11/02/2020
08/02/2020
DIÁRIO DE UMA TRAVESSIA
Valério Mesquita*
Empreendi a travessia do Ano Novo coletando máximas do Antigo e do Novo Testamento. Uma maneira de orar. De refletir sobre a vida com os seus erros e equívocos. “Porque o temor do Senhor é o princípio da ciência” (Provérbios 1.7). Por isso, “Louvarei ao Senhor enquanto viver” (Salmo 146.2). Neste mundo em que as pessoas permutam os templos pelas praias, shows e futebol, lembrei-me do profeta Amós 8.11 e 12: “Eis que, vêm dias, diz Jeová, em que enviarei fome sobre a terra, não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do Senhor. Correrão por toda a parte, buscando a palavra do Senhor e não acharão”. A justificativa fui achar no livro de Jeremias 17.5: “Maldito o homem que confia no homem e faz da carne o seu braço e aparta o seu coração do Senhor”.
Continuei a viagem de circunavegação espiritual. Entrei no Novo Testamento pelas mãos de Mateus no portal 11.28 a 30, ouvindo Jesus dizer uma das mais impactantes palavras do seu amor pela humanidade comum: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliarei. Tomai sobre vós o meu julgo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”. E lá no capítulo 24.13, arremata: “Aquele que perseverar até o fim, será salvo”. Já era perto da meia-noite. O universo profano, movido pelo livre arbítrio de Deus, começava a ser ouvido. Seriam bem-aventurados os ruidosos deste mundo? Dirigi-me ao Evangelho de Marcos, 8.34 a 38: “E chamando a si a multidão, com os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas, qualquer que perder a sua vida por amor de mim e do evangelho, esse a salvará. Pois, que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma? Ou, que daria o homem pelo resgate de sua alma? Porquanto, qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.”
O evangelista João, no capítulo 36, resume pela voz de Jesus Cristo, quase todo o conteúdo de sua mensagem: “O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita, as palavras que eu vos disse são espírito e vida”. E lá adiante, complementa Jesus, através de João 10.10: “Eu vim para que tenham vida e a tenham com abundância”, 10.30: “Eu e o meu Pai somos um”. Capítulo 16.33: “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”.
E referindo-se aos discípulos e pedindo por eles ao Pai, o capítulo 17.16: “Não são do mundo, como eu do mundo não sou”. Eis aí a essência de Jesus Cristo cem por cento homem cem por cento Deus – o único de todas as religiões do nosso planeta que realmente ressuscitou.
Nessa travessia, faltava-me ouvir Paulo, ainda entre outros, igualmente cheio do Espírito Santo. Paulo veio me servir, afirmando em Romanos 1.16: “Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê...” Se os seres viventes dissessem isso em toda parte e em qualquer lugar, o mundo seria melhor. Seguindo para o capítulo 6.23, de Romanos, o grande Paulo, assistido pelo Espírito Santo proclama que o “Salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna...” Mas, na Primeira Epístola aos Coríntios (capítulo 1.18 e 19), o leitor resplandecerá diante da inquietante revelação: “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem, mas para nós que somos salvos, é o poder de Deus porque está escrito: destruirei a sabedoria de sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes. Eis aí mais um insondável mistério da fé”. Lá no versículo 27, aduziu: “Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir os sábios, e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir os fortes”. No versículo 29, conclui: “Para que nenhuma carne se glorie perante Ele”.
Terminei tudo, ouvindo, sem ler mais a Bíblia, de memória, a palavra de Jesus antes de subir para o Pai: “Eu vos deixo a paz; eu vos dou a minha paz”. Aí refleti: “Tudo posso naquele que me fortalece”.
(*) Escritor
27/01/2020
RELEMBRANDO
TICIANO DUARTE
Valério
Mesquita*
Certos homens adquirem uma visibilidade tão marcante
em seu campo de atuação que se tornam imprescindíveis aos seus contemporâneos, na
medida em que suas opiniões e convicções passam a determinar modos de ver e de
interpretar os acontecimentos da vida social, política e cultural. É que aos
olhos deles nada daquilo que importa passa ao largo.
Assim via e identificava o meu primo-irmão Ticiano
Duarte. Desde a antiga Rua 13 de Maio, depois Princesa Isabel, quando o conheci
efetivamente e melhor, lá pelos idos de 1950. De 1954 em diante fui revê-lo na rua
Voluntários da Pátria, nº 722, Cidade Alta, telefone 2901. Ele era já expressão
do “batepapo” no Grande Ponto, seu fiel ancoradouro, onde se tornara notário
público e destemido navegante das ruas e avenidas da política potiguar.
Bacharel em Direito da Faculdade de Maceió, tornou-se decano do jornalismo da
imprensa potiguar, atividade da qual desfrutou de ilibada notoriedade por sua
isenção e imparcialidade nos juízos dos acontecimentos da política. Seu
memorialismo ganhava ritmo de crônica e embasamento de historiador. Em seus
escritos era possível intuir aquele saber de experiências, traço que distingue
o verdadeiro homem de visão de um mero prestidigitador de quimeras.
Foi presença fecunda na imprensa
norte-rio-grandense. A colaboração de Ticiano Duarte para a Tribuna do Norte
rendeu, numa primeira seleção, o livro “Anotações do meu caderno” (Z
Comunicação/Sebo Vermelho, 2000), reunindo os principais fatos políticos dos
últimos 70 anos do século passado no Rio Grande do Norte. A precisão das
análises, a escolha dos protagonistas, a evolução dos acontecimentos e o
retrospecto dos episódios que marcaram profundamente as vicissitudes da
política potiguar encontraram ali o seu cronista mais atento e informado, criterioso
e verdadeiro. No livro, intitulado “No chão dos perrés e pelabuchos”, avultam
as mesmas qualidades que consagraram “Anotações do meu caderno”, com a única
diferença de que se deteve com mais vagar na descrição de perfis e na análise
comparativa dos fatos, mesmo separados por décadas. Vultos inesquecíveis da
vida pública estadual, como Djalma Maranhão, Georgino Avelino, Café Filho,
Aluízio Alves, Odilon Ribeiro Coutinho (“mistura de tabajara e potiguar”),
Tales Ramalho (“paraibano por acidente, norte-rio-grandense pelas grandes
ligações familiares, e pernambucano por adoção”) são algumas das estrelas de
primeira grandeza dessa constelação de escol. Cronista, para quem a política
não pode se dissociar da ética, sob pena de naufragar nos desmandos de
governantes e correligionários, Ticiano fez o elogio dos políticos exemplares
perfilando a figura de Café Filho em toda a sua trajetória. Ao fazer o elogio
da lealdade e da coerência, ele retirou do limbo o nome de Walfredo Gurgel,
ressaltando que “o seu governo foi um exemplo de seriedade no trato e na gestão
da coisa pública. Todo o Rio Grande do Norte sabe desta irrefutável verdade e
nem mesmo seus adversários podem omiti-la, por mais que o tenham combatido no
campo das diferenças partidárias”.
Em “No chão dos perrés e pelabuchos” Ticiano
encontrou silhuetas de políticos esquecidos pela história, mas preservados, por
exemplo, numa Acta Diurna de Luís da Câmara Cascudo, como Hermógenes José
Barbosa Tinoco, deputado do Partido Liberal que a voragem do tempo soterrou; os
entreveros entre pelabuchos e perrés que incendiaram o paiol das agremiações
políticas dos anos trinta, que não escaparam à argúcia focada pelo
memorialista.
Ele propôs e reforçou as teses daqueles que defendem
a necessidade de uma urgente reforma política a fim de repor o país nos trilhos
da ética e inaugurar uma nova era política de honestidade e honradez. O seu viver
se espelhou na obra que escreveu a lucidez dos seus testemunhos de luta.
(*) Escritor
22/01/2020
Escravidão e desenvolvimento técnico
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Herdeiros de Deus: a aventura da
navegação e os negócios da colonização” – Do IHGRN
A análise da
escravidão em geral, e em particular da brasileira, exige uma reflexão sobre o
aspecto tecnológico. Tomemos a tecnologia sob dois aspectos distintos: como
forma humana de realizar um trabalho e como emprego de técnicas
mecânico-científicas de aprimorar um serviço e a qualidade dos instrumentos de
trabalho. A plantation (sistema de exploração agrícola baseado em monocultura de exportação,
mediante a utilização de mão-de-obra escrava) era quase que
autossuficiente, e o escravo que plantava era o mesmo que cuidava, cortava,
transportava, moía a cana e participava da feitura do açúcar. Portanto, houve
ou não houve mão-de-obra especializada no sistema escravista?
Há aqui duas
situações a esclarecer. Primeiro, o trabalho escravo não incluía nenhum
progresso técnico? Segundo, era o escravo que não sabia usar novas técnicas de
trabalho? Barros de Castro (1980) foca nas inovações técnicas existentes em
alguns setores do escravismo, tais como os engenhos hidráulicos e as máquinas a
vapor. Por sua vez, Alice Canabrava (1981) afirma que “o fato mais característico apresentado (...) é a estabilidade da
técnica da feitura”.
Um visitante
do Rio de Janeiro dos anos 1828/1829, Robert Walsh (1985), comenta um fato
ocorrido em relação ao porto da cidade:
“foi importado da Europa um guindaste que possibilitava a apenas dois homens
movimentarem pesos que exigiriam o esforço de vinte; houve, porém, um violento
e eficaz protesto contra a sua utilização, já que todos os funcionários da
alfândega possuíam um certo número de escravos, até mesmo os mais humildes, que
chegavam a ter cinco ou seis cada um, sendo que todos ganhavam dinheiro com o
trabalho feito por eles”. Debret (1978) cita outra resistência, essa
passiva, à introdução de novas tecnologias: “no
Rio de Janeiro, o proprietário de escravos serradores de tábuas, partidário ferrenho
desse gênero de exploração, se recusava a instalar serrarias mecânicas em suas
propriedades”. Era uma resistência subjacente, implícita, do sistema.
Um outro
fator que favorecia a estagnação técnica da unidade produtora escravista era a
indiferença dos proprietários em modificar a situação reinante. John Mawe (1978)
diz que seria extremamente difícil introduzir melhoramentos técnicos na produção
escravocrata, por resistência até dos senhores de escravos. “Essa aversão ao progresso observei com
frequência em todos os habitantes do Brasil; quando, por exemplo, interroguei
um construtor, um fabricante de açúcar ou de sabão, ou mesmo um mineiro, quais
as razões para orientar seus interesses de maneira tão imperfeita,
indicavam-me, invariavelmente, um negro, a fim de responder às minhas
perguntas”.
Fernando
Novais (1984) chega a uma conclusão feliz para o problema da tecnologia na
escravidão: “A verdadeira questão não é
obviamente entre 'escravos’ e 'máquinas’, mas entre 'escravidão’ e 'progresso
técnico’. O ponto essencial é que o escravismo não é um sistema que funciona à base do progresso técnico; e isso não
se afirma com exemplos de que escravos, em determinadas situações, foram
empregados no manejo de instrumentos sofisticados. Seria preciso demonstrar que
o desenvolvimento tecnológico era constante, e um requisito essencial para a
reprodução do sistema (...). Por outro lado, a própria estrutura escravista
bloquearia a possibilidade de inversões tecnológicas; o escravo, por isso mesmo
que escravo, há que manter-se em níveis culturais infra-humanos, para que não
se desperte a sua condição humana – isso é parte indispensável da dominação
escravista. Logo, não é apto a assimilar processos tecnológicos mais
adiantados”.
Eventualmente
eram incorporadas à economia escravista tecnologias desenvolvidas nos países
capitalistas, bem como algumas outras nascidas no próprio seio da escravidão.
De todas elas, a que teve mais efeito no desenvolvimento da escravidão moderna
foi o descaroçador de algodão que, se por um lado, tornou mais rentável a
lavoura algodoeira, fez crescer a demanda por mais escravos no Estados Unidos e
até no Brasil.
Tribuna
do Norte. Natal, 22 jan. 2020.
18/01/2020
POMPÍLIA: UM DEPOIMENTO
Valério Mesquita*
Marlindo Pompeu,
ex-vereador, político em disponibilidade, agitador social, era o meu
intérprete, ungido e jungido das causas populares. Conheci-o em Macaíba, lá
pelos idos de 1950, quando estudava no bravo colégio agrícola, de Jundiaí. Pompília
já se revelava inquieto, mobilizador e encantador de serpentes. Era amigo do
sábio e matemático Damião Pita, também estudante e professor das escolas de
primeiro e segundo graus da rede municipal. Na campanha popular para governador
em 1960, o velho Pompa ocupou a linha de frente do exército de Dejinha (Djalma
Marinho) e transformou-se no próprio tumulto tanto para os adversários como
para as suas próprias hostes.
Encontro-o aqui e
acolá sempre com pressa, passando com ruído, soltando frases soltas e
estribilhos guerreiros sobre lutas e batalhas iminentes. Jamais foi achado em silêncio. Ninguém
melhor que ele para bastante procurador de causas possíveis e impossíveis. Daí,
nomeava-o, com toda pompa e circunstância, o meu, o nosso advogado. Sem mandato
popular, sabia melhor que os outros, os caminhos das pedras, das residências
oficiais, porque era sombra e luz, voz e ouvido do clamor das ruas.
A sua marca
registrada sempre foi a fidelidade irrepreensível ao líder e ao ideal. Sobre
esse ângulo poderia registrar dezenas de atitudes do seu quilate. Continuou
sendo o homem de um partido só, sem esmorecer, sem tergiversar, sem recuar. Em
Natal, viveu sua fase de líder popular nas comunidades, defendendo-a na Câmara
Municipal e fora dela. Para ele não importava ter o mandato para socorrer o
povo e requerer a solução dos problemas. Ele sempre o fez porque se tornou
conhecido e festejado por todos como um homem simples, pobre, honesto e
prestativo.
Conviveu com
governadores, senadores, deputados, mas nunca amealhou vantagens pessoais, pois
somente lhe interessa servir. Carregava uma pasta cheia de papeis. Nela nada
tem de si e sobre si. Apenas, papeladas de pedidos dos outros, reivindicações
comunitárias, receitas, recibos inadimplentes de IPTU, água e luz. Foi o
carteiro do povo; o jornaleiro do líder que defende; o pastorador de auroras
das ruas e avenidas de Natal só para anunciar as alvíssaras, as boas novas do
partido e do próximo.
Sempre foi o estafeta
legítimo de pleitos, porta-voz dos esquecidos e condutor dos novos rumos e
prumos de Natal. Daí sempre confiei nele para pugnar, reivindicar, exigir,
porque possuía o senso comum das coisas simples e honestas.
Mas, o velho Pompeu
estava cansado. E chegou a hora dele. O momento de todos assumirem o mandato
que ele exerceu por nós: o exercício da solidariedade humana por Natal e pelos
seus habitantes. Ao prestar-lhe este tributo, eu o faço com emoção pelo muito
que ele fez e pelo tão pouco que recebeu. Soou a hora de reparar esse
esquecimento.
(*)
Escritor.
17/01/2020
O berço da democracia era escravocrata
Tomislav
R. Femenick – Autor do livro “Os
Escravos: da escravidão antiga à escravidão moderna” – Do IHGRN
A pátria da Democracia e o berço
da cultura ocidental, a Grécia era também uma terra de escravidão. Nela havia o
paradoxo da coexistência paralela da liberdade e da falta total de liberdade;
do homem racional e do homem mercadoria; do pensar e do executar; do cidadão
que “faz” o governo e do escravo; do indivíduo privado das características que
fazem o homem natural se transformar em um “ser” social pleno.
Alguns
documentos registram a presença de escravos já no período de formação da
civilização da Grécia Antiga. Neles há indícios de uma nítida separação de
classe, com a citação de homens livres, homens sem poder político, servos e
escravos, estes divididos em domésticos e de outras categorias. Os textos
empregam os termos “doero” e “doera”, para identificar homens e mulheres
escravizados. Estas palavras derivariam do termo “dos-e-lo”,
que tinha o sentido de “estrangeiros”, “inimigos” ou “servos”, de onde se
conclui que os escravos eram originalmente prisioneiros de guerra. Outros
textos evidenciam que, tanto o Estado como as pessoas de posse podiam ser
proprietários de escravos, pelo que se deduz que a escravidão era de caráter
patriarcal.
O período
seguinte da civilização grega foi quando o centro da vida foi transferido da
cidade (polis) para o campo (oikeus); voltado para um sistema de
produção-consumo, onde todos trabalhavam, o patriarca, seus dependentes e seus
escravos. O resultado foi catastrófico para o processo de elevação cultural,
pois as cidades foram reduzidas em tamanho e importância, algumas se
transformando em meras aldeias.
O novo modo
de vida alterou o sistema de propriedade dos meios de produção, inclusive dos
trabalhadores compulsórios. A terra, antes pertencente aos deuses, teve sua
posse assumida por pessoas. A sociedade retrocedeu a um estágio de economia
espontânea, com a exploração do trabalho escravo voltada para uma renda natural,
com uma economia monetária apenas complementar. A produção voltou-se para o
consumo familiar e para gerar apenas pequenos excedentes. Contraditoriamente,
nestas circunstâncias o trabalho escravo assumiu uma importância maior para a
produção de bens.
Por volta de
750 a.C., ocorreu uma outra transformação na sociedade grega. O crescimento da
população extravasou da propriedade rural e das aldeias. Os gregos migraram
para o litoral do mar Negro e para a Sicília, onde criaram colônias. Com a
importação de alimentos das colônias, as cidades puderam prescindir da produção
local, o que resultou na quase desarticulação da propriedade familiar rural e
no revigoramento das cidades-estados. A “polis”
voltou a ser o centro da vida na Grécia e a urbanização ensejou um novo
despontar cultural. A sociedade continuou dividida em classes, com uma grande
parcela de escravos em sua base social, e a escravidão, solidificada como
sistema, passou a contar com regulamentos e leis a ela voltados.
Embora fossem
poucos os proprietários com grande número de escravos, raras eram as atividades
em que os escravos não participavam como força produtora direta, tanto na
elaboração de bens como na prestação de serviços. Os escravos eram tecelões,
agricultores, pastores de animais, artesãos, domésticos, mineradores e
funcionários públicos, exercendo as funções de varredores de rua, construtores
de estradas, escrivães, carrascos e até de policiais. Muitas vezes
compartilhavam essas funções com trabalhadores livres. Era comum a acumulação de
tarefas, podendo um mesmo escravo ser servo doméstico e executar atividades
laborais na agricultura, por exemplo. Além de trabalhar para os seus senhores,
os cativos poderiam ser alugados a terceiros, ao Estado ou a particulares.
O período
seguinte, que compreende os séculos V e VI a.C., é conhecido como a era
clássica grega e foi o ápice da sua cultura nas artes, literatura, filosofia e
política. Atenas foi o palco democrático grego por excelência, porém dos seus
aproximadamente 500 mil habitantes, 300 mil (60%) não tinham direitos civis,
por serem escravos; 50 mil (10%), por serem estrangeiros; 40 mil (20%), por
serem mulheres e crianças.
Tribuna
do Norte. Natal, 17 jan. 2020.
13/01/2020
O novo provincialismo
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
O nosso Câmara Cascudo (1898-1986) sempre aceitou de bom grado o
“título” que lhe foi dado, carinhosamente, pelo amigo Afrânio Peixoto
(1876-1947) – “O provinciano incurável”.
Gabava-se dele. E até
escreveu uma crônica com esse título, publicada lá pelo final da década
1960: “Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade.
Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos
do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios.
Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado.
Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção
medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família
Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade
com a velha Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. Filho único
de chefe político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral.
Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos,
quando a terra é uma unidade com sua gente. Foram os motivos de minha
vida expostos em todos os livros. Em outubro de 1968 terei meio século
nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos santos tradicionais.
Nunca pensei em deixar minha terra. (…). Fiquei com essa missão. Andei e
li o possível no espaço e no tempo. Lembro conversas com os velhos que
sabiam iluminar a saudade. Não há um recanto sem evocar-me um episódio,
um acontecimento, o perfume duma velhice. Tudo tem uma história digna de
ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na
memória”.
Esse provincialismo, o de Cascudo, o de quem apenas
não quer deixar a sua terra por amor a ela, era de ouro. Primeiramente
porque, como disse o grande Tolstói (1828-1910), “se queres ser
universal, começa por pintar a tua aldeia”. Em segundo lugar, porque foi
duramente forjado, nas palavras do próprio Cascudo, em “Livros. Cursos.
Viagens. Sertão de pedra e Europa”. Cascudo estudou muito e conhecia a
“arte da viagem”.
Hoje, entretanto, vivemos um outro tipo de
provincialismo, terrível, que, por incrível que pareça, é fomentado pela
própria globalização, em especial a globalização digital.
Um
dos que apontam isso é o filósofo e professor alemão Peter Sloterdijk
(1947-). Autor da trilogia “Esferas” – composta por “Bolhas” (2011),
“Globos” (“2014) e “Espumas” (2016) –, Sloterdijk pretende aí contar a
história da humanidade. Uma de suas teses é a de que o homem necessita
viver em “espaços íntimos”, de proteção, que funcionariam como bolhas.
Primeiro é o útero materno. Depois as cavernas dos nossos ancestrais, a
família e até mesmo o país ou a nação. O problema é que a atual
globalização – que, de resto, para Sloterdijk, é apenas uma terceira
onda, já antecipada pela globalização da filosofia grega e da
globalização náutica dos séculos XV e XVI – diferentemente do
megacosmopolitismo da segunda onda (a náutica dos grandes ibéricos), tem
criado, a partir de suas muitas bolhas, um “provincialismo global”.
Hoje, não precisamos mais viajar, em livros ou pessoalmente, para nos
inteirarmos do mundo. Online, um “mundo” chega a nós. Mas é um mundo –
ou vários mundos – forjado(s) a partir de bolhas. De províncias, se
quisermos ser mais chiques. Que não se comunicam. Por gente cada vez
menos aberta. Cada vez menos investigativa. Cada vez mais
preconceituosa. Não temos mais o homem estudado, viajado ou cosmopolita
como sinônimo de cultura. Estamos, sim, vendo o “idiota da aldeia” –
aquele que ganhou voz com a Internet, como anotou Umberto Eco
(1932-2016) – ganhar a ribalta e espalhar as vulgaridades, deveras
“provincianas”, que aprendeu na sua bolha. E, desapercebidamente, nós
aceitamos isso.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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