14/10/2019


A cana de Graça (II)

Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio Editora, 1946), disse: “copiando a vida, em todos os seus aspectos, e em todos os seus meandros, por mais recônditos, os romancistas e novelistas não podiam esquecer os cárceres onde os que transgridem as leis penais são recolhidos para cumprimento de suas penas”.
Graciliano Ramos (1892-1953) não transgrediu lei penal alguma, pelo menos não para os fins da prisão, injusta e política, que lhe foi infligida, em 1936, pelo Governo de Getúlio Vargas (1882-1954). Embora um dos maiores escritores do país – lembremos que ele já havia publicado “Caetés” (1933) e “São Bernardo” (1934) –, Graciliano foi simplesmente jogado entre criminosos comuns, entre assassinos, ladrões e estupradores, sem motivo e sem culpa, jamais ouvido ou formalmente acusado, até porque não haveria crime que lhe fosse possível, honestamente, atribuir. Teve a cabeça raspada, como qualquer gatuno, e foi submetido às demais humilhações por que passavam os condenados de então (a coisa parece não haver mudado muito de lá para cá). Tudo feito propositalmente. E se algo de positivo pode ser retirado dessa barbaridade com o “Velho Graça”, a única coisa possível, foram as suas “Memórias do Cárcere”, publicadas, já postumamente, em 1953.
O livro – refiro-me às “Memórias do Cárcere” –, portanto, é um “depoimento”. Conta a história de uma prisão arbitrária, as aventuras e os dramas do prisioneiro e de seus companheiros, pelos presídios do país e, sobretudo, descreve um período da nossa história. E ninguém poderia prestar esse depoimento tão bem quanto aquele que foi ao mesmo tempo acusado, testemunha e, sobretudo, vítima dessa tremenda arbitrariedade jurídico-política. Muito embora tenha Graciliano escrito – e, sobretudo, publicado – as suas “Memórias” anos após o acontecido, quando até já declinava fisicamente (ele faleceu em 1953, ano da publicação do livro), vítima das sobrecargas do tempo e da doença (um câncer), das dores e das amarguras da vida.
O livro também é um “libelo”. E, dada a injustiça praticada, não poderia deixar de sê-lo, como bem lembra Nélson Werneck Sodré (1911-1999), em prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (publicação da Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes). Um “J'accuse” à brasileira e em causa própria. De toda sorte, nesse sentido, ganhamos “com a objetividade, com a clareza, com a minúcia e com a exatidão, – porque, sendo uma acusação, não pretendeu jamais ser neutro ou dar, indiscriminadamente, relevo a alguma coisa que não o merecesse”.
Ademais – e é o mesmo Nélson Werneck Sodré que anota isso –, “só o mestre de Angústia [romance publicado por Graciliano em 1936, quando achava-se preso pelo Governo Vargas] poderia realizar a tarefa com a grandeza necessária”. E, aqui, aproveito a deixa para fazer a relação entre Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Graciliano Ramos, como, de resto, fiz no artigo anterior, sobre Oscar Wilde (1854-1900).
Na estória do triângulo amoroso entre o ressentido Luís da Silva, o rico Julião Tavares e a disputada Marina, de viés existencialista, trabalhado por meio de um “fluxo de consciência” joyciano, há mesmo algo, talvez muito, de Dostoiévski e de “Crime e Castigo” (1866). Em especial, as angústias, os arrependimentos e o medo (de ser pego), sentimentos que o crime praticado desperta no seu autor (no caso, o Luís da Silva), que estão presentes no dois romances. Com a diferença de que, em “Crime e Castigo”, o delito é o ponto de partida para a trama; no livro de Graciliano, o crime é o seu quase “finale”, numa mistura dúbia de realização pessoal com angústia que dá título à obra. Graciliano leu “Crime e Castigo”, isso é certo. Era um apreciador da literatura russa e de Dostoiévski em particular. Mas, em vida, relutou em aceitar as comparações entre a sua “Angústia” e “Crime e Castigo”. Não achava seu livro à altura da obra-prima russa. Parte modéstia, parte honesta autocrítica.
E o mais importante: quem lê ou ouve falar de “Memórias do Cárcere” certamente se lembrará de Dostoiévski e de suas “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, de 1862. Aqui, sem dúvida, no gênero dos “romances prisionais” (se é que esse gênero existe), Graciliano Ramos foi o nosso Dostoiévski. E, como anota Nélson Werneck Sodré, ele “realizou a tarefa como desejávamos todos: sua história aparece como um dos grandes livros brasileiros, talvez o maior. Não se surpreendam, – amanhã, quando a vida de hoje estiver esquecida, esta obra nos representará. Será, para os brasileiros que vierem depois de nós, muito mais do que Os Sertões, muito mais do que o melhor Machado de Assis [talvez tenhamos um certo exagero aqui, vá lá]. E foi por isso que escrevemos que Graciliano honrou o seu tempo”.
Bom, dito isso, só nos resta agora ler ou reler as “Memórias do Cárcere”. Mesmo que com toda a angústia do mundo.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

11/10/2019



REVISITANDO UM MITO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A simplicidade de Oscar Niemeyer era contagiante. Fez-me pegar a caneta como eu gosto e me habituei e passar a escrever ao sabor da emoção. Ateu, mas tão socialista na oferta como Francisco de Assis. Agnóstico, mas tão sábio quanto Agostinho. Reconhecido mundialmente no traço e no poder do concreto quanto Paulo nas planetárias epistolas: lógico e conciso. Tão comunista quanto cristão na concepção arquitetônica de igrejas e capelas pelo Brasil afora. Humilde, acessível e carismático tanto quanto João Paulo II na arte de conquistar o povo de Deus pelo olhar de plenitude e fragilidade. Niemeyer foi maior que qualquer rei do rock, do rap, dos ricaços de qualquer conglomerado empresarial neste país. Isso tudo porque foi um simples, que viveu, amou, se divertiu e se deu a respeito. Nunca ninguém leu o seu nome envolvido em falcatruas em meio a tantas criações e obras em governos mil.
Limpo e feliz, criativo e dedicado, suavizou o concreto e até a morte, nunca dela falando, mesmo a vida se esvaindo. Inspirou-se no mestre Le Corbusier. Brasília, de parceria com Lúcio Costa, ele foi o cara e o coroa quando expirou aos 104 anos. Postava- se tímido, fumante (vejam só), gostava do romance, mas na arquitetura era instintivo. Falava em Deus, mas não acreditava em religião. Já li esse fato em entrevista que concedeu. Claro que foi maior que sua arte. Falava em céu, firmamento, estrelas, tudo criado pelo Supremo Arquiteto do Universo, enquanto ele era “o maior arquiteto do Brasil e um dos melhores do mundo”. Neste último conceito o seu estilo foi inimitável, único e incomparável.
Oscar Niemeyer possuía o dom de viver, daí a longevidade: sem ostensividade, vaidade ou vã glória. Laureado em todo o mundo, mas avesso às homenagens. Quando se sentiu ameaçado no regime militar autoexilou-se em Paris. Não conspirou, não ameaçou nem foi terrorista. Apenas, confiava no comunismo como na sua arquitetura. Ficará conhecido e perenizado pela arte e não pela crença política. Mesmo assim, dava-se a respeito, mais do que muitos que a professaram. Sua morte foi lamentada em todo mundo. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Israel, Espanha entre outros países, ele deixou um legado de obras cativantes, admiradas pela tipicidade e a “curva livre e sensual das suas linhas”.
Mas, a chama inapagável de Niemeyer não se notabilizou tão somente no milagre que esculpiu com a linha reta embelezando as curvas de tantas edificações. Embora centenas, todavia, dezenas de suas criações ao vivo ou a cores pela TV e fotos eu já admirava. Fui, exatamente, me emocionar com a simplicidade cósmica desse personagem. Famoso, rico honestamente – frise-se – no entanto, pacífico, modesto, recatado, ciente de sua transitoriedade. Enfim, um cristão sem reza, oração, igreja ou templo. Um pintor de arcos voltaicos, de auroras boreais, de crepúsculos planaltinos, de galáxias estelares, com um pincel singelo, a pobreza de um proletário, revolucionário, vidente, vermelho mas suave no canto e na voz. Uma personalidade marcante para não ser esquecida que tinha no crayon o sentimento do mundo, apesar da “vida ser um sopro”, como dizia.

(*) Escritor

REVISITANDO UM MITO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A simplicidade de Oscar Niemeyer era contagiante. Fez-me pegar a caneta como eu gosto e me habituei e passar a escrever ao sabor da emoção. Ateu, mas tão socialista na oferta como Francisco de Assis. Agnóstico, mas tão sábio quanto Agostinho. Reconhecido mundialmente no traço e no poder do concreto quanto Paulo nas planetárias epistolas: lógico e conciso. Tão comunista quanto cristão na concepção arquitetônica de igrejas e capelas pelo Brasil afora. Humilde, acessível e carismático tanto quanto João Paulo II na arte de conquistar o povo de Deus pelo olhar de plenitude e fragilidade. Niemeyer foi maior que qualquer rei do rock, do rap, dos ricaços de qualquer conglomerado empresarial neste país. Isso tudo porque foi um simples, que viveu, amou, se divertiu e se deu a respeito. Nunca ninguém leu o seu nome envolvido em falcatruas em meio a tantas criações e obras em governos mil.
Limpo e feliz, criativo e dedicado, suavizou o concreto e até a morte, nunca dela falando, mesmo a vida se esvaindo. Inspirou-se no mestre Le Corbusier. Brasília, de parceria com Lúcio Costa, ele foi o cara e o coroa quando expirou aos 104 anos. Postava- se tímido, fumante (vejam só), gostava do romance, mas na arquitetura era instintivo. Falava em Deus, mas não acreditava em religião. Já li esse fato em entrevista que concedeu. Claro que foi maior que sua arte. Falava em céu, firmamento, estrelas, tudo criado pelo Supremo Arquiteto do Universo, enquanto ele era “o maior arquiteto do Brasil e um dos melhores do mundo”. Neste último conceito o seu estilo foi inimitável, único e incomparável.
Oscar Niemeyer possuía o dom de viver, daí a longevidade: sem ostensividade, vaidade ou vã glória. Laureado em todo o mundo, mas avesso às homenagens. Quando se sentiu ameaçado no regime militar autoexilou-se em Paris. Não conspirou, não ameaçou nem foi terrorista. Apenas, confiava no comunismo como na sua arquitetura. Ficará conhecido e perenizado pela arte e não pela crença política. Mesmo assim, dava-se a respeito, mais do que muitos que a professaram. Sua morte foi lamentada em todo mundo. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Israel, Espanha entre outros países, ele deixou um legado de obras cativantes, admiradas pela tipicidade e a “curva livre e sensual das suas linhas”.
Mas, a chama inapagável de Niemeyer não se notabilizou tão somente no milagre que esculpiu com a linha reta embelezando as curvas de tantas edificações. Embora centenas, todavia, dezenas de suas criações ao vivo ou a cores pela TV e fotos eu já admirava. Fui, exatamente, me emocionar com a simplicidade cósmica desse personagem. Famoso, rico honestamente – frise-se – no entanto, pacífico, modesto, recatado, ciente de sua transitoriedade. Enfim, um cristão sem reza, oração, igreja ou templo. Um pintor de arcos voltaicos, de auroras boreais, de crepúsculos planaltinos, de galáxias estelares, com um pincel singelo, a pobreza de um proletário, revolucionário, vidente, vermelho mas suave no canto e na voz. Uma personalidade marcante para não ser esquecida que tinha no crayon o sentimento do mundo, apesar da “vida ser um sopro”, como dizia.

(*) Escritor

08/10/2019


A cana de Graça (I)

O título parece engraçado. E foi proposital, apenas para tentar suavizar uma página trágica da nossa história política e literária, que, na esteira dos artigos das semanas anteriores (“Dostoiévski e o seu cárcere” e “Wilde no cárcere”), conto agora: a prisão de Graciliano Ramos (1892-1953).
Graciliano nasceu na pequenina Quebrangulo, no estado de Alagoas, em 1892. O pai era comerciante, classe média nordestina, e Graciliano era o primeiro de mais de uma dezena de irmãos. Jovem, perambulou pelo Nordeste. Foi parar no Rio de Janeiro, onde ingressou no jornalismo. Voltou às Alagoas. Em 1927, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios. Dizem que não foi um bom administrador. Renunciou em 1930. Foi morar em Maceió, capital do estado. Foi preso – injustamente, registre-se logo – em 1936. Um ano de cárcere. Depois do padecimento da prisão, nunca mais voltou à sua terra natal. Além de jornalismo e política (até como militante comunista), fez muita literatura. Crônicas, contos, memórias e romances. De fato, ele foi um dos mais importantes contadores de estórias dessa terra boa, mas sofrida, que chamamos de Nordeste, ao lado de gente como José Américo de Almeida (1887-1980), José Lins do Rego (1901-1957), Raquel de Queiroz (1910-2003) e Jorge Amado (1912-2001). “Caetés” (1933), “São Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas Secas” (1938), esta talvez sua mais badalada obra, estão aí para comprovar. Graciliano faleceu no Rio de Janeiro, com 60 anos de idade. O ano era 1953.
Como já dito acima, Graciliano Ramos foi “em cana” em 1935. Uma prisão gratuita e, claro, injusta. As tais “atividades extremistas”, alegadas como motivos para a sua prisão, pelo governo de Getúlio Vargas (1882-1954), nunca existiram. Como relata Dênis de Moraes, na excelente biografia “Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos” (originalmente de 1992, editora José Olympio), à época, sequer comunista Graciliano era. E ele até criticou o levante de então, a tal Intentona Comunista de 1935. Na verdade, ele foi preso sem processo, sem uma culpa formada e sem sequer ser previamente ouvido.
Nem mesmo foi Graciliano vítima de um erro, com queriam fazer acreditar alguns, para minimizar a culpa de outros ou as suas próprias. Como diz Nélson Werneck Sodré, em prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (uma publicação da Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes), “é falso o que sustentam alguns, que Graciliano Ramos foi submetido a tudo isso em virtude de um tremendo, de um profundo, de um lamentável equívoco. Nada disso. Era a ele mesmo que se pretendia ferir. Desde o primeiro ato do drama que foi forçado a viver, tudo foi cuidadosamente pensado, premeditado, claro e absolutamente intencional: a prisão arbitrária, a promiscuidade com os ladrões e assassinos, a viagem no porão, a ida para a Colônia Correicional, a ausência de processo”.
Coincidentemente, por estes dias, numa surrada revista que guardei – não sei o porquê, e certamente não foi para escrever este artigo 27 anos depois –, achei uma excelente definição do acontecido. “A carta: política & informação”, semanário que se dizia “a revista do Nordeste”. Certamente não mais circula. Mas na edição que tenho, de 24 de outubro de 1992, ano VII, nº 299, que comemorava o centenário do nascimento de Graciliano, lê-se: “Foi uma prisão gratuita, apenas com o sentido de perseguir um homem de ideias liberais que pregava contra os desmandos do governo de então. Suas ‘atividades extremistas’ não passavam de uma posição contrária ao governo de Vargas, que na sua opinião não se coadunava com as necessidades do povo brasileiro nem tomava o caminho de uma política condizente com o Brasil de então. Foi preso quando exercia o cargo de diretor da Instrução Pública e não se tinha nenhum conhecimento de atividades subversivas de sua parte. Mesmo assim, (…), foi encarcerado junto a marginais que se misturavam com políticos, literatos e homens públicos, presos apenas pelo crime de não rezarem pela cartilha do governo”.
Graciliano foi, sim, vítima de perseguição política e de ignomínia do poder de então. Foi quase um ano de infortúnio, de abandono e de angústia, largado em masmorras como se uma fera fosse. Mas ele não perdeu a sensibilidade, mesmo em meio àquela gente bruta, mil vezes mais bruta que a gente do sertão de “Vidas Secas”. Assim como a cachorra Baleia, desse que é o mais famoso dos romances de Graciliano, mesmo ao ser “sacrificado”, por suspeita de subversão, Graciliano ainda enxergava o “céu dos cachorros, cheio de preás”.
E foi ainda “em cana” que o grande alagoano imaginou as suas “Memórias do Cárcere”, para narrar as aventuras e os dramas, as suas e as de seus companheiros, pelos presídios do Brasil afora. E haveria Graciliano, como ninguém mais na história da nossa literatura, de penetrar na alma desses companheiros, “de sentir suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos”, segundo ele mesmo diz. “Memórias do Cárcere”, entretanto, só foi concluído anos depois. E restou como obra póstuma, publicada no ano de 1953, na Rio de Janeiro de sua adoção.
Sobre essas “Memórias”, especificamente, nós conversaremos na semana que vem. Rogo apenas um tico de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

04/10/2019

MEMÓRIA VIVA