21/09/2021

A DANÇA DEMOCRÁTICA Diogenes da Cunha Lima Não vou tratar da dança política que, geralmente, é feia, sem graça. Cuido de autêntica dança, verdadeiramente popular, participativa, que expressa a identidade nordestina, brasileira. A Ciranda Nordestina acaba de ser reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto Histórico do Patrimônio Nacional- Iphan. A decisão baseou-se em primorosa resenha de pesquisadores da Instituição e da exata relatoria da Conselheira Ângela Gutierrez. A ciranda tem a sua primazia pernambucana, brilha também na Paraíba e em Alagoas, mas se manifesta em diferentes modalidades de ritmo e melodia nos demais estados nordestinos. A nossa ciranda tem origem portuguesa e chegou aqui, no início do século XIX, trazida pela Corte Real. Em Portugal, inicialmente, não era uma dança de roda, mas em fila com dançarinos infantis. Os cortesãos dançaram suas lembranças afetivas. É dança de roda em que os participantes se dão as mãos e movimentam-se ao ritmo de variados instrumentos de percussão: zabumba, ganzá e caixa. Às vezes, soam triângulos, pandeiros e raramente sanfona e instrumentos de sopro. É canto, dança e palavra. As pessoas entram na roda e saem dela à vontade. Não há vestimenta especial. Os passantes são, normalmente, convidados a entrar na roda e ser bailarinos (há improvisos de passos e poemas). Canta um mestre: “Por isso, dona Rosa, /entre dentro dessa roda, /diga um verso bem bonito, /diga adeus e vá se embora”. Semelha a sardana da Catalunha também dançada em roda na rua, musicada por instrumentos de sopro. A sardana migrou para as artes plásticas, como no famoso quadro de Henri Matisse. O nosso bailado também se trasladou aos melhores artistas plásticos. O povo carece de alegria, divertimento. A dança é vadiação nas praias, na cidade, no campo. Em ciranda recifense, o cantor avisa: “Estou aqui pra vadiar”. A Ciranda tem sido poderoso instrumento da educação. Pelo seu exercício nas escolas, as crianças aprendem a arte da convivência, além de música e poesia. É estimulada na sua afetividade e percebe o encanto da participação comunitária. Dançar junto é pertencer. A criança sente-se pertencer à terra comum, a nosso país. Porque cirandar é estar por dentro do seu grupo. No Rio Grande do Norte, estado eminentemente musical, a ciranda multiplica-se em composições musicais. A Missão de Pesquisas Folclóricas, inspirada em Mario de Andrade, registrou a presença da ciranda no Piauí, no Ceará e no Maranhão. E de outras danças populares. Já naquela época, ficou comprovado o acerto de Mario de Andrade: “O Brasil realmente não conhece a sua música nem seus bailados populares, porque, devido a sua enorme extensão e regiões perfeitamente distintas umas das outras, ninguém se deu ao trabalho de coligir essa riqueza”. Não distinguindo a condição social, cor, sexo, idade de seus múltiplos participantes, a Ciranda é prova da vocação democrática do Brasil.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa Padre João Medeiros Filho Há algumas semanas, foi lançada a sexta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP, atualizando as palavras do idioma nacional e sua grafia, somando agora 382 mil verbetes. A publicação anterior – que data de 2009 – voltava-se especialmente para a escrita correta das palavras, em obediência ao Acordo Ortográfico Internacional, firmado pelas nações integrantes da comunidade de língua portuguesa. A atualização revela a dinâmica do vernáculo e a inclusão de neologismos úteis aos lusófonos brasileiros. Demonstra o zelo da Academia Brasileira de Letras – ABL, como guardiã da língua pátria. Houve acréscimo de mais de mil novos vocábulos ao português que falamos e escrevemos. Desde a quinta edição, a equipe do filólogo Evanildo Bechara – coordenador da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, responsável pela redação do trabalho – vinha se dedicando a reunir novos termos (e significados), colhidos em textos científicos, literários e jornalísticos. Houve também sugestões enviadas por linguistas. Não basta o surgimento de uma palavra para que ela seja automática e oficialmente incorporada ao VOLP. Para tanto, necessita ganhar consistência linguística, bem como ser compreendida e largamente usada. Vários termos adicionados ao Vocabulário dizem respeito à Covid-19. Inegavelmente, a pandemia mudou a vida de muitos brasileiros, inclusive no emprego cotidiano de expressões. Além de palavras técnicas, geradas em decorrência do Sars-Cov-2, foram adicionados estrangeirismos, como “home office”, “lockdown” etc. De acordo com o professor Bechara, “nos últimos anos houve uma aproximação dos países, não só em termos políticos, sociais e econômicos, mas também por conta da pandemia.” Tal proximidade abriu a porta para o acréscimo de vocábulos, oriundos de vários idiomas, especialmente do inglês. Verifica-se o caso de “necropolítica” e “necropoder”, expressões cunhadas pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. O momento político vivido pelo Brasil gerou para o nosso idioma novas acepções de vocábulos, tais como: negacionismo, terraplanice, lacração, pós-verdade, invertida etc. Das pautas ideológicas – alheias à semântica latina e à história do vernáculo – vieram feminicídio (assunto abordado em artigo já publicado neste jornal) e sororidade, em oposição a fraternidade. No entanto, em latim, “frater” (do qual se origina fraternidade) não significa somente o consanguíneo masculino. Para indicar este familiar a genuína palavra latina seria “germanus”, originando em português irmão – “hermano”, em espanhol e “germain” (hoje pouco usual em francês) – do qual provém irmandade. Sororidade torna-se um termo redundante, por conseguinte, desnecessário, expressando mais uma carga ideológica do que semântica. O mundo digital legou-nos também criptomoeda e ciberataque. Eis apenas alguns exemplos de étimos incorporados ao VOLP. Consoante os antropólogos, a sociedade é pautada pela cultura, que varia ao longo do tempo. Por vezes, surgem mudanças comportamentais e morais, modificam-se juízos de valor, influenciados pela tecnologia. A língua segue a cultura e tende a acompanhar as suas variações. Alguns períodos da história – como o que atravessamos – apresentam mais reviravoltas. Inegavelmente, há momentos de maior estabilidade, provocando menos novidade quanto à criação de termos. Há épocas caracterizadas por transformações bruscas. Nem sempre os étimos existentes descrevem acuradamente a realidade presente e vivida. Daí, a necessidade de criar vocábulos, importar ou ressignificar palavras antigas. Isto ocorreu, por exemplo, após a Primeira Guerra Mundial e, mais recentemente, com o advento da globalização, na década de 1980. Causou estranheza a certos estudiosos do idioma nacional a demora em atualizar o Vocabulário. Argumentam que em doze anos de pós-modernidade muita coisa aconteceu. Verificam-se várias modificações individuais e sociais, causadas pelos avanços tecnológicos. Além das transformações sociopolíticas, vive-se uma transição do modelo de sociedade industrial para uma pós-industrial, desencadeando uma alteração estrutural bem mais profunda. A variação nos padrões éticos ocasionou situações difíceis de descrever pelas terminologias vigentes. Isso repercutiu sobre a cultura e, portanto, sobre a língua. Sociólogos, cientistas políticos, jornalistas e antropólogos falam de uma ressaca da globalização, proporcionando o retorno de uma fase mais conservadora e nacionalista, enfatizando maior respeito e defesa de valores morais e culturais dos quais a língua é integrante. Dessa luta resulta igualmente uma alteração na linguagem acadêmica, social e religiosa. A palavra da Sagrada Escritura faz-nos refletir: “A língua tem poder sobre a morte e a vida!” (Pv 18, 21).

19/09/2021

Honras aos médicos Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN O Conselho Regional de Medicina do RN prestou singular homenagem aos médicos que exercem a profissão e se mantêm inscritos no CRM, no mínimo, há 50 anos. Chamei de singular porque foi um evento inusitado, uma feliz ideia de prestar honras a quem dedicou ou ainda dedica uma vida inteira a esse ofício, que exige muito amor ao próximo e vontade de refazer alegrias e esperanças. Ao mesmo tempo, também pode-se chamar de homenagem plural, pois envolveu dezenas de nomes, porém, sem perder o valor intrínseco do mérito de cada um e do grupo como um todo. Aliás, esse Diploma pessoal de Honra ao Mérito pareceu até que contemplava uma corporação, dada a afinidade que unia os corações e as mentes dos agraciados, naquele instante solene, mesmo virtual, da entrega coletiva da láurea. Atente-se que essa distinção honorífica reveste-se de alto significado, porquanto foi uma concessão do órgão que assegura uma boa prática da medicina, valorizando aqueles que a exercem de forma ética. O Cremern, em boa hora, escolheu o médico Gilmar Amorim para proferir a saudação aos homenageados, em nome do Conselho. Depois da saudação de praxe, quando referiu-se ao Presidente Marcos Jácome e aos Conselheiros Marcos Lima e Jeancarlo Fernandes, Gilmar expressou o reconhecimento público e a gratidão do Conselho a todos os médicos homenageados, e afirmou que o dia 31 de agosto de 2021 se transformou num marco especial, pois possibilitou o resgate de um preito devido a muitos heróis da medicina do RN. O brilhante orador, numa sutil alusão à vida desses médicos, citou o belo trecho do Sermão da Sexagésima Hora, do Padre Antonio Vieira: “As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo”. Gilmar Amorim, então, concluiu: “Muito obrigado pela doação de suas vidas em benefício da coletividade”. Na minha fala, aludi à dupla homenagem que recebera, uma pelo Diploma de Honra ao Mérito, a outra pelo convite para agradecer em nome do conjunto dos ilustres colegas. Referi-me a nossa bela profissão que tem a figura histórica de Hipócrates como símbolo maior, e ao primeiro dos seus famosos aforismos. A seguir, numa ênfase à grandeza da homenagem, voltei-me ao livro bíblico Eclesiastes, talvez o mais sábio ensinamento e a mais poderosa expressão da vida humana sobre a terra. Ao final, disse que aquela homenagem chegava no momento oportuno para resgatar e relembrar em cada um dos homenageados a certeza do dever cumprido, além do reconhecimento de quantos são testemunhas dos seus exemplos de amor à profissão, e citei alguns versos do Eclesiastes, entre os quais esses dois: “Há tempo de lutar e tempo de viver em paz. Há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu”. Texto publicado na Tribuna do Norte, em 16/09/2021 Bom dia! Tenho a satisfação de enviar aos confrades da ANRL o texto de minha autoria “Honras aos Médicos”, publicado em 16/09/2021, no jornal Tribuna do Norte. Daladier Pessoa Cunha Lima.

14/09/2021

MISSA DE SÉTIMO DIA DO MINISTRO JOSÉ AUGUSTO DELGADO “Seremos julgados pelo amor”, assim sentenciou São João da Cruz, grande místico espanhol do século XVI, sobre o fim de nossa trajetória. Abordar o tema da morte geralmente é doloroso, porque as pessoas a concebem fora da existência. Morrer faz parte do viver. Despender tempo, energia, renunciar a algo, perder, tudo isto indica que a vida é semelhante a uma vela que se consome para produzir luz. Plena desse brilho foi a caminhada de nosso irmão José Augusto Delgado, que permanece em nossa memória. O nome que recebeu no batismo é simbólico, icônico, usando a expressão da moda. Tem o onomástico do pai adotivo do Salvador do Mundo e esposo de Nossa Senhora. Nosso inesquecível confrade é exemplo de dedicação e probidade. Augusto, pela nobreza do seu caráter, pela consciência da nossa condição de filhos de Deus. Delgado era elegante, fino e delicado no pensar e no proceder. Cônscio da limitação humana, confiava em Deus, em sintonia com o pensamento do apóstolo Paulo: “Tudo posso naquele que me fortalece, que é Jesus Cristo.” (Fl 4, 13). Sua postura revela que comungava dos sentimentos do inesquecível Cônego Luiz Monte, membro de nossa Academia: “Sem a fé, sou pequeno demais para o céu. Com ela grande demais para a terra.” Caríssimos irmãos, preparar-se para o ocaso da vida não é voltar-se para a noite da morte, mas perceber que o sol se põe nesta vida terrena, mas continua a resplandecer na vida celestial, onde o dia é eterno. Os astros cintilam nas alturas. Deste modo, o professor Delgado também brilhará no céu. Como cristãos, devemos ter consciência de que a morte é apenas o umbral da entrada na nova vida. Cristo proclamou: “Eu vim para que todos tenham vida. E a tenham em plenitude ou abundância.” (Jo 10, 10). Santo Agostinho, bispo de Hipona, proferiu esta verdade teológica: “Mors, vere dies natalis hominis”, a morte é o verdadeiro natalício do ser humano. Se pensássemos apenas na morte, colocaríamos o sentido de tudo somente no final da existência. Muitas pessoas tendem para essa posição e acabam desprezando o viver, diminuindo o sabor dos dias na terra. Contudo, a tentação maior é uma abordagem contrária: pensar somente na ilusória vida passageira. O enfoque no provisório pode gerar desespero, quando as limitações começam a aparecer. “Somos peregrinos e estrangeiros, mas, em breve, estaremos em nossa pátria”, proclamou o apóstolo Pedro (1Pd 1, 1). O cristianismo define a morte como passagem da existência limitada para a vida plena, em Deus. Trata-se de completar e consumar o que temos e vemos apenas como um esboço. “O que agora vemos é como uma imagem imperfeita num espelho embaçado, mas depois veremos face a face. Aqui, o conhecimento é imperfeito e parcial, mas depois será pleno, assim como sou conhecido por Deus.” (1Cor 13, 12). Vivemos na fé e na esperança aquilo que um dia veremos na Eternidade. Assevera ainda o cristianismo que, apesar de vivermos na limitação do tempo, já somos eternos, enquanto filhos do Deus Infinito, que um dia nos perfilhou pela sua misericórdia e ternura. Por isso, os cristãos sabem que a morte não pode separá-los de Cristo. Portanto, nosso irmão Delgado desfruta agora da herança eterna e do prêmio dos justos e eleitos. “Somos herdeiros do céu e coerdeiros com Cristo”, assegura-nos a Carta aos Romanos. (Rm 8, 17). Só é possível compreender o mistério da morte, sob a ótica e a dimensão da fé. Esta identifica tipos de presença que a corporeidade não alcança, descobre união e proximidade que o espaço sequer imagina. Ela é a marca do divino, atemporal, onipresente e espiritual. Ultrapassa os limites e as amarras, rompe os laços que nos prendem e liberta-nos das prisões. A fé conduz-nos ao amor. E este “é mais forte que a própria morte”, afirma São João (1Jo 3, 14). Porque soube amar, nosso irmão Delgado permanece vivo. E Santo Agostinho conclui: “ninguém ama sem ter fé, nem acredita sem amar.” Desde tempos remotos, já sabia de sua riqueza interior, como jurista, homem probo e de fé no Deus da Paz e da Justiça. Eu era um jovem e inexperiente padre, pároco em Caicó, em 1965. Ali, recebi a visita do saudoso Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros, que um dia me batizou na matriz de Jucurutu. Comecei a indagar sobre a sua paróquia de São Paulo do Potengi. E ele proferiu palavras, que permanecem vivas em minha memória: “João, acabo de conhecer um magistrado, como define a Bíblia, sábio, honrado, prudente e conciliador, humanista e sobretudo temente a Deus.” E “Monsenhor Expedito tinha o faro de nossas almas”, no dizer de Oswaldo Lamartine. Existem pessoas que se engrandecem com as academias. Há outras que tornam grandes as academias às quais pertencem. Assim, na ANRL destaca-se José Augusto Delgado. Hoje, a seus familiares e amigos, cabe-nos dizer que não nos inquietemos. O amor, apesar de invisível e imprevisível, cria formas e modos diferentes de se manifestar. Pela fé e guardado no tesouro de nossa memória, ele permanecerá vivo, unido e presente. Os discípulos de Jesus não ficaram sem ver Aquele a quem tanto amaram. Ele mostrou-lhes a Sua face. Assim, os que nos precederam na casa do Pai, saberão como nos confortar em nossas angústias e inquietações, pois já encontraram a Paz definitiva. Nosso amigo Delgado pertence agora ao plano divino, alcançável pela força de nossa crença. Meus irmãos, a fé nos consola e fortalece. “Aos vossos fiéis, não é tirada a vida, mas transformada. E desfeita a nossa habitação terrena, nos é dada nos céus, uma eterna morada”, como ouviremos no prefácio desta missa. Há uma lenda entre os índios kadiwéus, de profundo sentido teológico, afirmando que “a morte leva o ser humano à vida oculta e silenciosa. Aqueles que amamos não morrem, apenas transmigram.” A saudade dói em nosso íntimo. Ela torna presente o ausente, preenchendo o vazio da solitude. Mas, Deus existe para aquietar a saudade. A palavra é pobre para falar sobre o mistério da morte. Um dia encontrar-nos-emos para celebrar o grande banquete dos eleitos de Deus. Agora, nosso confrade goza das maravilhas celestiais. Que ele descanse em paz! E junto de Deus, lembre-se de nós, peregrinos da vida. Hoje rendamos graças ao Pai Celestial pela grandeza de sua existência e sabedoria com a qual Ele o revestiu. “Os olhos jamais contemplaram, os ouvidos nunca escutaram, o pensamento humano sequer imaginou aquilo que Deus reserva para seus filhos amados.” (1Cor 2, 9). Natal, 13/09/2021. Igreja de Bom Jesus da Ribeira. Padre João Medeiros Filho.

13/09/2021

JOSÉ Diogenes da Cunha Lima José Augusto Delgado é, na expressão de minha filha Cristine, uma dessas raras pessoas que não precisam estar presentes para ser presente. É natural, pois, que ele continua entre nós. O nome é o destino. José significa “aquele que acrescenta”. Augusto é o que é elevado, eminente. Delgado quer dizer leve, sutil, de fino trato. Foi uma amizade que durou a vida inteira. Fomos colegas da “Turma da Paz” da Faculdade de Direito na Ribeira. Sabíamos ser irmãos-amigos. Desde meninos, com os nossos pais, vendíamos tecidos, chapéus e sombrinhas em Nova Cruz e Santo Antônio do Salto da Onça. Estudantes, moramos em pensões, amargando sopas e comidas requentadas. Formados, logo montamos o nosso escritório de advocacia no Alecrim. Vivíamos preocupados em pagar o aluguel da minúscula sala. Fizemos o mesmo concurso para Juiz. Aprovados, ele foi nomeado para São Paulo do Potengi e eu, depois, para Jucurutu. Ele tinha (e eu não) vocação para a magistratura. Continuei advogado. Fomos, também, contemporâneos como professores de Direito da UFRN. As nossas famílias são como se fossem uma única. Ele e a maravilhosa Zezé são “tios” dos meus filhos. Na maternidade, ele tinha ido rezar quando a enfermeira veio apresentar seu primeiro filho. Eu vi o menino e pedi a Deus que o abençoasse. Deus tem sido generoso em dar qualidades à criança, hoje um senhor juiz. Anos depois, o casal ganhou novos prêmios, Liane e Ângelo. Insisti com Delgado para que escrevesse a sua autobiografia. Cansei de esperar, e fiz a sua biografia sob o título JOSÉ, publicada pela Thesaurus Editora de Brasília. O livro é dedicado aos muitos Josés que engrandecem o nosso País. José foi homem de belo passado. Dou testemunho: para mim ele representou fidelidade, constância, afeto. José Augusto Delgado teve mais que ciência, a consciência do direito. Exerceu cidadania exemplar, como cultor e ensinante. Transmitiu a cidadania como conferencista, jurista, múltiplo doutrinador. Foi sempre reconhecido como bom juiz. O Tribunal de Justiça do RN outorgou-lhe o título de “Desembargador Honorário”. Na última homenagem prestada, o Tribunal Regional Federal declarou-o: “exemplo modelar de juiz”. O Superior Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal Eleitoral utilizam suas decisões criadoras de jurisprudência. Aposentado, voltamos, como advogados, a fazer parcerias, mas a parceria maior foi com Ângelo, seu filho, em Brasília. Considero que o passado de pessoas boas é um dos bens da coletividade, como o do jurista potiguar José, um Homem.

09/09/2021

PABLO NERUDA, OS AMORES Diogenes da Cunha Lima O chileno Pablo Neruda (1904-1973), o mais amado poeta do século vinte, continua encantando mulheres e, também, quem costuma conjugar o verbo amar. Ao conceder-lhe o Prêmio Nobel, em 1971, a Academia de Letras da Suécia deu a razão: “Poeta da Humanidade Violentada”. Vinicius de Moraes, seu irmão de eleição, parceiro, companheiro, que, inclusive, misturou com ele o sêmen em uma mesma fonte feminina, descreveu a geografia básica dos amores de Neruda em “Cantar de Amigo e Cantar de Amor”: “A Holanda te deu Maruska; a Argentina, La Hormiguita, bela e fundida da cuca. Deu-te o México, Maria. O Brasil deu-te Marina, teu amor secreto e humilde. Mas o mundo emocionado, muito mais houvera dado, se teu Chile enciumado, não te ordenasse Matilde: A Grande Amada Matilde”. Não consegui descobrir quem foi a amante brasileira. Suponho, apenas, que foi a amada comum, oculta. Neruda e Vinícius foram diplomatas de fato e nas palavras, distinguindo a beleza fundamental das mulheres, a sua força, o seu poder. Entre tantas mulheres decorridas, Neruda casou-se com três. A primeira, em Jacarta, “Maruska”, ou Maria Antônia Hagenaar, tinha sangue malaio e tentava aprender espanhol. O Poeta apreendeu uma única palavra em malaio: “tinta”, o mesmo significado em castelhano e em português. Ela era suave, mas ele a considerava “enorme” e o casório faliu. Délia Del Carmen, artista plástica argentina, era vinte anos mais velha que o marido. Mas o amor tudo suporta. Em Madri, o Poeta reclama que ela se converteu completamente ao espiritismo. Com o poeta Rafael Alberti, encheu a morada do casal de fantasmas. Neruda acreditou que as pessoas tinham medo de visitá-los. A união terminou desfazendo-se. Matilde Urrutia, o amor definitivo. Para a amada, um livro amoroso, “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada”, e a construção da casa de Santiago, “La Chascona”, ou seja, a descabelada, alusão à forma dos seus cabelos. Segundo Neruda, as mulheres “sorriem quando querem gritar, cantam quando querem chorar, choram quando estão felizes”. Acrescenta que elas nunca aceitam a injustiça nem o “não” como resposta. Amam incondicionalmente. E conclui: “O coração de uma mulher é que faz o mundo girar”. O Poeta dedicou sua vida a amar, ao amor, e sentia-se triste com o esquecimento. Considerava que o amor nasce da memória, vive da inteligência e termina pelo esquecimento. O amor, como a vida, é curto, e alongado é o esquecimento. A humanidade continua a louvar o seu Poeta e exaltar o amor expresso nos seus versos. Se cada ser humano se dedicasse a amar, a felicidade reinaria sobre a terra. Matilde e Pablo estão juntos, sepultados ao lado da residência Isla Negra. O amor do casal tem aroma de eternidade.
Setembro, mês da Bíblia Padre João Medeiros Filho A Igreja Católica dedica o nono mês do ano à Sagrada Escritura, em homenagem a São Jerônimo (que a traduziu para o latim) e cuja festa é celebrada no dia 30 de setembro. A Bíblia é simultaneamente palavra divina e literatura. Entretanto, apresenta peculiaridades que a distinguem de outras obras literárias. Não raro, verificam-se concepções distorcidas dos textos sagrados. Alguns os leem apenas literalmente ou de modo denotativo. Nela, Deus fala ao ser humano. Mas, isto não significa que tudo é inquestionável. Ela apresenta também um aspecto metafórico. É preciso saber até onde vão a inerrância e a inspiração bíblicas. Estas não se prendem a estilos, formas literárias, costumes e dados culturais da época dos hagiógrafos. Tais elementos constituem o contributo humano. Dir-se-ia que a Sagrada Escritura é uma obra em coautoria. O homem colabora na forma de narrar e escrever. E ali Deus revela à humanidade sua mensagem divina, universal e perene. A literatura tem uma força própria de expressar a realidade, rica de significados e simbolismos. A poesia, em especial, consegue fazê-la de um jeito que a linguagem habitual não realiza. A Bíblia é como um grande poema, todo marcado de inspiração. Num texto poético há muito mais daquilo que está escrito literalmente. O teólogo suíço Kurt Marti afirmava que “Deus muitas vezes mantém alguns poetas à sua disposição, para que o falar sobre Ele preserve a Sua inefável riqueza e beleza, que os sacerdotes e teólogos não conseguem exprimir.” A poesia chama a atenção para o fato de que nem sempre um escrito reveste-se da palavra perfeita. Com a introdução dos métodos históricos e críticos (em especial, a “formesgeschichte”, teoria das formas), tem-se uma abordagem mais realista da Escritura, enquanto produção literária, superando leituras superficiais e inexatas. Sem perder seu caráter sagrado, vai se revelando, paulatinamente, tecida por mãos humanas. A partir de novas luzes das ciências, identificaram-se nos textos bíblicos vários gêneros literários neles utilizados. Descobriram-se tradições religiosas subjacentes, métodos com os quais os autores trabalharam ao escrevê-los, estruturas estilísticas e narrativas. Assim, formam-se as abordagens escriturísticas, sob as mais diversas perspectivas: teológica, ética, literária, antropológica, social, histórica, cultural etc. São enfoques que se complementam, ajudando o leitor a aprofundar-se nos textos sagrados, captando melhor a mensagem, como Palavra divina. É preciso possuir certos conhecimentos para adentrar no mundo dos escritos bíblicos e descobrir a mensagem salvífica. Esta encontra-se também por trás das palavras, revestida de linguagem humana e carga cultural. Isto permite distinguir entre aquilo que é denominado pelos exegetas e hermeneutas: o denotativo e o conotativo. Um exemplo dessa diferença poderia ser a passagem do Levítico (cf. Lv 11,7-8). Ali, proíbe-se o consumo de carne suína ao povo da Antiga Aliança. Tratava-se, dentro do contexto daquele tempo, de uma proteção à saúde. Numa linguagem atualizada não seria recomendado o consumo de alimentos gordurosos, contaminados por agrotóxicos, impregnados de conservantes e corantes, danosos ao ser humano. A proibição religiosa de ingerir, à época, carne de porco (denotativo) traz uma mensagem: evitar alimentos nocivos à vida, dom precioso de Deus (conotativo). Assim, a Bíblia em seu aspecto literário veste-se da roupagem do que pretende transmitir. A mensagem está naquilo que é conotativo. Ali, residem a inerrância e inspiração bíblicas, ensina-nos a Igreja. A esta cabe a verdadeira exegese ou hermenêutica do Antigo e Novo Testamento. É importante saber que na Bíblia Deus se faz presente da primeira à última linha, mesmo quando não referido explicitamente. Cada livro sagrado possui estreita relação com o contexto de origem. Apesar de possuir objetivos e destinatários definidos, apresenta uma mensagem sempre atual. A Sagrada Escritura propõe modos de proceder individuais e sociais (ética), uma sabedoria que decorre da fé no Deus da vida. Este opõe-se a todo tipo de injustiça e degradação do ser humano, “sua imagem e semelhança.” (Gn 1, 26). Portanto, a Bíblia é uma literatura ungida, Palavra de Deus, revelada aos homens. “Tua palavra é lâmpada para os meus passos e luz para os meus caminhos.” (Sl 119/118, 105).