15/06/2020

As novas memórias
O mulato carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. E esse enorme prestígio de Machado de Assis se dá tanto cá, entre nós, quanto mundo afora, como se pôde constatar com o relançamento, nos Estados Unidos da América, na semana passada, pela respeitadíssima Penguin Books, do seu romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), com o título, traduzido ao pé da letra, “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”.
Enorme sucesso. Primeiro, de crítica. Se Harold Bloom (1930-2019), o grande literato recém-falecido, já havia apontado Machado como o “maior escritor negro de todos os tempos”, a prestigiosa revista New Yorker, agora, deu à sua resenha do livro o convidativo título – “Redescobrindo o livro mais espirituoso já escrito”. E, também, de público, já que o livro físico esgotou nas gigantes Amazon e Barnes & Noble em um só dia. Toda essa repercussão vocês podem conferir nos sites de lá (EUA) e de cá, como eu mesmo fiz no da própria Penguin (onde você pode ler um excerto do livro), na Amazon, na Superinteressante, na Veja e por aí vai.
Primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (fundada em 1897), “O Bruxo do Cosme Velho” – epíteto de Machado, tornado célebre pelo nosso genial poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) – escreveu em quase todos os gêneros literários. Fez poesia, teatro, crônica, crítica literária, jornalismo e por aí vai, mas foi sobretudo no conto/novela e no romance que ele produziu algumas das obras-primas da literatura brasileira e, posso dizer, universal. A lista é enorme. A dos meus preferidos também. Do conto/novela “O Alienista” (1892) à tríade de romances “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), “Quincas Borba” (1891) e “Dom Casmurro” (1899). Eu considero as “Memórias” o maior dos romances de Machado. “Quincas Borba”, o vice-campeão. Que me perdoem os amantes de “Dom Casmurro”. Questão de tema, talvez. Gosto dos filósofos loucos.
Na verdade, inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767), de Laurence Sterne (1713-1768), com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Que é um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo, disso ninguém duvida. As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?). Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.
Bom, eu ainda não conheço fisicamente essa nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas” da Penguin Books. Mas eu tenho uma outra edição, em inglês, do maravilhoso romance. De 1991, editora Vintage. E nela, na contracapa, outro grande escritor, Salman Rushdie (1947-), faz rasgados elogios a Machado e a seu livro: “Se Borges é o escritor que fez Garcia Marquez possível, então não é exagero dizer que Machado é o escritor que fez Borges possível. (…) Ele é uma das obras-primas da literatura brasileira, e esta espirituosa e lúcida tradução é puro prazer de leitura”. Só o título dado em inglês à minha edição, “Epitaph of a Small Winner”, me soa estranho. Brás Cubas é hoje, sem dúvida, um “grande” vencedor.
Por fim, lembro-me bem de quando comprei essa edição, usada, por três libras, naquelas bancas de livros na margem sul do Tâmisa, em Londres. Memórias vivas, graças a Deus.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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11/06/2020



INSTITUTO PRÓ-MEMÓRIA DE MACAIBA

Valério Mesquita*


Aos macaibenses e macaibeiros, de perto e da distância, torna-se público que nasceu o Instituto Pró-Memória de Macaíba, com sede no Solar do Caxangá, Rua Dr. Pedro Velho, centro.

Macaíba, talvez nem precisasse mais repetir, é uma cidade de significativa densidade histórica e cultural, não apenas por ter sido berço de figuras proeminentes como Augusto Severo, Alberto Maranhão, Tavares de Lyra, Auta de Souza, Henrique Castriciano de Souza, João Chaves, Otacílio Alecrim, Jessé Pinto Freire, Enock Garcia, Alfredo Mesquita Filho, Major Antônio Andrade, José Jorge Maciel, Bartolomeu Fagundes, José Melquíades, Manoel Maurício Freire, Ivan e João Meira Lima e tantos outros, mas também porque foi palco do processo inicial de colonização que começou com o Solar do Ferreiro Torto, o Engenho dos Guarapes, a invasão dos holandeses guiados pelo judeu Jacob Raby e ali, bem perto, pelo martírio de Uruaçu, atual São Gonçalo do Amarante, cuja história política e social se confunde com a de Macaíba.

Essa identidade histórico-cultural estava para desaparecer. Os sobrados e casarões onde nasceu a maioria desses vultos já não existem mais. Foram derrubados ou descaracterizados. A cidade está na UTI da perda total da memória. E a tendência seria desaparecer tudo de vez, inclusive as datas célebres dos feitos dos seus filhos heróis, os livros, as ações, e os poucos monumentos que ainda restam.

Por isso tudo surgiu o Instituto com uma ideia, uma proposta de resgatar e salvaguardar o espólio cultural do Município para que não ficasse, também, comprometido, o seu futuro. Os anjos tutelares desse movimento são Olímpio Maciel Neto, Franklin Delano Garcia, Roosevelt Meira Garcia, Nídia Mesquita, além de outros componentes, igualmente filhos da terra-berço da maternidade. A sede da entidade foi uma opção pré-concebida de salvar da destruição iminente o Solar do Caxangá que pertenceu ao Coronel Afonso Saraiva e, depois, como dote de matrimônio de sua filha D. Segunda, no século dezenove, foi transferido para o Major Antônio Andrade de Lima.

Quem for a Macaíba conhecer o Solar, hoje cerca- do de construções irregulares que destruíram a visão senhorial do prédio, há de convir e constatar que a diretoria do Instituto fez o milagre da ressurreição, não deixando por terra uma das mais raras relíquias de mais de 150 anos de história. Macaibenses e macaibeiros: é chegada a hora de todos de boa vontade, que amam essa cidade, que lhe devem os sonhos e as ilusões, ajudarem o trabalho maior, não dos que caminham depressa e passam, mas dos que não param nunca de caminhar. Visitem a Casa da Memória Macaibense. Conheçam seus projetos. Irmanem-se em favor de uma causa que procura restituir a alma de sua cidade.




03/06/2020







A companhia dos livros
Há uma frase que adoro e sempre repito: “Um homem de espírito nunca se sente só consigo mesmo”. Não sei por que cargas d’água, sempre atribuí essa danada a Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Talvez se deva ao fato de achá-la a cara de “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister” (1796), que é, de par com “A montanha mágica” (1924) de Thomas Mann (1875-1955), um dos mais célebres “romances de formação” (“Bildungsroman”, em alemão) da história da literatura universal. Talvez seja apenas porque, assim, lhe empreste o argumento da autoridade. Se a frase fosse ou for minha, disso, de autoridade, teria muito pouco ou quase nada.
Na realidade, não sei nem se o seu conteúdo é verdadeiro. Já passei por maus bocados, solitário, quando estudei/morei fora do Brasil. Bom, muito provavelmente, eu não seja um “homem de espírito” tal qual Goethe se definia. Certamente é isso.
De toda sorte, nestes tempos tão difíceis, eu vou utilizar a sentença do autor de “Afinidades eletivas” (1796) para falar de um excelente tipo de companhia para a solidão: os livros. Os homens de espírito são, de modo geral, muito afeiçoados a eles.
Muito se fala dos benefícios trazidos pelos livros e pela leitura. Castro Alves (1847-1871), em seu poema “O livro e a América”, disse: “Oh! Bendito o que semeia/Livros...livros à mão cheia.../E manda o povo pensar!/O livro caindo n’alma/ É germe — que faz a palma/É chuva — que faz o mar”. Cultura, educação, conhecimento. Coisas tão caras à civilização, mas que hoje, muito frequentemente, são desprezadas por alguns obscurantistas, aqui e alhures. E, para além do conhecimento, os livros, os bons livros, escritos por mentes iluminadas, durante os mais de dois mil anos da nossa história, também nos dão inspiração, sanidade e felicidade. Por fim, eles nos curam de muito males. Inclusive os males de que hoje estamos padecendo.
Por sinal, conheço um livro interessantíssimo, que trata precisamente disso: “Farmácia Literária” (Versus Editora, 2016), de Ella Berthoud e Susan Elderkin. Organizado em forma de dicionário, nele “os leitores podem simplesmente procurar por sua ‘doença’, seja ela agorafobia, tédio ou crise da meia-idade, e encontrarão um romance como antídoto”. E a chamada “biblioterapia” do livro “não discrimina entre as dores do corpo e as da mente (ou do coração). Está convencido de que tem sido covarde? Leia O sol é para todos e receba uma injeção de coragem. Vem experimentando um súbito medo da morte? Mergulhe em Cem anos de solidão para ter uma nova perspectiva da vida como um ciclo maior. Ansioso porque vai dar um jantar em sua casa? [Coisa quase impossível hoje, não?] Suíte em quatro movimentos, de Ali Smith, vai convencê-lo de que a sua noite nunca poderá dar tão errado”.
Nestes tempos bicudos, tão escassos de contatos pessoais, em que, tal qual o “Elefante” de Carlos Drummond de Andrade (1902-1907), estamos ávidos “para sair à procura de amigos”, num “mundo enfastiado, que já não crê nos bichos e duvida das coisas”, quando “não há na cidade alma que se disponha a recolher em si”, do nosso “corpo sensível, a fugitiva imagem, o passo desastrado, mas faminto e tocante”, sobretudo “faminto de seres e situações patéticas, de encontros ao luar, no mais profundo oceano, sob a raiz das árvores ou no seio das conchas”, a melhor companhia/remédio que podemos ter são os livros. Com efeitos colaterais mínimos, juro.
Na verdade, isso vale não só para agora. Na vida, nem sempre podemos ter nossas amadas conosco. Nem nossa família. Ou mesmo os nossos amigos. No frigir dos ovos, para termos qualquer dessas companhias, dependemos da vontade de outrem. E até já foi dito, por um tal Jean Paul Sartre (1905-1980), embora em outro contexto, que “o inferno são os outros”. Já na companhia de um grande livro, com suas narrativas e suas personagens, não dependemos de ninguém. Estaremos sempre bem acompanhados, mesmo estando sozinhos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
“Tudo passa. Só Deus basta”
Padre João Medeiros Filho

Muitos conhecem essa afirmação da poetisa e mística espanhola Santa Teresa d´Ávila, inspirada no Evangelho: “o céu e a terra passarão, mas minhas palavras jamais passarão” (Mt 24, 35; Lc 21, 33). Um cantor da atualidade interpreta uma música de sua autoria, na qual entoa: “A vida é [como as águas de] um rio. Não seremos os mesmos jamais. Se a gente falar menos... teremos estrelas pra alcançar, sonhos pra sonhar, flores pra regar”. Talvez, alguns recordem Maysa, interpretando um de seus grandes sucessos: “Meu mundo caiu”. O título da música é deveras atual. O universo de cada um desabou, dos sonhos banais aos ideais mais consagrados da alma humana. A fênix de nosso íntimo ressurgirá e sairá voando em busca da ressignificação dos valores, outrora inarredáveis em nossos devaneios. Igualmente, procurará algum porto seguro, onde possa depositar novas convicções. É o momento do Pai e de sua graça, como expressava a filósofa Simone Weil, sempre sedenta do Infinito, em “Attente de Dieu” (À espera de Deus).
A pandemia, que ora grassa pelo nosso país, colocou-nos cara a cara com pretensas certezas, derrubando a segurança de algumas emoções. Ela sacudiu-nos com angústias e temores, abalando nossos alicerces. Mas, no ziguezague dos sustos e apreensões, Cristo sempre aparece, apontando a estrada: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6). Paul Claudel (que foi diplomata no Brasil) dizia: “Jesus desafia-nos a assumir nossa infância espiritual e, vez por outra, brinca de esconde-esconde conosco”. Pode-se verificar tal assertiva, perpassando pelas páginas dos evangelhos. No episódio dos discípulos de Emaús, o Ressuscitado permaneceu inicialmente desconhecido, durante a viagem. Mas, ao sentir a tristeza dos caminhantes desnorteados, revelou-se, demonstrando que está sempre conosco e não nos abandona à própria sorte.
É possível que saibamos agora dar o devido valor à conversa com os amigos no café da esquina; ao cheiro da comidinha caseira; ao abraço apertado na pessoa querida e, até mesmo, às nossas briguinhas familiares. Aprenderemos melhor a repaginar tudo o que era desvalorizado pela banalidade do gesto ou trivialidade do conteúdo. Isso irá nos ensinar: “Vita quae sera tamen” (vida ainda que tardia). Mudaríamos uma palavra do lema dos inconfidentes mineiros, oriundo da Primeira Égloga de Virgílio. Acreditamos que mudar é preciso, realidade preconizada por Cristo, na narrativa do evangelista João, ao dialogar com Nicodemos: “Necessário vos é nascer de novo” (Jo 3, 3).
Recentemente, aqui no Brasil, pessoas indignaram-se porque na França – a partir da reabertura gradual do comércio – formaram-se filas em frente a uma tradicional loja parisiense de roupas. Também se poderia condenar, por acaso, uma jovem que vá a um shopping natalense (quando voltar a funcionar) e comprar uma linda blusa, e vestida com ela contemplar a beleza do mar e o encanto do pôr do sol? Optaria por um visual diferente, simbolismo externo da renovada vestimenta da alma. Afinal, o mundo não mudou? O Evangelho é isso: Boa Nova, alegria, outra visão do mundo e das pessoas. Cristo ensinou: “Verão novos céus e nova terra” (Ap 21, 1). Sua mensagem é clara. Mas, a dor teve de vir para nos fazer abrir os olhos. Foram-se as nossas pretensas certezas.
A pandemia trouxe lições que insistíamos em não aprender. Poderemos ser felizes sem as “seguranças”, que nos tornaram frágeis e as obviedades que nos obnubilaram. Falarão mais alto as palavras do apóstolo Paulo: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4, 13). Ou ainda, a advertência do Mestre: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Já não somos mais o que éramos. Voltaremos às nossas origens. “Somos filhos de Deus, dele saímos e para Ele voltaremos” (Rm 8, 16). A vida se renovará e o Amor ressurgirá. Vale lembrar as sábias palavras de Sêneca “Durante toda a vida é preciso reaprender a viver”. Esperamos que se possa também ter chegado à conclusão de que ainda (infelizmente) “debaixo do sol, no lugar do direito reina a impiedade, em vez da justiça domina a iniquidade”! (Ecl 3, 16). E isso não é de Deus!


27/05/2020




ALFREDO MESQUITA FILHO: 119 ANOS

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

Dia 12 de abril passado fez cinquenta e um anos do desaparecimento do maior líder político municipal da terra de Auta de Souza. Uma vida pública exercida ao longo de mais de quarenta anos impossível ser memorizada de uma ou duas vezes. Quase sempre fatos isolados ou esquecidos emergem e são lembrados, aqui e acolá, por mentes privilegiadas que ajudam a moldar o perfil de quem já se foi, mas que deixou inesquecíveis lições de vida. Assim foi Alfredo Mesquita Filho, ex-prefeito de Macaíba (três vezes) e ex-deputado Estadual, também por três legislaturas, que nasceu em 23 de maio de 1901.

O traço predominante de sua personalidade era o despreendimento, o despojamento de bens materiais ou vantagens que lhes fossem, porventura, oferecidas. Esse legado grandiloquente de sua vida tive poucas chances de narrá-lo em várias notas biográficas que produzi, principalmente por ocasião do seu centenário de nascimento.

01) Integrava uma prole de seis irmãos herdeiros de um rico patrimônio em fazendas, rebanhos, lojas de tecidos e dinheiro quando sobreveio a morte do seu pai. Como não poderia deixar de ser, ocorreram inúmeras discussões e disputas entre os irmãos pelo espólio. Ao receber o seu quinhão percebeu que dois dos seus irmãos litigavam pessoalmente e na justiça, insatisfeitos pelo que lhes coubera. Numa atitude inusitada, ofereceu “de mão beijada” a sua parte na Loja Natal Modelo aos dois contendores e com isso sepultou a dissensão dos manos José e Vicente Mesquita.

02) De outra feita, lá pelo final dos anos quarenta, presenciou a firma Santos e Cia Ltda, pertencente ao seu grande amigo José dos Santos, atravessar seriíssimas dificuldades de crédito, além de outros problemas que inviabilizavam a organização. Desfrutando de excepcional prestígio político e pessoal nos governos pessedistas de José Varela, no Rio Grande do Norte, e de Eurico Gaspar Dutra, Presidente, através de Georgino Avelino e João Câmara, conseguiu no Rio de Janeiro, capital da República, a recuperação econômica da empresa, tornando-se credor da gratidão e do profundo reconhecimento da família Santos. Seu José, português, homem honrado e líder do grupo, convidou Mesquita para ser sócio da firma. “Não posso ser sócio se não tenho capital nem ações para tal objetivo”, foi a sua resposta. “O que você fez é bem mais do que todos esses papéis”, retrucou o velho José dos Santos. “Mas não posso aceitar”, concluiu Alfredo Mesquita e encerrou o assunto. Creio que Geraldo Ramos dos Santos e José dos Santos Filho conhecem o episódio.

03) No plano político, menores não foram os exemplos do seu desapego às ofertas ou benesses que pudessem lhe trazer vantagens ou significar se curvar aos poderosos. Lembro-me que no governo de Aluízio Alves, em 1965, recebeu uma missão chefiada pelo economista Roosevelt Garcia com o fito de oferecer-me um cargo de fiscal de rendas, em troca do abrandamento de sua atuação política no município para beneficiar a candidatura do Monsenhor Walfredo Gurgel. A resposta só não foi truculenta em respeito ao emissário, que era um dos seus sobrinhos prediletos. E assim perdi a missão de arrecadar tributos.

Testemunhei todos os percalços do seu itinerário político. Presenciei traições, acompanhei revoltas mas nunca vi seus olhos marejados indicando sofrimento. Vi uma vez, duas lágrimas escorregando no seu rosto. Foi em 1964. Quando criminosamente ousaram derrubar a casa onde havia nascido Auta de Souza. Era como se visse um pedaço do seu passado jogado no lamaçal da história.

Neste dia comecei a ver nos olhos de “seu” Mesquita, um mundo novo que invadiu o meu destino. E que ensinava Jesus Cristo: “os olhos são as janelas da alma”.

Naquele dia meu pai abriu uma nova janela que hoje possui o nome de gratidão e o sobrenome de saudades.

Hoje, peco licença aos internautas para lembrar a sua data aniversaria: 23 de maio de 1901.

20/05/2020



“Minha força está no Senhor”
Padre João Medeiros Filho

O que se vislumbra para o Brasil, no período pós-pandemia? O momento atual lembra o episódio bíblico da tempestade sobre o mar da Galileia (cf. Mt 8, 23-27), em que Cristo dormia na proa de um barco. Os apóstolos ficaram amedrontados e gritaram: “Acorda, Senhor, senão iremos perecer” (Mt 8, 26). Então, Jesus os tranquilizou, acalmando as ondas. Recentemente, a humanidade foi sacudida por um vírus invisível, sentindo-se atônita. Ventos tenebrosos sopraram sobre a nau de nossas vidas! Quem haverá de nos apaziguar? Para quem tem fé, eis um momento de reflexão sobre a existência humana.
O país, cindido pelo radicalismo político, mergulhou o vírus nas entranhas da ideologia. Ouviram-se declarações e pronunciamentos polêmicos, alguns contagiados por puro partidarismo. A população encontra-se mascarada, confinada e aturdida, sedenta de alento e esperança. Aonde querem nos conduzir? Seremos submetidos a mais privações e provações? Falta quem nos traga tranquilidade. Em lugar de mostrar serenidade, certas autoridades se omitem, são blindadas ou aparecem como arautos do medo e mensageiros do pânico! Em vez de palavras de ânimo, presenciam-se contendas partidárias, angustiando-nos ainda mais. No entanto, como diz o canto religioso “nada poderá me derrotar. Nossa força e vitória têm um nome: é Jesus”. E outro hino, inspirado no Saltério, proclama: “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura na mão de Deus e vai... Ela te sustentará”. O Onipotente ampara-nos, mesmo que sejamos largados à nossa própria sorte.
O homem elevou-se a um estágio de desenvolvimento, graças à ciência e tecnologia. Deus o dotou de inteligência para coisas sublimes, colocando seu coração para além da temporalidade. Contudo, o seu grande erro foi voltar-se apenas para si, relegando a um segundo plano coisas essenciais, como respeito, diálogo, compaixão, tolerância, justiça e amor. O egocentrismo foi levado ao extremo, conduzindo ao fracasso. Thomas Merton pregava no século passado: “Homem algum é uma ilha”. Ignorou-se que somos irmãos. Exploramos a terra, os bens e os outros, em função de nossos interesses. A crise presente obrigou a refletir sobre o valor de cada coisa, deixando a descoberto nossas falsas seguranças. Mostrou que esquecemos aquilo que nutre a vida. Trocamos o espiritual pelo material, o permanente pelo efêmero, olvidamos que “somos cidadãos de outra pátria” (Fl 3, 20).
Diante do quadro hodierno, tomamos consciência de nossa fragilidade. A economia está abalada. A cada dia aumenta a pobreza. Nossa debilidade humana necessita ser protegida por múltiplos auxílios. Quem salva é a solidariedade, e não o dinheiro. Assistiu-se a ineficiência de governos e revelaram-se colapsos estatais, crônicos e latentes há décadas. Sem Deus, como será o amanhã? As igrejas não conseguiram ainda sensibilizar a sociedade para a vivência do Evangelho, a qual está mais voltada para projetos ideológicos do que para a essência da vida. Isso leva-nos a olhar para o alto e reconhecer que Deus é nossa origem e destino. É preciso contemplar a grandeza do amor de Cristo e caminhar na humildade, como filhos de Deus. Este não é nosso concorrente, e sim o Emmanuel (Deus conosco).
Vive-se uma situação surpreendente até para as imaginações mais férteis. Depois do que passamos ultimamente, que transformações virão? Ao longo da História, a humanidade deu grandes passos, após traumáticas crises. O primeiro deles é a consciência de nossa pequenez. Mas, Deus vê a beleza que se esconde em cada um de nós. Apesar de “feitos de argila, fomos tocados pelo sopro da vida” (Gn 2, 7). As calamidades ensinam que devem desaparecer os rótulos colocados nos outros. Somos iguais e passíveis dos mesmos sofrimentos. Se, depois de todo o ocorrido, não lutarmos por um mundo sem tantas diferenças, preconceitos e egos inflados, é sinal de que não aprendemos nada. Vale lembrar as palavras proféticas do teólogo Rubem Alves: “No passado, Deus tomou a decisão de lavar o mundo com água [dilúvio]. Um dia [hoje], Ele poderá purificá-lo com lágrimas e nelas afogar a empáfia de muitos”. O desafio é descobrir como o Senhor se manifestará. Mas, “quem é de Deus, reconhece as suas palavras” (Jo 8, 47).
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Foto de Carlos Rosso (Igreja de São Pedro)