20/05/2020



“Minha força está no Senhor”
Padre João Medeiros Filho

O que se vislumbra para o Brasil, no período pós-pandemia? O momento atual lembra o episódio bíblico da tempestade sobre o mar da Galileia (cf. Mt 8, 23-27), em que Cristo dormia na proa de um barco. Os apóstolos ficaram amedrontados e gritaram: “Acorda, Senhor, senão iremos perecer” (Mt 8, 26). Então, Jesus os tranquilizou, acalmando as ondas. Recentemente, a humanidade foi sacudida por um vírus invisível, sentindo-se atônita. Ventos tenebrosos sopraram sobre a nau de nossas vidas! Quem haverá de nos apaziguar? Para quem tem fé, eis um momento de reflexão sobre a existência humana.
O país, cindido pelo radicalismo político, mergulhou o vírus nas entranhas da ideologia. Ouviram-se declarações e pronunciamentos polêmicos, alguns contagiados por puro partidarismo. A população encontra-se mascarada, confinada e aturdida, sedenta de alento e esperança. Aonde querem nos conduzir? Seremos submetidos a mais privações e provações? Falta quem nos traga tranquilidade. Em lugar de mostrar serenidade, certas autoridades se omitem, são blindadas ou aparecem como arautos do medo e mensageiros do pânico! Em vez de palavras de ânimo, presenciam-se contendas partidárias, angustiando-nos ainda mais. No entanto, como diz o canto religioso “nada poderá me derrotar. Nossa força e vitória têm um nome: é Jesus”. E outro hino, inspirado no Saltério, proclama: “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura na mão de Deus e vai... Ela te sustentará”. O Onipotente ampara-nos, mesmo que sejamos largados à nossa própria sorte.
O homem elevou-se a um estágio de desenvolvimento, graças à ciência e tecnologia. Deus o dotou de inteligência para coisas sublimes, colocando seu coração para além da temporalidade. Contudo, o seu grande erro foi voltar-se apenas para si, relegando a um segundo plano coisas essenciais, como respeito, diálogo, compaixão, tolerância, justiça e amor. O egocentrismo foi levado ao extremo, conduzindo ao fracasso. Thomas Merton pregava no século passado: “Homem algum é uma ilha”. Ignorou-se que somos irmãos. Exploramos a terra, os bens e os outros, em função de nossos interesses. A crise presente obrigou a refletir sobre o valor de cada coisa, deixando a descoberto nossas falsas seguranças. Mostrou que esquecemos aquilo que nutre a vida. Trocamos o espiritual pelo material, o permanente pelo efêmero, olvidamos que “somos cidadãos de outra pátria” (Fl 3, 20).
Diante do quadro hodierno, tomamos consciência de nossa fragilidade. A economia está abalada. A cada dia aumenta a pobreza. Nossa debilidade humana necessita ser protegida por múltiplos auxílios. Quem salva é a solidariedade, e não o dinheiro. Assistiu-se a ineficiência de governos e revelaram-se colapsos estatais, crônicos e latentes há décadas. Sem Deus, como será o amanhã? As igrejas não conseguiram ainda sensibilizar a sociedade para a vivência do Evangelho, a qual está mais voltada para projetos ideológicos do que para a essência da vida. Isso leva-nos a olhar para o alto e reconhecer que Deus é nossa origem e destino. É preciso contemplar a grandeza do amor de Cristo e caminhar na humildade, como filhos de Deus. Este não é nosso concorrente, e sim o Emmanuel (Deus conosco).
Vive-se uma situação surpreendente até para as imaginações mais férteis. Depois do que passamos ultimamente, que transformações virão? Ao longo da História, a humanidade deu grandes passos, após traumáticas crises. O primeiro deles é a consciência de nossa pequenez. Mas, Deus vê a beleza que se esconde em cada um de nós. Apesar de “feitos de argila, fomos tocados pelo sopro da vida” (Gn 2, 7). As calamidades ensinam que devem desaparecer os rótulos colocados nos outros. Somos iguais e passíveis dos mesmos sofrimentos. Se, depois de todo o ocorrido, não lutarmos por um mundo sem tantas diferenças, preconceitos e egos inflados, é sinal de que não aprendemos nada. Vale lembrar as palavras proféticas do teólogo Rubem Alves: “No passado, Deus tomou a decisão de lavar o mundo com água [dilúvio]. Um dia [hoje], Ele poderá purificá-lo com lágrimas e nelas afogar a empáfia de muitos”. O desafio é descobrir como o Senhor se manifestará. Mas, “quem é de Deus, reconhece as suas palavras” (Jo 8, 47).
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Foto de Carlos Rosso (Igreja de São Pedro)

18/05/2020


Médicas e mães
Nestes tempos de crise, em que um vírus ataca nossas vidas e nossos sistemas de saúde, algumas mulheres têm se destacado na luta contra esse inimigo. No plano macro, de política sanitária, tenho constatado o excelente trabalho de estadistas como as primeiras-ministras da Alemanha e da Nova Zelândia, Angela Merkel (1954-) e Jacinda Ardern (1980-), respectivamente. Assim como tenho visto e lido, na TV, nos jornais, nas redes sociais, o diuturno trabalho de inúmeras mulheres – médicas, enfermeiras, fisioterapeutas, assistentes sociais e por aí vai – contra essa pandemia. Famosas ou anônimas, elas são, cada qual a seu modo, heroínas nessa guerra para salvar a nossa saúde.
Andei estudando um pouco o tema das “mulheres na medicina”, em especial num livro que possuo (na verdade, um livrão, daqueles de enfeitar centro de mesa), “Medicine: the Definitive Illustrated History” (Dorling Kindersley Limited, 2016), que tem o prolífico divulgador científico Steve Parker (1952-) como seu consultor principal. E sem surpresa constatei que, durantes séculos, o papel das mulheres na medicina refletiu a posição delas na sociedade. “Mulheres sempre exerceram papéis importantes como cuidadoras, enfermeiras e parteiras, mas, até o século XIX, pouquíssimas tiveram uma posição de destaque na medicina”, infelizmente li. Médicos, sobretudo aqueles em posição de destaque, eram, na sua quase totalidade, homens. E um razoável grau de igualdade só foi alcançado no fim do século passado e, mesmo assim, não em todos os países.
É claro que, na história, existiram pioneiras na medicina. A alemã Hildegarda de Bingen (1098-1179), por exemplo, “foi uma proeminente abadessa, poetisa, musicista e médica. Seus trabalhos dos anos 1150 incluem o ‘Liber Simplicis Medicinae’ (‘Livro da medicina simples’), depois chamado de ‘Physica’, no qual descreve centenas de tratamentos a partir de minerais, ervas e extratos animais”. Ela é hoje santa e doutora da Igreja Católica. E, como ainda li no meu livrão, “a aceitação de mulheres na medicina só começou a acontecer no século XVIII. Em 1732, a italiana Laura Bassi foi nomeada professora de anatomia na Universidade de Bolonha, continuando sua carreira na prática médica. Na Prússia, Dorothea Erxleben, com especial permissão do Rei Frederico, o Grande, graduou-se em medicina pela Universidade de Halle em 1754. Mas esses eram ainda casos isolados. Em 1849, Elizabeth Blackwell tornou-se a primeira americana graduada em medicina, vindo a ter uma longa e conceituada carreira, desbravando a história das mulheres na medicina. Na Inglaterra, ela ajudou a criar a London School of Medicine for Women, em 1874, junto com as médicas britânicas Sophia Jex-Blake e Elizabeth Garrett Anderson”. Todas essas pioneiras devem ser aqui penhoradamente homenageadas.
Fico feliz que as coisas tenham mudado e, hoje, possamos ver muitas médicas por aí.
E, dito isso, agora que comemoramos o dia das mães, vou fazer uma homenagem especial às médicas que são também mamães. Até porque, esta semana, vi o depoimento de uma delas, médica-mãe na linha de frente do coronavírus, sobre o sacrifício e a dor, física e emocional, de estar longe dos seus pequenos, para também “salvar” a vida deles. Tocante, de verdade.
Em tempos tão difíceis, digo a elas o que diria à minha mãe ou à minha mulher (mãe do meu pequeno João), repetindo os versos de Mario de Andrade (1893-1945) no poema “Mãe”: “Existirem mães, isso é um caso sério. Afirmam que a mãe atrapalha tudo. É fato. Ela prende os erros da gente. E era bem melhor não existir mãe. Mas em todo caso, quando a vida está mais dura, mais vida, ninguém como a mãe pra aguentar a gente, escondendo a cara entre os joelhos dela. ‘O que você tem?’. Ela bem que sabe. Porém a pergunta é pra disfarçar. Você mente muito. Ela faz que aceita, e a desgraça vira mistério pra dois”. Muito obrigado, mamães!
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL



JOSÉ DE ALMEIDA
Valério Mesquita*

Domingo 18 de janeiro, foi um dia triste para mim. Quando retornava do hospital onde fôra visitar a minha mãe, recebi a noticia do falecimento súbito de José de Almeida, amigo, conterrâneo e irmão maçônico da Loja Bartolomeu Fagundes. Com a voz embargada pela emoção, Ticiano Duarte, meu primo e Grão Mestre do Grande Oriente Independente do Rio Grande do Norte, transmitiu a infausta noticia com dificuldade. Almeida era o secretário especial do Grande Oriente com devotamento exemplar a causa maçônica e uma convivência diária que enternecia a todos. Neutralizado pelo impacto, de repente, fluíram-me as lembranças e as passagens de nossas vidas todas ligadas a Macaíba,  território emocional de inesquecíveis jornadas. Comecei pelos seus pais Alfredo de Almeida e D. Ana, compadres dos meus pais, que cumpriram uma amizade indelével ao longo da existência, compartilhada de atitudes de fidelidade e respeito jamais contrariados em momento nenhum da missão divina e dadivosa aqui na terra. Imaginei a imensa perda para a sua esposa Dione, o único amor de sua vida e dos seus filhos Almeidinha, Alexandre e Cláudio. Como uma procissão de relembranças, restituo as figuras dos seus irmãos Cícero Almeida, Mariluza (falecida), irmã Almeida (falecida) e Netinha. Quanta dor pela partida tão prematura de José!!
O desapontamento da contrariedade me impunha silêncio e recordações. Não queria aceitá-lo morto, inerte. Ele que foi irrequieto, disponível, prestativo, solidário, sincero, incondicional nas amizades. Amou Macaíba como uma entidade superior, tanto quanto a sua pátria que jurou servi-la ao ingressar no Exército Brasileiro. José Almeida era presidente do Lions Clube de Natal-Norte e esteve à frente de todos os acontecimentos sociais, esportivos, culturais e políticos de sua terra ao longo de quarenta anos. A maçonaria era a sua dedicação e paixão. Macaíba não pode esquecê-lo jamais. Na vida social o Pax Clube lhe deve tudo. No esporte o Humaitá e o voleibol não o olvidarão jamais. Na política, ao lado de Dione, participou de memoráveis eventos em favor do Município, pois foi secretário municipal por mais de uma vez. Boêmio, amigo dos mais simples, pobres e ricos, pretos e brancos, posso afirmar, sem medo de errar, que em cada esquina, praça, rua, bares da vida boêmia de Macaíba, êle será sempre reverenciado por todos com saudade e ternura.

(*) Escritor.


Aos que cuidam da gente

Daqueles na linha de frente do combate ao coronavírus, os profissionais de enfermagem – enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem – são, de longe, os que mais têm perdido suas vidas para salvar as nossas. Só no Brasil, já são para lá de 100 mortos. E digo isso com especial tristeza, quando “celebramos”, na semana passada, o Dia Internacional do Enfermeiro.
A enfermagem é uma das mais antigas “profissões da saúde”, sabemos, muito embora, por séculos, nos hospitais de então, em sanatórios ou nas instituições religiosas que prestavam esse tipo de assistência, o atendimento por esses profissionais fosse muito mais heroico do que técnico e científico. A Idade Média, em especial, foi um período sombrio para a enfermagem.
Segundo verifiquei no meu livrão “Medicine: the Definitive Illustrated History” (Dorling Kindersley Limited, 2016), coordenado por Steve Parker (1952-), a coisa só veio a mudar, para melhor, lá pelo século XIX. Foi precursor, na Alemanha, o belo trabalho do pastor Theodor Fliedner (1800-1864), que “abriu um hospital na região do Reno em 1836. Ali, às enfermeiras eram dadas instruções clínicas e de farmácia – a prática de preparar e dispensar drogas. Esse curso de enfermagem era bastante avançado para a época, e a mais famosa aluna de Fliedner – Florence Nightingale – passou três meses no hospital em 1851. Lá pela metade do século XIX, o conceito de mulheres sendo capacitadas como enfermeiras estava bem estabelecido”.
E aqui chegamos certamente à principal personagem desta história: a enfermeira Florence Nightingale (1820-1910). Nascida em abastada família inglesa, ela foi a grande reformadora da enfermagem. Mulher de grande força de vontade, trabalhou heroicamente na Guerra da Crimeia (1853-1856), restando ali conhecida como “A Senhora da Lâmpada”. Dizem – e damos isso como certo – que seu trabalho reformador, ali e depois, salvou muitas vidas. As mulheres enfermeiras foram fundamentais na guerra e depois. Em 1860, Nightingale fundou uma escola de enfermagem no St. Thommas Hospital, em Londres, ajudando a estabelecer a enfermagem como uma carreira respeitável para as mulheres de então. Seguindo o exemplo da pioneira, associações e escolas de enfermagem ganharam o mundo, com o reconhecimento da nobre profissão. Aliás, o Dia Internacional do Enfermeiro é comemorado em 12 de maio exatamente por ser esse o dia em que Nightingale nasceu.
Com o passar dos anos, a coisa avançou ainda mais. Se do tempo de Nightingale até a 1ª Guerra Mundial as enfermeiras eram responsáveis pela higiene dos pacientes, por cuidados paliativos e pela aplicação dos fármacos, certas barreiras agora foram rompidas. Em muitos países, como li no meu livrão, “o trabalho das enfermeiras avançou para ocupar um espectro bem mais amplo de cuidados médicos. Enfermeiras modernas não são apenas cuidadoras – elas têm de apresentar um alto nível de competência técnica e podem atuar como clínicos gerais, diagnosticando doenças e tomando decisões sobre os tratamentos adequados”.
Dito isso tudo, antes de terminar, farei ainda duas observações pessoais.
A primeira é que, quando do meu doutorado no King’s College London – KCL, dei muito de cara com a imagem e a história de Nightingale. O St. Thommas Hospital é vinculado ao KCL e é famosíssima a sua “Florence Nightingale Faculty of Nursing, Midwifery & Palliative Care”. Penitencio-me de não haver diariamente homenageado a grande enfermeira.
A segunda, que faço por um dever moral, diz respeito às tristes cenas que presenciamos estes dias, com tresloucados, em Brasília, agredindo enfermeiros e enfermeiras que ali homenageavam colegas mortos na atual pandemia. As imagens me chocaram. Não chocaram vocês? Seria uma nova banalidade do mal? E logo contra quem cuida da gente?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

10/05/2020



A MÃE É UMA CRIATURA IMORTAL
Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

O dia de hoje é sagrado, especial, glorioso e redentor, posto que universalmente dedicado às MÃES.
Nossas genitoras são as criaturas que Deus colocou no mundo para iniciar nossa educação, proteger nossas vidas e inspirarem os cidadãos e cidadãs para o caminho do bem.
Inexiste neste mundo, com tantos costumes contrastantes, famílias que não cultuem as mães, senão uma minoria que é levada por interesses mesquinhos ou que tenham o mal no coração, longe daquele que é O CAMINHO, A VERDADE E A VIDA,.
Por esse motivo, invoco as mães da família MIRANDA GOMES, GOMES DA COSTA e ROSSO NELSON, tanto as que ainda estão nesta dimensão da vida (em particular Dona Rachele), quanto as que foram para perto do Senhor – Dona Rosa, Maria Lígia (minha mãe), Elza Freire, Maria de Lourdes, Maria da Cruz, Anna Rodrigues, Elizier Benfica (Zizi), THEREZINHA ROSSO (minha eterna amada), Elza Carlina, para, unidos, comemorarmos com amor a passagem dos nossos antepassados, junto às mães que ficaram como sementes de continuidade, em particular as minhas filhas Rosa Ligia, Thereza Raquel e minhas noras Daniela e Valéria.
É difícil conciliar a alegria das mães presentes com a saudade das que partiram. Mas assim e ciranda da vida, na certeza de que as que já fizeram a viagem final jamais serão esquecidas, porque as mães são IMORTAIS no coração dos que ficaram.
FELIZ DIA DAS MÃES A TODAS AS FAMÍLIAS UNIVERSAIS.

04/05/2020


Separação de Chico e Francisco
Esta semana – e no Brasil de hoje só não morremos de tédio – assistimos a mais uma polêmica jurídico-política: a malograda nomeação, pelo Presidente da República, do diretor-geral da Polícia Federal, obstada, de imediato, por decisão do Supremo Tribunal Federal, no MS 37.097-DF.
E veio a discussão sobre se essa decisão do STF não ofendia o princípio/doutrina da separação dos poderes, uma vez que é prerrogativa do Presidente da República nomear o diretor de nossa polícia judiciária federal (CF, art. 84, XXV e Lei Federal 9.266/1996, art. 2º-C).
De fato, a doutrina da separação de poderes sugere, ou mesmo exige, que as funções legislativa, judiciária e executiva do Estado sejam exercidas por órgãos ou poderes distintos. Em princípio, cada macaco no seu galho, sobretudo se imaginarmos aquela concepção rígida de separação de poderes, fruto da Revolução Francesa e da desconfiança nos juízes do Antigo Regime, segundo a qual os poderes Legislativo e Executivo são exercidos, através de seus representantes, em nome do povo soberano, não cabendo aos juízes imiscuírem-se nas atividades próprias a esses dois poderes.
Entretanto, a coisa não é assim tão preto no branco. De fato, é possível dizer que a teoria da separação não é tão rígida a ponto de impedir totalmente o exercício, por um dos poderes do Estado, de função, em regra, atribuída a outro poder. Como lembra Fernando Whitaker da Cunha, em “Teoria Geral do Estado: introdução ao Direito Constitucional” (Freitas Bastos, 1990), pressentida por Aristóteles, esboçada na China, no século VII, pela dinastia Tang, esquematizada por São Tomás de Aquino e formulada, modernamente, por Montesquieu, a teoria da separação dos poderes, apesar de entendida como fundamental para o poder político atuar, não merece a reverência quase religiosa que às vezes lhe é dada. Não sendo uma classificação científica das funções do Estado ou mesmo um dogma do sistema democrático, é, sim, uma receita de liberdade, cuja extensão e valor prático dependem das circunstâncias dadas.
Na verdade, hoje, temos uma nova concepção do princípio da separação dos poderes, que abandona a ideia da rígida séparation des pouvoirs e consagra a ideia de uma sharing of powers. No nosso constitucionalismo, os exemplos de exercício, por um dos poderes do Estado, de função típica de outro, são muitos e bastante conhecidos. À ideia de controle de constitucionalidade – que é, muitas vezes, uma atividade legislativa negativa – ninguém se opõe. E as pessoas só falam de ativismo no judicial review quando a decisão dada lhes é desagradável.
Certamente foi por isso que o Ministro Alexandre de Moraes, na decisão concessiva de liminar, anotou não caber ao Judiciário moldar subjetivamente a Administração, “porém a constitucionalização das normas básicas do Direito Administrativo permite ao Judiciário impedir que o Executivo molde a Administração Pública em discordância a seus princípios e preceitos constitucionais básicos, pois a finalidade da revisão judicial é impedir atos incompatíveis com a ordem constitucional, inclusive no tocante às nomeações para cargos públicos, que devem observância não somente ao princípio da legalidade, mas também aos princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.
De toda sorte, no meio desse cripocó, um amigo perguntou: “E, agora, toda vez que o Presidente for nomear alguém, ele poderá ser impedido pelo STF?”. Respondi: “Não. Só no caso de essa nomeação, como dito pelo Ministro, ferir, em desvio de finalidade, os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”. Aliás, parece que já havia um precedente famoso, quando da nomeação de um ex-Presidente para o cargo de Ministro de Estado. E, dizem os de boa-fé, pau que dá em Chico deve dar em Francisco também.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

25/04/2020




OCTACÍLIO ALECRIM



Valério Mesquita*



Octacílio Alecrim nasceu em Macaíba (RN), em 17 de novembro de 1906. Seus pais eram o Coronel Prudente Gabriel da Costa Alecrim e Ana Pulchéria de Melo Alecrim, comerciantes bem situados da região. Aprendeu as primeiras letras na sua cidade, vindo depois para Natal continuar os estudos no Colégio Santo Antônio e no Atheneu Norte-Rio­grandense. Formou-se em Direito no Recife no ano de 1934, tendo sido um dos líderes acadêmicos mais atuantes do seu tempo. Nessa época, fundou a Revista Cultura Agitação com Álvaro Lins, Aderbal Jurema e outros contemporâneos.

Depois de formado, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se aproximou do Grupo Brasileiro de Estudos Proustianos, formado por intelectuais como Otto Maria Carpeaux, Sérgio Buarque de Holanda, Lúcia Miguel Pereira, e outros. Assim que foi possível, viajou para a França, onde passou uma temporada aprofundando seus estudos sobre Proust.

Octacílio Alecrim escreveu e publicou vários artigos em jornais e revistas, como Diário de Pernambuco, Correio da Manhã, Jornal de Letras (RJ), Revista de Antropofagia (SP), Revista Nordeste (PE), e Revista Branca (RJ), sendo a maior parte deles sobre o tema da escrita proustiana. Na Revista de Antropofagia (2ª edição, 1929), ele publicou um texto — “Miss Macunaíma” — que trata com extrema ironia da viagem de uma pseudo-­escritora, do Sul ao Nordeste. Logo nas primeiras linhas, o leitor mais atento percebe que, na realidade, ele está referindo-se a Mário de Andrade e à sua viagem às terras potiguares, de 1928 e 1929. A ironia, o preconceito e o tom bem agressivo que perpassam pelo texto evidenciam o posicionamento do autor junto a Oswald de Andrade, no embate literário que este desencadeou contra o autor de Macunaíma.

Em 1957, Octacílio Alecrim publicou um livro de memórias intitulado Província Submersa (Reeditado pelo Senado Federal juntamente com o Instituto Pró-Memória de Macaíba). Esse livro pode ser considerado uma autobiografia. Nele, o autor realiza um verdadeiro retomo, à moda de Proust às suas origens e ao tempo da infância, resgatando com  sensibilidade inúmeros tipos e costumes da sua terra. O livro está organizado em cinco partes, assim respectivamente denominadas: Zumbido de Berimbau, Parafuso de Redemoinho e Almanaque de Lembranças; segunda parte: Brevetes do Fabulário; terceira parte: Fogueira de Guia, Evocações de estrelas cadentes e Nostalgia do infinito; quarta parte: Signo de escorpião; e quinta parte: Sobrevivência de Anteu. Ao final do volume, há ainda uma série de depoimentos sobre o autor, assinados por escritores e historiadores da literatura, tais como Mauro Mota, Nilo Pereira, Celso Kelly, Afrânio Coutinho, Veríssimo de Meio, Américo de Oliveira Costa e Peregrino Júnior.

Afrânio Coutinho, por exemplo, afirma que Octacílio Alecrim é o ensaísta delicado e penetrante que tem o prazer das sensações intelectuais refinadas. Daí sua atração por Proust, a quem são dedicadas algumas de suas melhores páginas.

Octacílio Alecrim faleceu no Rio de Janeiro, cidade em que residiu parte da vida, em 02 de setembro de 1968 e foi enterrado no Cemitério São João Batista.

Em Macaíba, uma escola estadual, em homenagem tem, o seu nome.





(*) Membro da Academia Macaibense de Letras, da Academia Norte-Riograndense de letras e do Conselho Estadual de Cultura.

(**) Foto do acervo do Instituto Tavares de Lyra