A legitimidade das decisões judiciais (II)
Como eu disse no artigo da semana passada, o grau de convencimento – leia-se, aqui, de legitimidade – de uma decisão judicial depende, podem ter certeza, de muitos fatores. À forma de recrutamento dos juízes, à composição dos tribunais, à imparcialidade e ao renome do juiz da decisão, já tratados aqui, some-se a excelência da motivação em si, sua acessibilidade, a aceitação pelos demais poderes, o respeito a determinados valores (estabilidade, previsibilidade, celeridade, igualdade), sua expressa fundamentação na Constituição e nas leis do país, desaguando tudo isso na própria aceitação popular.
Analisaremos mais alguns desses fatores no nosso papo de hoje.
Sobre a fundamentação – e talvez tivesse sido melhor dizer aqui “motivação” – das decisões judiciais, a nossa Constituição Federal, no seu art. 93, inciso IX, expressamente dispõe que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)”. E o nosso Código de Processo Civil, como não poderia deixar de ser, no seu art. 11, caput, repetindo a redação da CF, seguiu a mesma trilha. Na verdade, o CPC foi até mais longe, pois, especialmente no seu art. 489, § 1º, prevê hipóteses em que a exigência constitucional e legal da fundamentação das decisões restará desatendida.
Lembremos que o juiz motiva sua decisão sem interesse algum na causa – pelo menos era para ser assim –, apenas imparcialmente elencando, nas palavras de Víctor Gabriel Rodríguez (em “Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal”, editora Martins Fontes, 2005), “elementos que devem convencer as partes de que seu raciocínio é o mais correto, é o decorrente da lei, e de que seu livre convencimento não provém da arbitrariedade, mas sim de uma boa avaliação de todas as provas e de todo o ordenamento legal”.
Se todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas ou motivadas, assim o é primeiramente como elemento essencial do processo, mas também como condição de legitimidade da decisão propriamente dita e da atividade jurisdicional como um todo. Diante de uma decisão motivada e transparente, qualquer jurisdicionado e a sociedade como um todo – além das partes, dos seus advogados e dos demais atores envolvidos na lide específica – têm condições mínimas de aferir a imparcialidade do Poder Judiciário e se as decisões deste são pautadas pelo direito ou se são frutos de arbítrio dos julgadores. Uma motivação clara, transparente e acessível – aos profissionais do direito e, na medida do possível, abolindo tecnicismos desnecessários, aos leigos também – é o que minimamente se pede.
E se falei de acessibilidade às decisões judiciais é porque considero a transparência como um dos mais importantes valores do direito. Ela é exigida pela famosa “rule of law” e em qualquer estado democrático de direito, como instrumento de equilíbrio nas relações entre os jurisdicionados e entre estes e o Estado. O Direito – e falo aqui tanto do direito legislado como do direito “judicial” – deve ser devidamente publicizado e o acesso à informação facilmente garantido, proporcionando o controle da atividade jurídica estatal tanto por instituições oficiais (a exemplo do Ministério Público, dos Tribunais de Contas, das Corregedorias, das Ouvidorias etc) como pelo cidadão comum.
Aqui eu acho que mandamos bem. Apesar da grande quantidade de decisões judicias proferidas no Brasil, um sofisticado sistema oficial de decisões (confiável e de fácil acesso) foi e está sendo progressivamente desenvolvido com a participação decisiva dos tribunais e demais órgãos jurisdicionais brasileiros. Os tribunais brasileiros têm pessoal especializado para revisar, consolidar e publicizar suas decisões, relatando todos os aspectos necessários das mesmas. Embora ocorram ocasionalmente pequenas falhas, os tribunais alcançaram um excelente know-how para esse tipo de publicização com o suporte de ferramentas digitais e on-line que, atualmente, são bastante confiáveis. Os profissionais do direito no Brasil ou as próprias partes consultam esses repertórios oficiais – de tribunais específicos ou do tipo “Jurisprudência Unificada” do Conselho da Justiça Federal –, motivados pelo fato de que eles são atualizados e sua estrutura é muito racional, sem mencionar que esses relatórios jurídicos estão mesmo facilmente disponíveis na rede mundial de computadores, o que torna a busca sempre muito mais fácil. O acesso on-line oficial e gratuito brasileiro às decisões judicias deve, de fato, ser elogiado.
E não vou nem falar aqui das transmissões dos julgamentos do nosso Supremo Tribunal Federal – e, de resto, frequentemente, de outros tribunais do país –, ao vivo, pela TV Justiça. Temos aqui uma superexposição. Talvez mais do que o devido. Tenho minhas críticas. Muitas. Começando pela vaidade, um pecado que se acha ao nosso lado. Daria alguns artigos.
Por fim, encerro o texto de hoje tratando de um ponto que acho fundamental na temática: a aceitação das decisões judiciais pelos demais Poderes do Estado. O Executivo e o Legislativo, deixo claro, mesmo correndo o risco de ser redundante. Peguemos o exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Desde o famoso caso Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803), no qual, segundo convencionado, está a origem do “judicial review of the constitutionality of the legislation” (que chamamos de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis – modelo difuso), a U.S. Supreme Court tem conquistado e consolidado, pregressivamente, o reconhecimento e a aceitação de suas decisões pelos demais Poderes daquela grande Federação. Desde o tempo de John Marshall (1755-1835) até os dias atuais, mesmo havendo, como é normal na história, alguns momentos de crise.
Espero que se dê – ou continue se dando – o mesmo no Brasil. Assustam-me muito algumas iniciativas em sentido contrário. Sobretudo vindo de onde estão vindo. Essas coisas às vezes a gente até sabe como começa, mas não sabe como termina.
Quanto à aceitação popular e outras coisitas mais, conversarmos no nosso encontro da semana que vem.
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP