Da nova intolerância
Michel de Montaigne (1533-1592) escreveu um belo ensaio sobre Catão, o
Jovem (95-46 a.C.), estadista romano famoso por sua integridade moral.
Para quem não sabe, adversário do populista Júlio César (100-44 a.C.),
este Catão acabou por tirar sua própria vida após a derrota na Batalha
de Tpaso, na Segunda Guerra Civil da República de Roma, na qual lutou do
lado das tropas de Pompeu, o Grande (106-48 a.C.). Erro magno do “Moço”
(refiro-me ao seu suicídio).
Nesse texto – e aqui consulto a
minha de edição de “Os ensaios”, livro I, da editora Martins Fontes,
2002 –, afirma Montaigne: “Não faço o erro comum de julgar um outro de
acordo com o que sou. Dele aceito facilmente coisas que diferem de mim.
Por me sentir comprometido com um modo de ser não obrigo o mundo a isso,
como fazem todos; e aceito e concebo mil formas de vida opostas; e, ao
contrário do comum, admito mais facilmente em nós a diferença do que a
semelhança. Tanto quanto possível libero um outro ser de minhas
características e princípios, e considero-o simplesmente em si mesmo,
sem relação, dando-lhe estofo sobre seu próprio modelo. Por não ser
continente não deixo de aprovar sinceramente a continência dos frades
bernardos e dos capuchinhos, e de perceber bem o ar de seu proceder:
pela imaginação, insinuo-me facilmente em seu lugar. E na verdade
aprecio-os e honro-os ainda mais porque são diferentes de mim. Desejo
unicamente que sejamos julgados cada um por si só, e que não concluam
sobre mim a partir dos exemplos comuns”.
Esse ensaio de
Montaigne, embora sobre o jovem Catão, pelas palavras acima
reproduzidas, poderia muito bem se chamar “Da tolerância”.
Tolerância, por sinal, é algo que vem nos faltando hoje em dia.
Este começo de século que presenciamos, esta década em que vivemos,
este ano em que lutamos têm sidos tão pesados, tão exageradamente
pesados, de ódio ao diferente, que a própria ideia de tolerância parece
ter deixado de existir. É algo impensável para alguns. E em determinados
grupos, proferir aquela frase outrora atribuída a Voltaire (1694-1778) –
“Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o
seu direito de dizê-lo” – é motivo de banimento perpétuo. Você será logo
posto numa nova categoria: a dos “canalhas!!!”.
Embora a
Internet não tenha causado a intolerância – e eu poderia dar aqui mil e
um exemplos de intolerância desde o tempo de Adão e Eva –, a
universalização das redes sociais, sob certo sentido, amplificou o
problema à milésima potência. Tornou tudo gigante. Tornou tudo mais
rápido. Fez com que ela (a intolerância) chegasse correndo à nossa casa
ou ao nosso celular, geralmente em forma de “fake news”. Nas casas, nas
ruas ou nas redes sociais, as pessoas são as mesmas, acredito. Mas o
ambiente da Internet, dada a possibilidade do anonimato ou, pelo menos,
da covarde reclusão atrás da tela do computador ou do smartfone, fez com
que desocupados e ressentidos soltassem muito mais livremente os seus
demônios. E isso virou costume. Algo natural. As estatísticas mostram: é
alarmante a quantidade de páginas e de pessoas que divulgam conteúdos
de ódio, de intolerância religiosa, racistas, xenofóbicos, homofóbicos,
fascistas, macartistas etc., muitas vezes sabidamente mentirosos, contra
aqueles que apenas se mostram “diferentes”.
As consequências
disso tudo? Muitas. E terríveis. Vejam, por exemplo, o que se deu
recentemente nos EUA. A verborragia (quase oficial) contra o imigrante
tem exacerbado um tipo de intolerância perigosíssima – racista e
xenófoba. E, assim, armadas até o cabelo, aparecem mentes tresloucadas
para abrir fogo contra inocentes, como nos casos dos massacres,
sucessivos, nos estados do Texas e de Ohio.
Entretanto, entre nós, uma coisa tem me assustado especialmente.
Vejo que algumas pessoas agem dessa forma agressiva por pura maldade.
São pessoas tóxicas. Gente mental ou socialmente doente de verdade.
Corruptos também. Criminosos mesmo. E tem também muito de populismo de
alguns espertos – e desonestos – que surfam na onda do momento. Quanto a
esses indivíduos, não tenho esperança alguma. Eles sempre existiram, em
maior ou menor grau, e sempre vão existir. Minha sugestão é
combatê-los. O bom combate de São Paulo Apóstolo (5-67 d.C.).
Há, também, os que agem por ignorância. São pessoas simples, sem muito
estudo, até rudes, que reproduzem, sem qualquer filtro, por pura
simpatia ou até nostalgia, o conteúdo preparado por gente perigosamente
engenhosa. Esse tipo de “homem médio”, essa “massa de manobra”, que, por
estupidez, embarca no discurso de ódio populista ou mesmo criminoso,
também sempre existiu. Cabe-nos alertá-los. Diuturnamente.
Mas o
que me assusta mesmo são as pessoas inteligentes e estudadas – e,
supostamente, de bom caráter –, que também estão ávidas por vilipendiar a
honra, as ações ou mesmo a vida dos outros, pelo simples fato de estes
não comungarem dos seus preconceitos e ideologia. É como se a capacidade
de “julgamento” de muitos de nós estivesse momentaneamente afetada por
uma doença social contagiosa, padecendo da depravação de uma moda: a de
maldizer quem é diferente. Não sou psicólogo social e, para essas
pessoas tidas por inteligentes e de bom caráter, não tenho sugestão ou
remédio milagroso. E nem sei se Catão ou Montaigne o teriam. Mas, de
toda sorte, vou continuar lendo os “Ensaios”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP