Separação de Chico e Francisco
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Esta semana – e no Brasil de hoje só não morremos de tédio –
assistimos a mais uma polêmica jurídico-política: a malograda nomeação,
pelo Presidente da República, do diretor-geral da Polícia Federal,
obstada, de imediato, por decisão do Supremo Tribunal Federal, no MS
37.097-DF.
E veio a discussão sobre se essa decisão do STF não
ofendia o princípio/doutrina da separação dos poderes, uma vez que é
prerrogativa do Presidente da República nomear o diretor de nossa
polícia judiciária federal (CF, art. 84, XXV e Lei Federal 9.266/1996,
art. 2º-C).
De fato, a doutrina da separação de poderes sugere,
ou mesmo exige, que as funções legislativa, judiciária e executiva do
Estado sejam exercidas por órgãos ou poderes distintos. Em princípio,
cada macaco no seu galho, sobretudo se imaginarmos aquela concepção
rígida de separação de poderes, fruto da Revolução Francesa e da
desconfiança nos juízes do Antigo Regime, segundo a qual os poderes
Legislativo e Executivo são exercidos, através de seus representantes,
em nome do povo soberano, não cabendo aos juízes imiscuírem-se nas
atividades próprias a esses dois poderes.
Entretanto, a coisa
não é assim tão preto no branco. De fato, é possível dizer que a teoria
da separação não é tão rígida a ponto de impedir totalmente o exercício,
por um dos poderes do Estado, de função, em regra, atribuída a outro
poder. Como lembra Fernando Whitaker da Cunha, em “Teoria Geral do
Estado: introdução ao Direito Constitucional” (Freitas Bastos, 1990),
pressentida por Aristóteles, esboçada na China, no século VII, pela
dinastia Tang, esquematizada por São Tomás de Aquino e formulada,
modernamente, por Montesquieu, a teoria da separação dos poderes, apesar
de entendida como fundamental para o poder político atuar, não merece a
reverência quase religiosa que às vezes lhe é dada. Não sendo uma
classificação científica das funções do Estado ou mesmo um dogma do
sistema democrático, é, sim, uma receita de liberdade, cuja extensão e
valor prático dependem das circunstâncias dadas.
Na verdade,
hoje, temos uma nova concepção do princípio da separação dos poderes,
que abandona a ideia da rígida séparation des pouvoirs e consagra a
ideia de uma sharing of powers. No nosso constitucionalismo, os exemplos
de exercício, por um dos poderes do Estado, de função típica de outro,
são muitos e bastante conhecidos. À ideia de controle de
constitucionalidade – que é, muitas vezes, uma atividade legislativa
negativa – ninguém se opõe. E as pessoas só falam de ativismo no
judicial review quando a decisão dada lhes é desagradável.
Certamente foi por isso que o Ministro Alexandre de Moraes, na decisão
concessiva de liminar, anotou não caber ao Judiciário moldar
subjetivamente a Administração, “porém a constitucionalização das normas
básicas do Direito Administrativo permite ao Judiciário impedir que o
Executivo molde a Administração Pública em discordância a seus
princípios e preceitos constitucionais básicos, pois a finalidade da
revisão judicial é impedir atos incompatíveis com a ordem
constitucional, inclusive no tocante às nomeações para cargos públicos,
que devem observância não somente ao princípio da legalidade, mas também
aos princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse
público”.
De toda sorte, no meio desse cripocó, um amigo
perguntou: “E, agora, toda vez que o Presidente for nomear alguém, ele
poderá ser impedido pelo STF?”. Respondi: “Não. Só no caso de essa
nomeação, como dito pelo Ministro, ferir, em desvio de finalidade, os
princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do
interesse público”. Aliás, parece que já havia um precedente famoso,
quando da nomeação de um ex-Presidente para o cargo de Ministro de
Estado. E, dizem os de boa-fé, pau que dá em Chico deve dar em Francisco
também.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL