Quem viaja, se sabido, enxerga longe. Faleceu, em glória mas já inválido, na capital Oslo. Para se ter uma ideia do tamanho de Ibsen, colho um trecho do “Ensaio sobre Henrik Ibsen”, de Otto Maria Carpeaux, que consta de um pequeno livro de bolso, intitulado “Seis Dramas” (parte 1), coleção “Mestres Pensadores”, da Editora Escala: “Henrik Ibsen é o maior dramaturgo do século XIX. O superlativo – superlativos têm sempre qualquer coisa de exagero – justifica-se desta vez, com toda facilidade. Goethe, Schiller e Alfieri pertencem inteiramente, ou pela maior parte da obra, ao século XVIII; Tchekov significa um crepúsculo melancólico; Strindberg já é o século XX. E na época entre o começo e o fim do século? Os epígonos não contam; a glória do teatro romântico francês já passou. Kleist, Georg Buechner e Gogol, três gênios dramáticos, que não se realizaram inteiramente. Quem há mais? O teatro realista francês, Augier, Dumas Filho, só tem hoje interesse como precursor de Ibsen, que lhe tomou emprestados os processos cênicos e os ambientes burgueses; Hauptmann e Shaw já confessam que o próprio Ibsen foi o ponto de partida das suas obras. Ficam ainda dois grandes nomes: Hebbel e Bjørnson. Em Hebbel a crítica literária reconhece hoje a substância ibseniana, prejudicada pelos artificialismos do epigonismo classicista; Hebbel desapareceu do palco onde apareceu Ibsen. Bjørnson, o patrício de Ibsen, e seu companheiro e inimigo inseparável durante a vida inteira, empalideceu cada vez mais ao lado do rival maior; dia virá – já veio talvez – em que a vida e a obra de Bjørnson servirão apenas para esclarecer melhor a vida e a obra de Henrik Ibsen”. O genial dramaturgo participa de todas as virtudes (e dos defeitos também, claro) do seu século. Um século, o XIX, que se orgulhava de ser o “século da ciência e da técnica”. Ibsen se preocupava com as descobertas da ciência, com as maravilhas e as angústias que os processos científicos provocam, e tinha a esperança, em razão das intervenções da ciência, num futuro melhor para a humanidade. E aqui jogo luz sobre a peça “Um Inimigo do Povo”, de 1882, cujo protagonista é um médico local que casualmente descobre e investiga a contaminação das águas de um balneário de uma pequena cidade norueguesa. O médico imagina ser aclamado por haver descoberto, através da ciência, a verdade. Por salvar a todos, locais e turistas, da infecção/doença generalizada. Mas “algo” fala mais alto. Do negacionismo a outros interesses menos confessáveis. Os habitantes se viram contra ele, o “inimigo do povo”. E a desgraça, individual e coletiva, está feita. Pelo menos para os de bom-senso, lembrando que a ciência, dizia o nosso Rubem Alves (1933-2014), nada mais é que o bom-senso organizado. Se evitar contaminação e doenças parece bom-senso – pelo menos para os de bom-senso –, isso não se mostra tão óbvio para aqueles outrora chamados de fanáticos loucos, e hoje, eufemisticamente, apenas apelidados de negacionistas. Se na fábula de Ibsen foi assim, hoje, quem alerta para a gravidade da nossa situação sanitária, para o número absurdo de mortes, para o charlatanismo de remédios ineficazes, para o impacto atual e futuro da política/visão negacionista, inclusive sob o ponto de vista econômico, é taxado por alguns de torcer pelo “quanto pior, melhor”, pelo “vírus” ou de outras baboseiras/loucuras mais. É luta. Afirmar a dura verdade e a ciência, ou simplesmente o bom-senso organizado, nos torna “um inimigo dos loucos”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL 0 comentário

21/09/2021

Marcelo Alves Embora seja sua face mais brilhante, no que toca à presença do direito, não é só de Franz Kafka (1883-1924) e do seu “O processo” (1925) que é feita a literatura em língua alemã. Outros rostos devem ser iluminados, como o de Jakob Wassermann (1873-1934), em especial pelo seu romance “O Processo Maurizius” (1928). Jakob Wassermann nasceu em Fürth, cidade industrial próxima de Nuremberg, na Alemanha. Era filho de modestos comerciantes judeus. Abandonou o comércio e foi viver sua juventude aventureiramente. Começou a escrever artigos, contos e pequenas novelas. Era um democrata. Como judeu, sofreu bastante com o antissemitismo da época. Com o nazismo, foi para o exílio, sendo também destituído de sua cadeira na então Academia Prussiana de Letras. Faleceu em Alt-Aussee, na Áustria. Wassermann é considerado um representante maior da ficção psicológica. Seu primeiro romance foi “Os Judeus de Zindorf”, de 1897, no qual ele trata da história judaica na Alemanha, o que vem, claro, a ser uma temática comum nos seus primeiros textos. Mas é sobretudo uma “segunda fase” na carreira literária de Wassermann que nos interessa, esta focada na relatividade e nos problemas da Justiça. Começa com “Caspar Hauser ou A Preguiça do Coração”, de 1900. E “Christian Wahnschaffe”, de 1918, obra já à moda de Dostoiévski (1821-1881), coloca seu nome definitivamente nos círculos intelectuais de então. É dessa segunda fase, já em 1928, a sua obra-prima “O Processo Maurizius”, que, em síntese, cuida da estória de um erro judicial e do empenho de um jovem idealista (Etzel Andergast) para libertar o homem (um tal Otto Leonardo Maurizius, que dá título à obra) condenado injustamente, há quase duas décadas, à pena de prisão perpétua, pelo seu próprio pai (o íntegro promotor/magistrado Wolf Andergast). O jovem Etzel não admite o contraditório. Ele quer a justiça perfeita (e ela existe?) em lugar da justiça possível. E, sobretudo, sua luta padece de uma ilegitimidade original: sua motivação principal não é fazer justiça, mas se vingar do pai, a quem atribui os males do mundo, inclusive os padecimentos da mãe adúltera. Para o direito, “O Processo Maurizius” é interessante por incontáveis aspectos. De logo, segundo registra a minha edição do dito cujo (Abril Cultural, 1982), “o romance constitui um soberbo retrato da época da República de Weimar”, e sabemos nós a importância dessa república na história do direito, sobretudo pela sua célebre Constituição, tida pioneira na previsão dos direitos fundamentais sociais e cujo legado acabou se espalhando mundo afora. Ademais, é obra inspirada por um grande senso ético e de Justiça (perfeita ou imperfeita). Como anota Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em “A história concisa da literatura alemã” (Faro Editorial, 2013), trata-se de “um romance deliberadamente tendencioso, ético, como o são de tendência ética todos os grandes romances da literatura universal”. E mais: “Der Fall Mauritius [seu título no original] precede por pouco a ruína da sociedade alemã pelo nazismo”. Não obstante as nuanças da trama, sobretudo as motivações e intransigências das personagens, “O Processo Maurizius” deve ainda ser interpretado como uma advertência – e mais do que isso, como um libelo – contra o erro judiciário, que é tão desprezado por um certo grupo de pessoas, sejam juristas ou só idiotas da aldeia, que passam a vida ruminando ódio. Erro judicial, proposital ou não, isso não importa, devemos repeli-lo, já que ninguém – ninguém mesmo – deve ser condenado, assim privado de sua liberdade, ainda mais levado à morte (da qual, que eu saiba, não há volta), injustamente. Por fim, de interesse mais geral, temos os aspectos geracionais e os motivos psicológicos que condicionam a trama/processo, condições que o autor conhecia e fabulava tão bem. Duas mentalidades. Duas motivações. Duas faces da Justiça? Dois direitos? E tudo forjado por um drama familiar na forma de diversos conflitos. Mas isso aí já lembra outro grande russo, Tolstói (1828-1910), e a sua Ana Karênina (1877): “Todas as famílias felizes são iguais, mas as infelizes o são cada uma à sua maneira”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
A DANÇA DEMOCRÁTICA Diogenes da Cunha Lima Não vou tratar da dança política que, geralmente, é feia, sem graça. Cuido de autêntica dança, verdadeiramente popular, participativa, que expressa a identidade nordestina, brasileira. A Ciranda Nordestina acaba de ser reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto Histórico do Patrimônio Nacional- Iphan. A decisão baseou-se em primorosa resenha de pesquisadores da Instituição e da exata relatoria da Conselheira Ângela Gutierrez. A ciranda tem a sua primazia pernambucana, brilha também na Paraíba e em Alagoas, mas se manifesta em diferentes modalidades de ritmo e melodia nos demais estados nordestinos. A nossa ciranda tem origem portuguesa e chegou aqui, no início do século XIX, trazida pela Corte Real. Em Portugal, inicialmente, não era uma dança de roda, mas em fila com dançarinos infantis. Os cortesãos dançaram suas lembranças afetivas. É dança de roda em que os participantes se dão as mãos e movimentam-se ao ritmo de variados instrumentos de percussão: zabumba, ganzá e caixa. Às vezes, soam triângulos, pandeiros e raramente sanfona e instrumentos de sopro. É canto, dança e palavra. As pessoas entram na roda e saem dela à vontade. Não há vestimenta especial. Os passantes são, normalmente, convidados a entrar na roda e ser bailarinos (há improvisos de passos e poemas). Canta um mestre: “Por isso, dona Rosa, /entre dentro dessa roda, /diga um verso bem bonito, /diga adeus e vá se embora”. Semelha a sardana da Catalunha também dançada em roda na rua, musicada por instrumentos de sopro. A sardana migrou para as artes plásticas, como no famoso quadro de Henri Matisse. O nosso bailado também se trasladou aos melhores artistas plásticos. O povo carece de alegria, divertimento. A dança é vadiação nas praias, na cidade, no campo. Em ciranda recifense, o cantor avisa: “Estou aqui pra vadiar”. A Ciranda tem sido poderoso instrumento da educação. Pelo seu exercício nas escolas, as crianças aprendem a arte da convivência, além de música e poesia. É estimulada na sua afetividade e percebe o encanto da participação comunitária. Dançar junto é pertencer. A criança sente-se pertencer à terra comum, a nosso país. Porque cirandar é estar por dentro do seu grupo. No Rio Grande do Norte, estado eminentemente musical, a ciranda multiplica-se em composições musicais. A Missão de Pesquisas Folclóricas, inspirada em Mario de Andrade, registrou a presença da ciranda no Piauí, no Ceará e no Maranhão. E de outras danças populares. Já naquela época, ficou comprovado o acerto de Mario de Andrade: “O Brasil realmente não conhece a sua música nem seus bailados populares, porque, devido a sua enorme extensão e regiões perfeitamente distintas umas das outras, ninguém se deu ao trabalho de coligir essa riqueza”. Não distinguindo a condição social, cor, sexo, idade de seus múltiplos participantes, a Ciranda é prova da vocação democrática do Brasil.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa Padre João Medeiros Filho Há algumas semanas, foi lançada a sexta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP, atualizando as palavras do idioma nacional e sua grafia, somando agora 382 mil verbetes. A publicação anterior – que data de 2009 – voltava-se especialmente para a escrita correta das palavras, em obediência ao Acordo Ortográfico Internacional, firmado pelas nações integrantes da comunidade de língua portuguesa. A atualização revela a dinâmica do vernáculo e a inclusão de neologismos úteis aos lusófonos brasileiros. Demonstra o zelo da Academia Brasileira de Letras – ABL, como guardiã da língua pátria. Houve acréscimo de mais de mil novos vocábulos ao português que falamos e escrevemos. Desde a quinta edição, a equipe do filólogo Evanildo Bechara – coordenador da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, responsável pela redação do trabalho – vinha se dedicando a reunir novos termos (e significados), colhidos em textos científicos, literários e jornalísticos. Houve também sugestões enviadas por linguistas. Não basta o surgimento de uma palavra para que ela seja automática e oficialmente incorporada ao VOLP. Para tanto, necessita ganhar consistência linguística, bem como ser compreendida e largamente usada. Vários termos adicionados ao Vocabulário dizem respeito à Covid-19. Inegavelmente, a pandemia mudou a vida de muitos brasileiros, inclusive no emprego cotidiano de expressões. Além de palavras técnicas, geradas em decorrência do Sars-Cov-2, foram adicionados estrangeirismos, como “home office”, “lockdown” etc. De acordo com o professor Bechara, “nos últimos anos houve uma aproximação dos países, não só em termos políticos, sociais e econômicos, mas também por conta da pandemia.” Tal proximidade abriu a porta para o acréscimo de vocábulos, oriundos de vários idiomas, especialmente do inglês. Verifica-se o caso de “necropolítica” e “necropoder”, expressões cunhadas pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. O momento político vivido pelo Brasil gerou para o nosso idioma novas acepções de vocábulos, tais como: negacionismo, terraplanice, lacração, pós-verdade, invertida etc. Das pautas ideológicas – alheias à semântica latina e à história do vernáculo – vieram feminicídio (assunto abordado em artigo já publicado neste jornal) e sororidade, em oposição a fraternidade. No entanto, em latim, “frater” (do qual se origina fraternidade) não significa somente o consanguíneo masculino. Para indicar este familiar a genuína palavra latina seria “germanus”, originando em português irmão – “hermano”, em espanhol e “germain” (hoje pouco usual em francês) – do qual provém irmandade. Sororidade torna-se um termo redundante, por conseguinte, desnecessário, expressando mais uma carga ideológica do que semântica. O mundo digital legou-nos também criptomoeda e ciberataque. Eis apenas alguns exemplos de étimos incorporados ao VOLP. Consoante os antropólogos, a sociedade é pautada pela cultura, que varia ao longo do tempo. Por vezes, surgem mudanças comportamentais e morais, modificam-se juízos de valor, influenciados pela tecnologia. A língua segue a cultura e tende a acompanhar as suas variações. Alguns períodos da história – como o que atravessamos – apresentam mais reviravoltas. Inegavelmente, há momentos de maior estabilidade, provocando menos novidade quanto à criação de termos. Há épocas caracterizadas por transformações bruscas. Nem sempre os étimos existentes descrevem acuradamente a realidade presente e vivida. Daí, a necessidade de criar vocábulos, importar ou ressignificar palavras antigas. Isto ocorreu, por exemplo, após a Primeira Guerra Mundial e, mais recentemente, com o advento da globalização, na década de 1980. Causou estranheza a certos estudiosos do idioma nacional a demora em atualizar o Vocabulário. Argumentam que em doze anos de pós-modernidade muita coisa aconteceu. Verificam-se várias modificações individuais e sociais, causadas pelos avanços tecnológicos. Além das transformações sociopolíticas, vive-se uma transição do modelo de sociedade industrial para uma pós-industrial, desencadeando uma alteração estrutural bem mais profunda. A variação nos padrões éticos ocasionou situações difíceis de descrever pelas terminologias vigentes. Isso repercutiu sobre a cultura e, portanto, sobre a língua. Sociólogos, cientistas políticos, jornalistas e antropólogos falam de uma ressaca da globalização, proporcionando o retorno de uma fase mais conservadora e nacionalista, enfatizando maior respeito e defesa de valores morais e culturais dos quais a língua é integrante. Dessa luta resulta igualmente uma alteração na linguagem acadêmica, social e religiosa. A palavra da Sagrada Escritura faz-nos refletir: “A língua tem poder sobre a morte e a vida!” (Pv 18, 21).

19/09/2021

Honras aos médicos Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN O Conselho Regional de Medicina do RN prestou singular homenagem aos médicos que exercem a profissão e se mantêm inscritos no CRM, no mínimo, há 50 anos. Chamei de singular porque foi um evento inusitado, uma feliz ideia de prestar honras a quem dedicou ou ainda dedica uma vida inteira a esse ofício, que exige muito amor ao próximo e vontade de refazer alegrias e esperanças. Ao mesmo tempo, também pode-se chamar de homenagem plural, pois envolveu dezenas de nomes, porém, sem perder o valor intrínseco do mérito de cada um e do grupo como um todo. Aliás, esse Diploma pessoal de Honra ao Mérito pareceu até que contemplava uma corporação, dada a afinidade que unia os corações e as mentes dos agraciados, naquele instante solene, mesmo virtual, da entrega coletiva da láurea. Atente-se que essa distinção honorífica reveste-se de alto significado, porquanto foi uma concessão do órgão que assegura uma boa prática da medicina, valorizando aqueles que a exercem de forma ética. O Cremern, em boa hora, escolheu o médico Gilmar Amorim para proferir a saudação aos homenageados, em nome do Conselho. Depois da saudação de praxe, quando referiu-se ao Presidente Marcos Jácome e aos Conselheiros Marcos Lima e Jeancarlo Fernandes, Gilmar expressou o reconhecimento público e a gratidão do Conselho a todos os médicos homenageados, e afirmou que o dia 31 de agosto de 2021 se transformou num marco especial, pois possibilitou o resgate de um preito devido a muitos heróis da medicina do RN. O brilhante orador, numa sutil alusão à vida desses médicos, citou o belo trecho do Sermão da Sexagésima Hora, do Padre Antonio Vieira: “As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo”. Gilmar Amorim, então, concluiu: “Muito obrigado pela doação de suas vidas em benefício da coletividade”. Na minha fala, aludi à dupla homenagem que recebera, uma pelo Diploma de Honra ao Mérito, a outra pelo convite para agradecer em nome do conjunto dos ilustres colegas. Referi-me a nossa bela profissão que tem a figura histórica de Hipócrates como símbolo maior, e ao primeiro dos seus famosos aforismos. A seguir, numa ênfase à grandeza da homenagem, voltei-me ao livro bíblico Eclesiastes, talvez o mais sábio ensinamento e a mais poderosa expressão da vida humana sobre a terra. Ao final, disse que aquela homenagem chegava no momento oportuno para resgatar e relembrar em cada um dos homenageados a certeza do dever cumprido, além do reconhecimento de quantos são testemunhas dos seus exemplos de amor à profissão, e citei alguns versos do Eclesiastes, entre os quais esses dois: “Há tempo de lutar e tempo de viver em paz. Há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu”. Texto publicado na Tribuna do Norte, em 16/09/2021 Bom dia! Tenho a satisfação de enviar aos confrades da ANRL o texto de minha autoria “Honras aos Médicos”, publicado em 16/09/2021, no jornal Tribuna do Norte. Daladier Pessoa Cunha Lima.

14/09/2021

MISSA DE SÉTIMO DIA DO MINISTRO JOSÉ AUGUSTO DELGADO “Seremos julgados pelo amor”, assim sentenciou São João da Cruz, grande místico espanhol do século XVI, sobre o fim de nossa trajetória. Abordar o tema da morte geralmente é doloroso, porque as pessoas a concebem fora da existência. Morrer faz parte do viver. Despender tempo, energia, renunciar a algo, perder, tudo isto indica que a vida é semelhante a uma vela que se consome para produzir luz. Plena desse brilho foi a caminhada de nosso irmão José Augusto Delgado, que permanece em nossa memória. O nome que recebeu no batismo é simbólico, icônico, usando a expressão da moda. Tem o onomástico do pai adotivo do Salvador do Mundo e esposo de Nossa Senhora. Nosso inesquecível confrade é exemplo de dedicação e probidade. Augusto, pela nobreza do seu caráter, pela consciência da nossa condição de filhos de Deus. Delgado era elegante, fino e delicado no pensar e no proceder. Cônscio da limitação humana, confiava em Deus, em sintonia com o pensamento do apóstolo Paulo: “Tudo posso naquele que me fortalece, que é Jesus Cristo.” (Fl 4, 13). Sua postura revela que comungava dos sentimentos do inesquecível Cônego Luiz Monte, membro de nossa Academia: “Sem a fé, sou pequeno demais para o céu. Com ela grande demais para a terra.” Caríssimos irmãos, preparar-se para o ocaso da vida não é voltar-se para a noite da morte, mas perceber que o sol se põe nesta vida terrena, mas continua a resplandecer na vida celestial, onde o dia é eterno. Os astros cintilam nas alturas. Deste modo, o professor Delgado também brilhará no céu. Como cristãos, devemos ter consciência de que a morte é apenas o umbral da entrada na nova vida. Cristo proclamou: “Eu vim para que todos tenham vida. E a tenham em plenitude ou abundância.” (Jo 10, 10). Santo Agostinho, bispo de Hipona, proferiu esta verdade teológica: “Mors, vere dies natalis hominis”, a morte é o verdadeiro natalício do ser humano. Se pensássemos apenas na morte, colocaríamos o sentido de tudo somente no final da existência. Muitas pessoas tendem para essa posição e acabam desprezando o viver, diminuindo o sabor dos dias na terra. Contudo, a tentação maior é uma abordagem contrária: pensar somente na ilusória vida passageira. O enfoque no provisório pode gerar desespero, quando as limitações começam a aparecer. “Somos peregrinos e estrangeiros, mas, em breve, estaremos em nossa pátria”, proclamou o apóstolo Pedro (1Pd 1, 1). O cristianismo define a morte como passagem da existência limitada para a vida plena, em Deus. Trata-se de completar e consumar o que temos e vemos apenas como um esboço. “O que agora vemos é como uma imagem imperfeita num espelho embaçado, mas depois veremos face a face. Aqui, o conhecimento é imperfeito e parcial, mas depois será pleno, assim como sou conhecido por Deus.” (1Cor 13, 12). Vivemos na fé e na esperança aquilo que um dia veremos na Eternidade. Assevera ainda o cristianismo que, apesar de vivermos na limitação do tempo, já somos eternos, enquanto filhos do Deus Infinito, que um dia nos perfilhou pela sua misericórdia e ternura. Por isso, os cristãos sabem que a morte não pode separá-los de Cristo. Portanto, nosso irmão Delgado desfruta agora da herança eterna e do prêmio dos justos e eleitos. “Somos herdeiros do céu e coerdeiros com Cristo”, assegura-nos a Carta aos Romanos. (Rm 8, 17). Só é possível compreender o mistério da morte, sob a ótica e a dimensão da fé. Esta identifica tipos de presença que a corporeidade não alcança, descobre união e proximidade que o espaço sequer imagina. Ela é a marca do divino, atemporal, onipresente e espiritual. Ultrapassa os limites e as amarras, rompe os laços que nos prendem e liberta-nos das prisões. A fé conduz-nos ao amor. E este “é mais forte que a própria morte”, afirma São João (1Jo 3, 14). Porque soube amar, nosso irmão Delgado permanece vivo. E Santo Agostinho conclui: “ninguém ama sem ter fé, nem acredita sem amar.” Desde tempos remotos, já sabia de sua riqueza interior, como jurista, homem probo e de fé no Deus da Paz e da Justiça. Eu era um jovem e inexperiente padre, pároco em Caicó, em 1965. Ali, recebi a visita do saudoso Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros, que um dia me batizou na matriz de Jucurutu. Comecei a indagar sobre a sua paróquia de São Paulo do Potengi. E ele proferiu palavras, que permanecem vivas em minha memória: “João, acabo de conhecer um magistrado, como define a Bíblia, sábio, honrado, prudente e conciliador, humanista e sobretudo temente a Deus.” E “Monsenhor Expedito tinha o faro de nossas almas”, no dizer de Oswaldo Lamartine. Existem pessoas que se engrandecem com as academias. Há outras que tornam grandes as academias às quais pertencem. Assim, na ANRL destaca-se José Augusto Delgado. Hoje, a seus familiares e amigos, cabe-nos dizer que não nos inquietemos. O amor, apesar de invisível e imprevisível, cria formas e modos diferentes de se manifestar. Pela fé e guardado no tesouro de nossa memória, ele permanecerá vivo, unido e presente. Os discípulos de Jesus não ficaram sem ver Aquele a quem tanto amaram. Ele mostrou-lhes a Sua face. Assim, os que nos precederam na casa do Pai, saberão como nos confortar em nossas angústias e inquietações, pois já encontraram a Paz definitiva. Nosso amigo Delgado pertence agora ao plano divino, alcançável pela força de nossa crença. Meus irmãos, a fé nos consola e fortalece. “Aos vossos fiéis, não é tirada a vida, mas transformada. E desfeita a nossa habitação terrena, nos é dada nos céus, uma eterna morada”, como ouviremos no prefácio desta missa. Há uma lenda entre os índios kadiwéus, de profundo sentido teológico, afirmando que “a morte leva o ser humano à vida oculta e silenciosa. Aqueles que amamos não morrem, apenas transmigram.” A saudade dói em nosso íntimo. Ela torna presente o ausente, preenchendo o vazio da solitude. Mas, Deus existe para aquietar a saudade. A palavra é pobre para falar sobre o mistério da morte. Um dia encontrar-nos-emos para celebrar o grande banquete dos eleitos de Deus. Agora, nosso confrade goza das maravilhas celestiais. Que ele descanse em paz! E junto de Deus, lembre-se de nós, peregrinos da vida. Hoje rendamos graças ao Pai Celestial pela grandeza de sua existência e sabedoria com a qual Ele o revestiu. “Os olhos jamais contemplaram, os ouvidos nunca escutaram, o pensamento humano sequer imaginou aquilo que Deus reserva para seus filhos amados.” (1Cor 2, 9). Natal, 13/09/2021. Igreja de Bom Jesus da Ribeira. Padre João Medeiros Filho.

13/09/2021

JOSÉ Diogenes da Cunha Lima José Augusto Delgado é, na expressão de minha filha Cristine, uma dessas raras pessoas que não precisam estar presentes para ser presente. É natural, pois, que ele continua entre nós. O nome é o destino. José significa “aquele que acrescenta”. Augusto é o que é elevado, eminente. Delgado quer dizer leve, sutil, de fino trato. Foi uma amizade que durou a vida inteira. Fomos colegas da “Turma da Paz” da Faculdade de Direito na Ribeira. Sabíamos ser irmãos-amigos. Desde meninos, com os nossos pais, vendíamos tecidos, chapéus e sombrinhas em Nova Cruz e Santo Antônio do Salto da Onça. Estudantes, moramos em pensões, amargando sopas e comidas requentadas. Formados, logo montamos o nosso escritório de advocacia no Alecrim. Vivíamos preocupados em pagar o aluguel da minúscula sala. Fizemos o mesmo concurso para Juiz. Aprovados, ele foi nomeado para São Paulo do Potengi e eu, depois, para Jucurutu. Ele tinha (e eu não) vocação para a magistratura. Continuei advogado. Fomos, também, contemporâneos como professores de Direito da UFRN. As nossas famílias são como se fossem uma única. Ele e a maravilhosa Zezé são “tios” dos meus filhos. Na maternidade, ele tinha ido rezar quando a enfermeira veio apresentar seu primeiro filho. Eu vi o menino e pedi a Deus que o abençoasse. Deus tem sido generoso em dar qualidades à criança, hoje um senhor juiz. Anos depois, o casal ganhou novos prêmios, Liane e Ângelo. Insisti com Delgado para que escrevesse a sua autobiografia. Cansei de esperar, e fiz a sua biografia sob o título JOSÉ, publicada pela Thesaurus Editora de Brasília. O livro é dedicado aos muitos Josés que engrandecem o nosso País. José foi homem de belo passado. Dou testemunho: para mim ele representou fidelidade, constância, afeto. José Augusto Delgado teve mais que ciência, a consciência do direito. Exerceu cidadania exemplar, como cultor e ensinante. Transmitiu a cidadania como conferencista, jurista, múltiplo doutrinador. Foi sempre reconhecido como bom juiz. O Tribunal de Justiça do RN outorgou-lhe o título de “Desembargador Honorário”. Na última homenagem prestada, o Tribunal Regional Federal declarou-o: “exemplo modelar de juiz”. O Superior Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal Eleitoral utilizam suas decisões criadoras de jurisprudência. Aposentado, voltamos, como advogados, a fazer parcerias, mas a parceria maior foi com Ângelo, seu filho, em Brasília. Considero que o passado de pessoas boas é um dos bens da coletividade, como o do jurista potiguar José, um Homem.