A legitimidade das decisões judiciais (IV)
No artigo da semana passada, prometi encerrar esta minha série de
artigos sobre a legitimidade das decisões judiciais tratando de dois
pontos: a necessidade de que realmente fundamentemos as nossas decisões
nas leis e na Constituição do país – e não naquilo que é a nossa
convicção ou no que são os nossos pré-conceitos – e a questão final da
aceitação popular propriamente dita das decisões judiciais.
Claro que não defendo a ideia, inspirada na lição de Montesquieu
(1689-1755), de que o juiz não deve ser outra coisa senão a “boca que
pronuncia as palavras da lei”. Isso seria a conduta de um mau juiz, não
correspondendo aos fins do direito. E até acredito que uma neutralidade
desse tipo seria mais aparente que real.
Na verdade – e isso já
nos mostrou a turma do “realismo jurídico americano”, sobretudo Karl
Llewellyn (1893-1962) e Jerome Frank (1889-1957) –, a decisão judicial é
muito mais do que o resultado da simples aplicação de uma norma aos
fatos do caso. Muito mais do que um silogismo, em que a premissa maior é
a lei/norma, a menor é o fato e o corolário é a sentença.
Primeiramente, a própria determinação, pelo juiz, de quais são e como
são os fatos do caso acrescenta inúmeras variáveis a sua decisão final,
assim como a interpretação da norma é algo muito mais complexo que uma
simples releitura do seu texto, seguida de um processo analítico de
subsunção. Além disso, os juízes decidem baseados numa variedade de
fundamentos e apenas alguns deles são conscientes e analíticos. Alguns
“fundamentos” da decisão judicial, que atuam previamente aos fundamentos
conscientes e analíticos, são mais complexos e menos óbvios,
extremamente influenciados pelos pré-conceitos do julgador.
Se
isso parece fato – refiro-me ao que está por detrás do aparente
silogismo –, o erro está em não se ter na lei ou nos precedentes, às
vezes, nem minimamente, o correto freio/balizamento para a decisão
judicial. O direito passa a ser simplesmente o que juízes e tribunais,
individual e erraticamente, declaram e decidem.
Para suavizar
essa dependência peculiar do juiz de si mesmo e de tudo o que compõe seu
horizonte interpretativo pessoal, mecanismos e padrões de comportamento
devem ser sempre pensados, criados e fomentados. Exigir o respeito aos
precedentes. Dar maior dignidade à lei, tão amesquinhada nos nossos
dias, é mais que fundamental.
Tenho até pensado, a partir de um
texto que li faz muitos anos (“Uso do precedente no Código Civil da
Luisiana”, de James L. Dennis, publicado na Revista de Direito Público –
RDP, no ano de 1997), numa categorização das decisões judiciais levando
em consideração a sua proximidade com a legislação (constitucional e
infraconstitucional). Quanto maior a sua proximidade da lei, melhor. Se a
decisão pode ser fundamentada estritamente numa norma ou dispositivo
específico da legislação de regência, a isso deve-se dar preferência. Em
segundo lugar, deve-se dar preferência a uma decisão baseada em outros
dispositivos da lei que rege a matéria decidida (seja uma lei
específica, seja um código). Em terceiro lugar, deve-se preferir a
decisão que tenha fundamento em uma norma legal do sistema jurídico do
país. E, em quarto lugar, somente na ausência de norma legal aplicável, é
que se deve dar uma fundamentação principiológica, mais independente do
direito legislado do país. Não tenho dúvida de que, quanto mais uma
decisão judicial estiver constrita a uma norma legal específica, mais
ela se coadunará com as diretrizes (ou vontade) do legislador. E, apesar
de não ter ainda definido completamente essa minha categorização (estou
pensando, ainda), tenho certeza de que o juiz brasileiro, como
“rulemaker” provisório – e não como um igual ao legislador/“lawmaker” –,
hoje mais do que nunca, deve ser incentivado a decidir em conformidade,
o máximo possível, com a vontade ou diretrizes expressas do legislador
(constitucional e infraconstitucional).
Definida essa premissa –
de que as decisões judiciais devem se basear, no máximo grau possível,
nas leis e na Constituição do país –, chego à questão da aceitação
popular de tais decisões.
Não desconheço que a legitimidade das
decisões judiciais está em alto grau relacionada à aceitação delas pela
opinião pública. Há até quem simplesmente identifique uma coisa com a
outra. Também já defendi aqui que a sociedade como um todo – além das
partes, dos seus advogados e dos demais atores envolvidos na lide
específica – é uma das destinatárias das motivações das decisões
judiciais, podendo ela assim verificar se as decisões do Poder
Judiciário são pautadas pelo direito ou se são fruto de arbítrio dos
julgadores. E também reconheço que as decisões judiciais que ofendem o
senso comum acabam, a longo prazo, não sobrevivendo ao tempo e à crítica
geral.
Entretanto, se “a autoridade da Justiça é moral,
sustenta-se pela moralidade das suas decisões”, como queria o nosso Rui
Barbosa (1849-1923), se a “majestade dos tribunais assenta na estima
pública”, como disse o mesmo Rui, penso que essa moralidade e essa
estima têm de vir naturalmente, com o tempo e com o exemplo, e não como
um fim em si mesmo.
Peguemos o exemplo da Suprema Corte dos
Estados Unidos da América, sempre bem-vindo. Desde o caso Marbury v.
Madison, de 1803, já citado aqui, a U.S. Supreme Court tem conquistado e
consolidado o reconhecimento de suas decisões não só pelos demais
Poderes da Federação, mas, sobretudo, pelo povo americano, que a vê como
o derradeiro baluarte em defesa dos seus direitos fundamentais. Mas
isso tem sido progressivamente. E naturalmente.
Por fim, essas
observações nos trazem de volta à necessária complementaridade entre o
Estado de Direito e a democracia. Se a democracia é o governo da
maioria, o Estado de Direito consagra a supremacia da Constituição e das
leis do país e o respeito aos direitos fundamentais. A regra da maioria
ou da democracia só se legitima se respeitados, na forma da lei e da
Constituição, mesmo em desfavor da turba, os direitos de todos,
inclusive os das minorias.
Reitero: não se deve simplesmente
decidir em conformidade com a opinião pública. Nem muito menos
manipulá-la! Pelo contrário, a maior legitimidade das decisões judiciais
virá naturalmente se houver a obediência a determinados valores
(estabilidade, previsibilidade, igualdade e celeridade), o respeito a
uma teoria de precedentes vinculantes e com a expressa fundamentação
destas decisões na Constituição e nas leis do país, fornecendo-nos,
assim, uma Justiça verdadeiramente legitima e consensual.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP