Sobre Jean Bodin (I)
Se a Itália – mais precisamente a República Florentina de então – nos deu Nicolau Maquiavel (1469-1527), a França nos presenteou com outro grande pensador, também considerado como um dos pais da ciência política. O nome dele é Jean Bodin (1530-1596).
Para quem não sabe, Jean Bodin nasceu em Angers, na França, no seio de uma família burguesa de classe média. Estudou no mosteiro carmelita da sua cidade natal. Chegou ao noviciado. Não adaptado à ortodoxia católica (havendo até suspeita de envolvimento com algumas “heresias”), foi dispensado dos votos. Embora tenha restado formalmente católico pelo resto da vida, namorou o protestantismo. Estudou no que viria a ser o College de France (filosofia) e na Universidade de Toulouse (direito). Economista, historiador, filósofo, jurista e cientista político, Bodin foi, como homem público, entre outras coisas, professor de direito (em Toulouse), advogado (em Paris), conselheiro de príncipes e reis e membro do outrora poderoso Parlamento de Paris (uma instituição do Antigo Regime que, embora com o nome de Parlamento, compunha a mais alta hierarquia do aparelho judicial francês de então).
Em francês da época, depois vertidos para o latim, Jean Bodin escreveu inúmeros livros (sobre história, economia, direito, ciência política, filosofia, teologia e por aí vai), alguns deles, flertando o autor com o calvinismo huguenote, “interditados” por ofender a ortodoxia católica. Dentre as obras de Bodin, destacam-se: “Método fácil para a compreensão da história” (“Methodus ad facilem historiarum cognitionem”, de 1566); “Os seis livros da república” (“Les Six livres de la République”, de 1576); a nova versão deste, agora em latim, como “Da República” (“De Republica”), que é de 1586; e o manuscrito “Colóquio entre sete sábios de diferentes sentimentos acerca dos segredos das coisas sublimes” (“Colloquium heptaplomeres: des secrets cachez des choses sublimes entre sept sçavans qui sont de differens sentimens”, 1593).
Maquiavel, Bodin e, mais tarde, o inglês Thomas Hobbes (1588-1679), com seus textos, formam a conhecida “trindade do absolutismo”. Mas é preciso ser justo com Bodin, enxergando ele dentro do seu contexto histórico. Ele viveu numa França em plena consolidação inexorável da monarquia absoluta, que ele compreende, aceita e justifica. De fato, com anota Paulo Jorge Lima (no seu “Dicionário de filosofia do direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em 1968), “ideólogo do absolutismo monárquico do século XVI na França, suas conclusões relativas à soberania, por ele conceituada como um poder indivisível e absoluto, voltavam-se contra o fracionamento feudal, no momento em que se consolidava o Estado francês centralizado”. Nesse ponto, ele se assemelha a Maquiavel (também fruto do seu tempo e da sua Itália em ebulição), usando seu poder de observação e um método indutivo para demonstrar suas teses, tão políticas quanto jurídicas, visando atingir os objetivos práticos da administração do Estado de então.
Aliás, a comparação de Bodin com Maquiavel é inevitável. Lembremos, primeiramente, que Bodin nasceu apenas dois anos depois da morte de Maquiavel, que se deu em 1596. Entretanto, segundo Kurt Schilling, em sua “História das ideias sociais” (Zahar Editores, 1974), Bodin era um jurista e humanista que, “consolidado na tradição política do grande Estado formado por sua pátria”, estava “longe de ter um raciocínio tão penetrante quanto o de Maquiavel”. Para Schilling, “o que Maquiavel tentara fazer como diplomata e como político (procurar para o novo Estado seu lugar no mundo em sua qualidade de potência), Bodin realiza juridicamente na tradição nacional e política de seu país. As categorias do pensamento são aqui completamente diferentes, bem menos profundas no plano humano, mas o objetivo não é uma simples quimera, estando já presente na realidade: o novo Estado absolutista e seu direito. Em seu objetivo e apesar de sua realidade nessa época, ele é muito mais superficial do que a ideia social de Maquiavel de um povo que ainda não existia”.
Não resta dúvida que a obra de Bodin não teve o mesmo sucesso histórico alcançado por “O Príncipe” (“Il Principe”, de 1513). Na ciência política, a importância e a influência de Maquiavel, mesmo sendo ele quase sempre incompreendido e alvo de vilipêndios, ainda não foram superadas. Mas será mesmo essa comparação com Maquiavel tão desfavorável a Bodin? Até por estar muito mais integrado à sua época e ao seu Estado (em processo de consolidação do absolutismo), que ele ajudou realmente a formar (diferentemente de Maquiavel, que terminou a vida no ostracismo), eu sinceramente penso que não.
Bodin, para mim, também foi um gigante. E isso eu vou tentar demonstrar, ao tratarmos das principais ideias desse jurista francês, nas nossas próximas conversas.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP