Tem, mas tá faltando
Vivemos – ou viveremos nos próximos meses – tempos de reformas do
Brasil: a reforma da previdência, o “projeto Moro” de combate à
criminalidade, uma possível reforma tributária, a recorrente reforma
política e por aí vai.
Essas reformas aí são mais que urgentes, concordo plenamente.
Mas será devemos reformar tanto o nosso direito? Será que devemos reformá-lo como um todo? Será que nos falta tudo?
Outro dia, conversando com um grupo de ex-alunos, com o qual topei por
acaso, fiquei quase convencido de que este é o sentimento geral. E me
bateu uma tristeza, sobretudo porque esse sentimento de insatisfação com
a Justiça era dirigido especialmente ao nosso Supremo Tribunal Federal,
órgão mais importante e vitrine do nosso aparelho judicial.
A
opinião era quase unânime. Por exemplo, uma aluna, muito jovem e bela,
me disse, na lata: “professor, no STF falta tudo. Falta, de logo,
estabilidade. E um direito estável é salutar para qualquer país. A
instabilidade, com regras jurídicas constantemente reformuladas e
aplicadas de maneira inconsistente, prejudica muito a confiabilidade no
nosso sistema. Infelizmente, a instabilidade do direito parece já fazer
parte da tradição brasileira, sofrendo o nosso sistema jurídico, e o
nosso STF num grau altíssimo, desse problema”. Calado estava, mudo
fiquei.
“Por isso”, disse outra aluna, já não tão jovem,
contudo ainda mais bonita, “falta previsibilidade. Essa instabilidade de
entendimento, em casos semelhantes, torna simplesmente imprevisível
qual será a solução aplicada à mesma situação se vier acontecer
novamente alguma querela judicial. Os indivíduos e as pessoas jurídicas
não conseguem assim ordenar suas condutas e seus negócios, e os
advogados, em sendo o caso, não podem antecipadamente aconselhar seus
clientes, pois não há uma previsão segura de como as questões serão
resolvidas judicialmente”. Calei-me duplamente.
“E falta até
mesmo igualdade, professor. A igualdade perante a lei deve implicar
igualdade na interpretação e aplicação dessa mesma lei. Mas a
jurisprudência do nosso STF é cheia de distinções ilógicas, para dizer o
mínimo. Nada mais justo que casos semelhantes sejam resolvidos de modo
semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes)
sejam decididos, arbitrariamente, de modos diversos. Dar e garantir
decisões semelhantes para casos semelhantes, de sorte a evitar qualquer
desigualdade arbitrária em prejuízo do jurisdicionado e da própria
administração da justiça, é uma das principais obrigações daquele que
foi alçado a guardião da Constituição”. Foi mais ou menos o que disse um
dos rapazes, inteligentemente, criando coragem em cima do meu silêncio
eloquente.
“Aliás, relacionado à igualdade, temos a questão da
celeridade. O acesso rápido à justiça é um norte perseguido pelo direito
hoje em dia. Basta consultar a Constituição e as mais recentes leis
processuais para constatar isso. Considerando tanto a ótica do
jurisdicionado como da própria administração da Justiça, num processo
civil ou penal de resultados, não haverá um verdadeiro acesso à justiça
se a prestação jurisdicional for dada tardiamente. Para o bem desse
jurisdicionado e do próprio Estado, o processo deve encerrar-se o mais
rapidamente possível. O problema, no STF, é que, para alguns, essa
celeridade não falta. Mas, para a grande maioria, o que abunda é a
morosidade”. Foi assim que voltou à carga, com um olhar que dizia mais
do que devia, a mais bela do grupo. Me fiz de doido.
“Isso sem
falar na pomposidade do STF, professor. Com cada um ali querendo
vaidosamente ‘legislar’ mais do que o outro, acaba faltando precisão e
simplicidade às decisões do Tribunal. Substitui-se indevidamente o
legislador. Perde-se o prêmio que é dar um passo da generalidade da lei
em direção à concretude da vida. Perde-se a oportunidade de criar um
princípio nascido de um caso concreto, com alto grau de precisão no
regramento dos fatos e dos negócios da vida das pessoas. Com a mistura
de papéis, tudo se torna muito complexo. E, hoje em dia, não se enxerga,
naqueles que estão ali, qualquer intenção de minimizar essa falta de,
digamos, transparência”, disse o mais gaiato da turma, de modo empolado,
imitando um dos ministros do que ele chamou, cheio de ironia, de
Pretório Excelso. Foi uma gargalhada geral. Eu apenas sorri
discretamente.
Bom, eu quis muito defender o nosso direito e
o nosso Supremo Tribunal Federal. De críticas infundadas, de reformas
desnecessárias. Quis dizer que possuímos isso e que temos aquilo. Mas,
por alguma razão, senti-me intimidado. Não sei bem dizer o que foi. A
beleza, às vezes, causa essas coisas. A juventude aguerrida também. Mas
talvez eu tenha apenas ficado com medo de receber um “tem, mas tá
faltando”.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP