02/01/2020




O pioneirismo econômico de Portugal
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Herdeiros de Deus: a aventura da navegação e os negócios da colonização” – Do IHGRN

Nos séculos XV e XVI, o feudalismo permanecia como modo de produção predominante na Europa, embora, no último desses séculos, tenha-se iniciado a crise que o desintegrou e resultou no surgimento do capitalismo. Nesse período, formas capitalistas de produção já coexistiam com o feudalismo, porém, sob a sua hegemonia.
A economia portuguesa viveu essa simbiose “feudal pré-capitalista” com algumas atividades amarrando-se às formas tradicionais e outras deslanchando em busca de maior espaço para o seu desenvolvimento. O comércio foi o segmento econômico que mais dinâmica apresentou e o que mais influiu na determinação histórica da nação lusitana; foi a principal forma de acumulação do capital. “O comércio externo de Portugal é mais antigo do que o de qualquer outro país da Europa, à exceção da Itália” (Adam Smith,1981/3). Nos séculos XIII e XIV, o comércio atlântico já era ativo nos portos portugueses. As exportações atingiam o norte da África, a França e a Inglaterra. A primeira feira estrangeira em Burges (Bruxelas) foi organizada por comerciantes portugueses.
No final do século XV, pelos portos portugueses eram exportados produtos locais, e reexportados produtos vindos de longa distância: trigo de Marrocos, das Ilhas Atlânticas e da Europa Setentrional; produtos têxteis da Inglaterra, Irlanda, França e Flandres; latão e contas de vidro da Alemanha, Flandres e Itália; ostras das Ilhas Canárias; especiarias, ouro e escravos africanos. Com os descobrimentos, Portugal era a única nação europeia que mantinha comércio regular com as Índias Orientais, além de manterem estabelecimentos no Congo, Angola e Benguela, na costa da África, e em Goa. Paralelamente, mantinha uma importante colônia em Antuérpia, onde cerca de sessenta famílias representavam os interesses lusitanos. O desenvolvimento do comércio se refletiu também no seguro e na navegação. Em 1383, Dom Fernando I, rei de Portugal, criou o seguro marítimo.
A navegação é um capítulo à parte. Entre o meio e o fim do século XVI, a frota comercial portuguesa representava uma capacidade de carga em torno de 50 a 100 mil toneladas métricas. O porto de Lisboa registrava cerca de quatrocentas ou quinhentas embarcações fundeadas – o que seria um exagero do cronista da época. No século seguinte, os navegadores portugueses descobriram a Ilha da Madeira, as Canárias, os Açores, as Ilhas de Cabo Verde, a Costa da Guiné, a de Loango, o Congo, Angola e Henguela (Namíbia). Contornaram o Cabo da Boa Esperança e atingiram à Costa do Indostão (subcontinente indiano). Certo é que essa empresa contou com ativa participação do governo. No entanto, essa foi uma empreitada muito mais da burguesia do que da nobreza. A própria intenção dos descobrimentos era comercial.
No campo, a “Lei das Sesmarias”, publicada em 1375, quebrou o poder da nobreza rural, ao impor a reordenação das terras improdutivas dos senhores feudais, sem que esses recebessem nenhuma paga por elas. Diversos produtos agrícolas eram cultivados em Portugal, com destaque para a parreira e a oliveira. A indústria extrativa de sal marinho remonta a épocas anteriores à própria constituição do Estado português, datando dos séculos X e XI.
Por sua vez, a produção têxtil sempre foi rudimentar, familiar e rural. A cultura do linho, do cânhamo e do bicho-da-seda, bem como a pecuária de ovinos, de onde se extraia a lã, tiveram importância relativa e somente orbitavam em torno da economia feudal, raramente constituindo uma presença de modo mais avançado de produção, por pouco que fosse. Quantitativa ou qualificativamente essas atividades não representavam qualquer avanço na economia do Portugal medievo.
A análise da economia lusitana nos séculos XV e XVI, principalmente das atividades ligadas ao comércio e à navegação – setores em que os portugueses estiveram à frente da economia europeia, comprovados na expansão e descobrimentos marítimos – evidencia um sistema com um significativo poder de acumulação pré-capitalista.

Tribuna do Norte. Natal, 01 jan. 2020.


31/12/2019




Plano infalível
É muito comum, nesta época de virada de ano, planejarmos o futuro. E somos quase todos como aquele cara de “A vida é dura”, na voz do nosso Benito di Paula (1941-), que “inventa sempre um plano infalível o tempo inteiro/Só pensa em rios de dinheiro/Mas, quando chega a hora de fazer o que ele quer [leia-se o final do ano seguinte]/É com a mesada da mulher”. Eu mesmo já tenho meus planos para 2020: lançar um livro, terminar outro, montar um blog e, disparadamente o mais importante, sair de um bocado de grupos de WhatsApp.
Não resta dúvida de que planejar nossas vidas é bom, sobretudo quando isso vai além da mera definição de metas – como nos casos jocosos acima, o da música e o meu –, mensurando-se também a realidade, estabelecendo-se um plano de ação, acompanhando-se os resultados etc.
Mas será que temos um real controle sobre nossas vidas e o nosso futuro? Será que esse “planejamento” funciona mesmo? E sempre? É claro que planejar ajuda, mas hoje estou cada vez mais certo de que o acaso, para o bem ou para o mal, tem um papel crucial nas nossas vidas.
Outro dia – aliás, por mero acaso – dei de cara com dois pensadores e suas respectivas teorias, que, transpostas e reinterpretadas do plano para o qual foram desenhadas para o nosso cotidiano, explicam bem o que quero dizer.
Um deles é Nassim Nicholas Taleb (1960-), libanês, mais economista que filósofo, com a sua “A lógica do cisne negro” (2007). Para Taleb, por mais que pensemos o mundo como um lugar ordenado, a frequência com que eventos inesperados se dão nos mostra que não sabemos a verdadeira causa das coisas. Inspirado em David Hume (1711-1776) e no problema da indução, Taleb define o “cisne negro” como um evento insuspeitado, que se dá contra todas as expectativas, e que tem um enorme impacto na história e na vida das pessoas. Segundo ele, a história da humanidade foi forjada por grandes eventos inesperados.
O outro é o esloveno Slavoj Zizek (1949-). Nascido na pequena Liubliana, à época pertencente à Iugoslávia comunista, Zizek publicou um livro denominado “Acontecimento” (2017), no qual ele indaga se somos mesmo senhores do nosso destino, sobretudo num mundo tão dinâmico como o atual. Ele entende que não, tendo no “acontecimento” – esse termo/conceito novo, que significa uma ruptura social radical, uma crença religiosa, uma experiência emocional e por aí vai, que abala a vida comum, fazendo com que nada permaneça igual, mesmo que não nos apercebamos disso – a explicação para tanto.
Dou dois exemplos de “acontecimentos” recentes para ilustrar o que exponho. Um deles é a morte inusitada do apresentador Gugu Liberato (1959-2019). Tudo ia muito bem com ele e a família. Fama e dinheiro. Um dia qualquer, a queda. E tudo muda para aquela família. O outro é a final da Copa Libertadores entre Flamengo e River Plate. Jogo ganho para os argentinos. Como planejado. No fim, três minutos e dois gols mudaram a história dos clubes e de seus jogadores. Dos vencedores, com certeza, para melhor; já a dos perdedores, não podemos dizer o mesmo.
Bom, de minha parte, quanto aos meus planos para 2020, sei que as coisas podem dar errado. Pode aparecer um “cisne negro”. E não tenho como vencer o “acontecimento”. Só não posso falhar com a saída dos grupos de WhatsApp. Aqui, para a minha própria saúde mental, o plano há de ser infalível.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

26/12/2019



O capitalismo ‘made in USA’ e o nosso
Tomislav R. Femenick – Mestre em economia, com extensão em sociologia e história – Do IHGRN

O filósofo francês Michel Aglietta (1988) diz que os Estados Unidos nasceram com um aparato ideológico nas relações socioeconômicas: a liberdade de produzir sem entraves criados pelo Estado e instituições que são reguladas por princípios que formalizam as relações econômicas. Além do que, o ordenamento legal expressa a liberdade e igualdade do indivíduo, enquanto agente econômico.
Essa talvez seja a grande diferença da história das duas nações: enquanto os Estados Unidos, embora escravistas, nasceram sob a égide do capitalismo e da república, o Brasil se tornou independente sob um regime monarquista e com uma economia eminentemente escravocrata. Com a abolição da escravidão e a proclamação da República, houve o início de uma nova matriz econômica, porém sem atingir a profundidade necessária à transformação das estruturas, que somente caminhou para a realidade capitalista após a revolução de 1930, quando o governo federal direcionou as atividades econômicas para a industrialização.
Assim tínhamos o Estado brasileiro atuando em duas dimensões distintas, que em alguns pontos sofrem intersecção ou confronto. No plano coletivo (político), o Estado exercia o “poder” pela instrumentação de “controles”, objetivando a sua “perpetuidade”. No plano individual, das relações de troca, o que se buscava eram vantagens (o excedente econômico), pela sempre maior “eficiência”, em relações tipicamente dissolvíveis. Aqui cessa o paralelismo ideológico entre a economia brasileira e a economia norte-americana, pois lá o Estado não interfere tão intensamente nas relações de produções e não tem atuação como agente-produtor.
Focando a atenção na agricultura e na indústria dos dois países, evidenciam-se as contradições mais acentuadas entre eles. Nos Estados Unidos os produtores agrícolas, mesmo os que faziam a economia da fronteira, nunca fizeram agricultura de subsistência, sempre produziam para o mercado. Aqui também sempre se produziu para o mercado. Cana-de-açúcar, fumo, mate, algodão, café, por exemplo, sempre se destinaram para o mercado; o mesmo acontece com a soja, laranja, melão etc. Entretanto, ainda hoje, uma parte considerável de nossas unidades agrícolas se voltam para a agricultura de subsistência.
A industrialização dos EEUU está entrelaçada à própria história daquele país. Lá a grande indústria, com produção em larga escala, foi o resultado natural – como causa e efeito – do crescimento da nação. Por aqui, o processo industrial se deu só a partir da primeira metade do século passado e se acelerou na década de 50, pelos empreendimentos do então presidente Juscelino Kubitscheck. Entretanto, entre 1961 e 1967, o Brasil entrou em crise social e refreou o crescimento econômico que vinha do período anterior. Findo esse interregno, segundo Celso Furtado (1983), a indústria brasileira voltou a crescer, como resultado “de uma política governamental muito bem-sucedida, que visa atrair as grandes empresas transnacionais...”.
Os três aspectos aqui abordados – o ordenamento legal, a agricultura e a indústria – não esgotam o paralelismo comparativo da industrialização dos Estados Unidos e do Brasil. Poder-se-á estender este estudo com a incorporação de novos elementos e fazer correlações sobre o desenvolvimento dos meios de comunicação viária (lá as estradas de ferro em direção ao oeste, aqui as ferrovias do café; lá e cá as rodovias dos anos 50 e 60) etc. Entretanto os principais campos de investigação para a ampliação deste cenário comparativo talvez sejam as políticas educacionais dos dois países, bem como a formação e a atuação dos políticos e dos partidos políticos.
No mais, tem-se que pôr em relevo a diferença do caráter da atividade empresarial dos capitalistas norte-americanos e brasileiros. Lá eles enfrentam o mercado sem dificuldades criadas pelo Estado e sem sua ajuda; aqui eles têm que enfrentar as dificuldades criadas pelo aparato estatal e, no mais das vezes, somente têm condição de obter êxito se contarem com incentivos do próprio governo. Lá os empresários exitosos são quase que heróis nacionais; aqui alguns formadores de opinião os veem quase que como marginais.

Tribuna do Norte. Natal, 25 dez. 2019



Manoel de Barros – o poeta onírico


Escutando as coisas boas que ainda circulam nas redes de divulgação nacional, atento, me deparo com os comentários de filósofo, educador, palestrante, escritor e pensador Mário Sérgio Cortella (1954) sobre o poeta Manoel de Barros.
Afinal, quem foi e o que representou o poeta cuiabano  para a poesia brasileira no século XX?
                      
Manoel Wenceslau Leite de Barros (Manoel de Barros – 1916-2014) nasceu em Cuiabá/MT, no ano de 1916. Em 1937, debutou na poesia com o livro intitulado “Poemas Concebidos sem Pecados”. Em 1996, publicou a sua mais conhecida obra, o Livro sobre Nada. Em 1986, o poeta Carlos Drummont de Andrade o reconheceu como o maior poeta brasileiro vivo.
O filólogo Antonio Houaiss, assim se expressou sobre a poesia de Barros: “A poesia de Manoel Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões oníricas num primeiro instante logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”.
Somente em 1980 seu trabalho foi valorizado nacionalmente, graças à divulgação e ao reconhecimento de suas obras pelo desenhista, humorista, dramaturgo, poeta, escritor e jornalista Millôr Fernandes, quando o poeta  passou a receber vários prêmios literários, como o Jabuti, em 1987, com “O Guardador de Águas”; seus livros passaram a ser    publicados e valorizados em outros países, como Portugal, Espanha e França.
       O poeta faleceu aos 97 anos, na cidade de Campo Grande/MS.
Transcrevo para o deleite dos leitores alguns pensamentos criativos das suas geniais poesias que navegam entre o sonho e a racionalidade.

·       Tudo que não invento é falso.

·        Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

·       Tem mais presença em mim o que me falta.

·       Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.

·       O meu amanhecer vai ser de noite.

·       Meu avesso é mais visível do que um poste.

·       Sábio é o que advinha.

·       Não saio de dentro de mim nem pra pescar.

·       Aonde eu não estou as palavras me acham.

·        Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

·        Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.

·       O artista é erro da natureza.

·       Beethoven foi um erro perfeito.

·       Por pudor sou impuro.

·       A minha diferença é sempre menos.

·       Não preciso do fim para chegar.

·       Do lugar onde estou já fui embora.

·       Uso a palavra para compor meus silêncios.

·       Tenho em mim um atrazo de nascença.

·       Meu quintal é maior do que o mundo.

·       Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.

·       Tenho “desapetite” para inventar coisas prestáveis.

·       Sobre o nada eu tenho profundidades.

·       A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.

·       Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo das coisas).

·       Não posso mais saber quando amanheço ontem.

·       Meu órgão de morrer me predomina.

·       A minha independência tem algemas.




ELE CHEGOU.

NASCEU O SALVADOR DA HUMANIDADE
Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes*

        Num ambiente de extrema simplicidade, tendo em vista que as portas não se abriram para abrigar a Sagrada Família, numa manjedoura, veio ao mundo aquele que seria a redenção da humanidade, cercado por pessoas humildes e animais. Seu nascimento é renovado a cada ano como forma de reviver aquele momento sublime e permitir a reflexão dos habitantes da terra.
        Ao reverso disso, as cidades se enfeitam com luzes e enfeites, cercadas de festas custosas para comemorar a vinda de Papai Noel, com os seus presentes, numa atitude inteiração paradoxal, com exposições de presépios apenas como ostentação de beleza.
        Nada disso, porém, tira o brilho dos cristãos verdadeiros que comemoram o renascimento do Cristo Jesus com reverência e reflexão sobre os problemas da vida e do mundo, ainda em conflito, com fome, necessidades básicas, sem terra ou lar condigno para as pessoas, fazendo mutirões para a prática da caridade, doando alimentos e brinquedos para as crianças, com o mesmo espírito de humildade do nascimento originário do Menino Deus.
        Este comentário não tem a finalidade de criticar as festas, mas sugerir que o principal motivador de tudo seja JESUS e não ídolos importados, que poderão conviver o momento, mas como coadjuvante, pois as crianças o adoram e o aguardam. É uma questão de tempo e de educação.
        Particularmente, nossa família fez a sua festinha, exatamente numa manjedoura improvisada no Recanto de THEREZA, erguido no meio do seu jardim, dando ênfase ao nascimento do Redentor, com preces e leituras apropriadas, honrando exatamente o costume familiar, que tinha em THEREZINHA ROSSO GOMES a responsável por tudo.
        Sem falsidade – para mim foi um dia de saudade, para a família também, superada com a invocação do DEUS MENINO pedindo sua intervenção para o conforto da alma da nossa pranteada e ao mesmo tempo nos confraternizando com simplicidade e verdade.
        O tempo, agora, não é o mesmo, porque a lembrança e a saudade dela estão vivos em todos nós. Mas a vontade de servir supera as agruras e continuamos com a missão de praticar a fraternidade, a solidariedade e a caridade.
FELIZ NATAL E UM ANO NOVO RENOVADO PARA O AMOR E A PRÁTICA DO BEM.
*escritor

24/12/2019



O que fazer?
Duas circunstâncias me levaram a este artigo. O Natal e um livro com o qual topei dia desses. No período natalino, é comum fazermos doações – ou aumentarmos, se é o caso da pessoa já doar durante o ano – a quem mais precisa. Algo muito positivo, por sinal. E o livro a que me refiro é “A máfia dos mendigos: como a caridade aumenta a miséria”, de um tal Yago Martins. O autor é pastor batista e teria fingido “ser morador de rua” para explicar “por que nossas tentativas de vencer a pobreza continuam fracassando”. O livro tem até algumas sacadas interessantes. Mas, percorrendo suas páginas, topa-se com uma visão política predefinida e preconceitos de toda sorte. Cita, para não dizer mimetiza, mas num contexto completamente diverso, Theodore Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels, 1949-) e a sua “A Vida na Sarjeta – O círculo vicioso da miséria moral” (“Life at the Bottom: The Worldview that Makes the Underclass”, 2001). É um livro tendencioso. “Biased”, diriam os ingleses. Disso não gostei mesmo.
De toda sorte, lembrei-me de que o assunto – esse das doações a pessoas na rua – é mesmo polêmico. E, assim, lembrei de um filósofo de que gosto bastante e até já citei aqui: Peter Singer (1946-), australiano, autor de “Liberação animal” (“Animal Liberation”, 1975) e de “Ética prática” (“Practical Ethics”, 1979) e considerado o fundador daquilo que hoje chamamos de “direitos dos animais”. Mas Singer não é apenas um defensor dos animais. Ele também estuda a pobreza e o sofrimento no mundo. Quer combatê-los. Por isso, somando-se o fato de também defender o aborto e a eutanásia, ele é considerado um “homem perigoso”.
Para combater a pobreza, Peter Singer é a favor das doações. Mas o é de uma forma bem peculiar. Na década passada, Singer publicou “Quanto Custa Salvar Uma Vida? – Agindo agora para eliminar a pobreza mundial” (“The Life You Can Save – Acting Now to End World Poverty”, 2009), um livro que trata exatamente da polêmica questão das doações como forma de combater a pobreza e o sofrimento no mundo. Embora estejamos diante de uma discussão que perdura há bastante tempo, Singer toma uma posição claramente a favor das doações. Entretanto, ele propõe que isso se dê de forma mais ampla, organizada e regulamentada, através de organizações e organismos humanitários encarregados para tanto. Para ele, bem menos importante – na verdade, menos eficaz – é tirarmos nossos sapatos e darmos na rua a alguém que deles precise do que doarmos o valor desses sapatos, de modo sistemático e organizado, através de agências especializadas, para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade, estejam essas pessoas perto de nós ou mesmo mundo afora. E aqui já enxergamos o caráter utilitarista da filosofia de Singer.
E Peter Singer também parece concordar com o argumento de que dar dinheiro ou comida diretamente, sobretudo nas ruas, gera dependência. Esse tipo de doação deveria se dar apenas em casos de catástrofes, como incêndios, grandes secas, inundações etc. É mil vezes melhor fomentar a produção de alimentos e demais fontes de riqueza pelas próprias pessoas ou pela comunidade, seja essa comunidade a nossa ou mesmo outra a milhares de quilômetros de distância. “Melhor do que dar o peixe, é ensinar a pescar”, já dizia o velho ditado. Mas isso, sabemos, não é tão fácil assim.
O problema é que temos, todos nós, uma tendência de olharmos sempre para o que nos está mais próximo. Nossa família, nossos amigos, nossa comunidade, o momento. “A caridade começa em casa”, é verdade. Ademais, a presença de uma criança faminta na esquina de nossas casas – ou de um animal, para quem é amante da natureza – nos é muito mais tocante do que as estatísticas sobre a pobreza e a fome no mundo, sobretudo se isso diz respeito a comunidades distantes da nossa. Isso sem falar que doações a agências humanitárias podem nos parecer como gotas no oceano, que podem até se perder na burocracia e na roubalheira de estilo, sobretudo se comparadas àquela doação que mata uma fome aqui e agora.
Na verdade, Peter Singer defende um “altruísmo eficaz”, incentivando pessoas a trabalhar com formas mais eficientes de ajudar quem precisa. Ele sabe que doar faz bem também para quem doa. Fazer o bem, já pregava o Buda (Sidarta Gautama, 563a.C.-483a.C.), enche nossos corações de alegria (pelo menos os corações das pessoas normais). Mas Singer aponta evidências concretas de um melhor aproveitamento dos recursos com ações sistemáticas e racionais, defendendo que os resultados – muitíssimo melhores a longo prazo e para um número bem maior pessoas – são mais importantes que a recompensa moral momentânea.
E se a pergunta do título deste artigo é “o que fazer?”, Peter Singer parece simplesmente responder que nossas doações devem se basear menos na emoção e mais na razão. Eu acho a sacada de Singer excelente (muito embora não consiga ficar insensível ao sofrimento próximo a mim, desde já confesso). Só espero que, concordando com ele, pregando a doação para ONGs e agências humanitárias, eu também não seja considerado, nestes tempos bárbaros em que vivemos, um sujeito deveras perigoso.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP