06/02/2019

Sobre Maquiavel (IV)

No artigo da semana passada, embora eu tenha reconhecido o “lado sombrio” de Nicolau Maquiavel (1469-1527) e do seu “O Príncipe” (“Il Principe”, 1513), também afirmei que há muita incompreensão acerca desse grande florentino e, sem dúvida, um olhar mais acurado sobre sua obra e suas circunstâncias faz com que cheguemos a uma opinião mais favorável a respeito dele.
Além dos argumentos elencados na semana passada, milita em prol de Maquiavel o próprio desiderato da sua mais badalada obra. Antes de mais nada, “O Príncipe” deve ser visto mais como um receituário de conselhos de um amigo experiente, dados “ad hoc” aos governantes (no caso específico, ao príncipe Médici de sua amada Florença), do que propriamente um tratado de filosofia ou de ética política. Ademais, em vez de imaginar a sociedade e a administração do Estado como elas deveriam ser, Maquiavel preferiu mostrar como elas efetivamente são. A política é tratada não como um objeto de uma filosofia de viés moral ou ético, mas, unicamente, nos seus aspectos realistas e práticos. Maquiavel trabalha – sendo assim um dos seus “pais” – com o que hoje convencionamos chamar de “Realpolitik”.
Aliás, como lembra Cabral de Moncada (em “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), nos seus importantes “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, publicados entre 1512 e 1517, mas que são anteriores a “O Príncipe”, o “imoralismo” de Maquiavel “não atinge ainda a forma drástica, escandalosa, que alcançou nesse último [“O Príncipe”], apesar do juízo desfavorável aí proferido sobre o Cristianismo. Num outro escrito, embora talvez da mocidade, por outro lado, Maquiavelli dá-nos uma ética totalmente diferente em que respira ainda um espírito religioso cristão e medieval. E ainda até no próprio II Principe é preciso não esquecer que não faltam também passagens em que o verdadeiro juízo moral fica suspenso, não se aplicando ele, por se suporem os homens maus, mas deixando adivinhar um diferente critério de valor a aplicar se eles fossem bons”.
Outro ponto que deve ser ressaltado em favor de Maquiavel é a sua originalidade.
É claro que a aplicação prática da ideia da “raison d'État” (“razão de Estado”) antecede a Maquiavel. E mesmo a sua problemática, sob o ponto de vista teórico, já havia preocupado os antigos. Mas em muitos aspectos Maquiavel se diferenciou dos pensadores que antecederam a ele – Platão (427-347 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.), Cícero (106-43 a.C.), os escolásticos e por aí vai.
Em primeiro lugar, Maquiavel é, sob certo sentido, a antítese do “homo theoreticus” (“homem teórico”), assim distanciando-se da filosofia das épocas precedentes. Como anota Cabral de Moncada (em “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), “enquanto que os escolásticos e os maiores filósofos gregos se moviam, primeiro que tudo, no campo da especulação teórica, para daí baixarem depois ao campo das realidades imediatas, o grande político da Renascença desconhece por completo o primeiro; só o segundo lhe fornece a base para todas as suas construções da vontade e da inteligência”. Numa sentença, o pensar de Maquiavel “é um pensar em função da vida”.
Sem dúvida, Maquiavel também fundou um método novo na ciência política, alicerçando esta na experiência – na sua própria experiência, sobretudo – e na história, antiga e recente. Viviam-se tempos turbulentos, que haviam abalado a fé da comunidade cristã. As nacionalidades modernas surgiam, com tudo que representaram para a história. Maquiavel olhou tudo isso pelo prisma não da filosofia, mas da história, pondo mais umas pitadas do naturalismo, do individualismo e do humanismo que marcaram o Renascimento.
O próprio estilo usado pelo autor em seu “O Príncipe” – em total oposição à denominada “moralidade cristã”, espirituoso, cínico ao extremo e revelador – mostrou-se também inovador. E se aquilo que descreveu já era de conhecimento das classes dominantes, Maquiavel, com o seu estilo e com o seu sucesso, fez com que esse “segredo” finalmente atingisse uma audiência muitíssimo mais ampla.
E, de fato, talvez esteja aqui a grande sacada de Maquiavel: a “originalidade do escândalo” de ensinar “ex professo” coisas que, embora corriqueiramente praticadas, eram, até então, inconfessáveis. Nas palavras de Cabral de Moncada, a originalidade de “dizer em voz alta aquilo que todos, ou antes, muitos, particularmente os príncipes, diziam já em voz baixa e, mais que diziam, praticavam. Com ele, o aspecto político dos problemas sociais do Homem passou adiante do aspecto jurídico mais abstracto desses problemas A vida pôs à consciência e à ética cristãs problemas novos que estas até aí tinham sempre procurado iludir”. Maquiavel e seu “O Príncipe” foram, realmente, e talvez demasiadamente, um escândalo.
Por derradeiro, há a própria questão do seu legado. Gostemos ou não, Maquiavel merece um importantíssimo lugar na história. Os críticos de Maquiavel, é verdade, vêm de todos os lados da filosofia e da política. Termos como “maquiavélico” e “maquiavelismo” são hoje de uso comum, aplicados, de modo pejorativo, em desfavor de pessoas (os políticos, sobretudo) tidas como falsas ou manipuladoras. Mas sua importância para o pensamento político foi e é enorme. Não só na Renascença, com sua ênfase no humanismo ao invés da religião. Continuou pela história da civilização. Basta lembrar, como fazem os autores de “O livro da política” (publicado pela Editora Globo em 2013), que “O Príncipe” foi bastante “influente nos séculos que seguiram a morte de Maquiavel, em especial entre líderes como Henrique VIII, da Inglaterra, Carlos V, do Sacro Império Romano, Oliver Cromwell e Napoleão, e o livro foi reconhecido como inspiração por figuras tão díspares como o teórico marxista Antônio Gramsci e o ditador fascista Benito Mussolini”.
E, claro, como “maquiavélicos”, eu poderia citar vários nomes do cenário político atual, todos vivíssimos. Mas deixa para lá. Já terminando este riscado, não quero mais causar problemas para a minha já não tão bela figura.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

FINANÇAS PÚBLICAS
Carlos Roberto de Miranda Gomes, advogado

            Nos meus quase 80 anos de existência, dispensado de encargos obrigatórios, dei-me a passear pelos jornais, noticiários, leitura de livros que o tempo não permitia fazer tão constantemente nos dias de atividade profissional.
            Nesse devaneio delicioso tenho a oportunidade de encontrar coisas que me encantam e conduzem a tempos pretéritos, tanto de assuntos amenos quanto daqueles mais importantes para o desempenho da vida.
            Refiro-me, por simples exemplo, às crônicas diárias do nosso Vicente Serejo no jornal AGORA, que hoje foi demais ao confessar a sua atração por Diana Palmer, a companheira do Fantasma, de quem, com menor fervor, também me tirou algumas noites de sono. Igualmente quando os assuntos são mais severos, como o alvissareiro artigo de Ricart César Coelho dos Santos, Procurador de Contas (TN), como foi a minha dedicação num passado recente.
            A sua intenção foi despertar a necessidade de se estudar finanças públicas, seja pelos governantes, dirigentes, estudiosos do Direito e a própria população, haja vista o descortínio que dá para melhor compreender as coisas no campo dos ganhos, dos gastos e do equilíbrio orçamentário.
            Quando ingressei na UFRN fui destinado ao ensino de Direito Financeiro e Direito Tributário, que então já possuíam expoentes da docência nas pessoas do Ministro Romildo Gurgel e do grande advogado Edgard Smith Filho, este pioneiro nas lides da Procuradoria de Contas do nosso TCE-RN. No meu tempo de Faculdade de Direito a disciplina oferecida era Ciência das Finanças.
            Com o passar do tempo os substituí nas cátedras, juntamente com o meu amigo-irmão Adilson Gurgel de Castro, com quem dividi alguns trabalhos didáticos.
            Sobre a matéria editei livros pertinentes, publicados em edições sucessivas, por editoras locais, mas também pela Saraiva e pela Brasília Jurídica, com grande aceitação.
            Ao deixar as atividades funcional e docente, insisti por alguns anos, no ensino em cursos sobre Gestão Pública e, indiretamente, influir na elaboração dos currículos dos cursos de Direito para que as referidas disciplinas fossem cada vez mais enfatizadas pela sua importância para o cotidiano do processo de condução das atividades vitais dos Entes Públicos.
            Esse desiderato o fiz até 2017, em caráter privado, sempre com a entrega de instruções escritas, notadamente da Lei de Responsabilidade Fiscal, que ainda considero um oásis na vida financeira do País, dos Estados e Municípios, carecendo de alguns ajustes, antes que alguns legisladores despreparados cavem a sua sepultura.
            Hoje, por força da idade, parece que fiquei desacreditado, pois neste nosso Brasil a experiência é um conflito com as necessidades públicas, daí o meu entusiasmo pelo que disse o jovem Ricart, na direção do mesmo discurso que custou mais de 40 anos de uma luta nas salas de aula, mas que gerou, graças a Deus, muitos continuadores – alguns até Ministros de Tribunais Superiores, o que nos dá a sensação do dever cumprido.
            Mesmo afastado das discussões temáticas, continuo estudando, atualizando o que aprendi e pronto para dialogar com quem tiver interesse de aceitar a experiência de um vetusto professor de assuntos de finanças públicas, sem interesse de remuneração.
            Alegra-me muito que ainda existam estudiosos do Direito preocupados com assuntos de tanta importância.

03/02/2019

O GARÇOM VIVAZ
BERILO DE CASTRO


Um dos meus poucos lugares escolhidos e esporadicamente usados para um bom papo, regado a uma cervejinha bem gelada ou um bom uísque, é a Peixada do Chorão. Situada no início da praia de Areia Preta, hoje nominada de Peixada do Velho Chora.
Lugar de um bom atendimento, com um apetitoso cardápio, tendo como carro-chefe o  fresquinho e irresistível peixe cozido, o Galo do Alto com pirão de arrebentar o juízo e o botão da camisa do freguês.
Vou encontrar também bons e admiráveis amigos para desopilar do dia a dia  movimentado e fatigante.
Sentado na sua mesa preferida, vou me juntar ao  estimado colega Armando Negreiros, anestesista, escritor e imortal. Um bom contador de causos; apreciador-mor do irresistível caldo de ostra com três ovos de codorna. Diz ele que fortifica até a medula do corpo cavernoso.
Os temas das resenhas são os mais variados: futebol, música, política, literatura: comentários sobre as boas crônicas de J. R.Guzzo, na última página da revista Veja.
Somos bem e alegremente servidos por um descontraído e vivaz garçom, o Tio César, assim chamado pelos seus sobrinhos administradores da Peixada. Que bom, tudo em família.
Tio César  é protagonista de histórias super-hilariantes, algumas já contadas por Armando.
Vejamos:
Certa vez foi abordado por um cliente que perguntou:
— Garçom, tem vinho seco?
— Tem,  sim, senhor!
— Me traga um!
Volta César com uma garrafa seca de vinho e diz:
— Pronto,  senhor,  tá aqui o vinho seco!
Uma outra vez, entra um cliente e pergunta:
— Garçom, aqui tem Wi-Fi?
— Não, doutor, só tem Black & White, Chivas e Old Parr!
Perguntado se a Stela (cerveja) já tinha chegado, responde:
— Quem chegou e está na cozinha é Margarida!
Quando seca um litro de uísque Old Parr, pede ao sobrinho Chorãozinho para ficar com o garrafa e levar para suas esbórnias, quando enche de uísque reeira para beber com as namoradas na praia da Redinha, momento em  que é tratado como “meu amorzinho rico, Cezinha.”. E pegue o falso Old Parr com ginga frita até o nascer do sol, arrodeado de gatinhas.

Berilo de Castro – Médico e Escritor –  berilodecastro@hotmail.com.br
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

01/02/2019



ELACIR, 80

 Por: BERILO DE CASTRO

Elacir Freitas da Rocha nasceu em Natal, no dia 25 de janeiro de 1939. Filho de Ormando Nobre da Rocha e Maria de Lourdes Freitas da Rocha.
Eu o conheci no final da década de 1950, quando residia na localidade do Baldo, na divisa dos bairros do Alecrim com o Centro da cidade. Nesta época e na mesma região, já prestava assessoria administrativa no Posto de gasolina São José, de propriedade do seu Ormando; ofício que lhe rendeu a prática de lidar com rapidez e muita precisão com o manuseio do  dinheiro.
Nos finais de semana, tinha a missão esportiva amadora de defender com muita pompa o gol da equipe do Real Madrid  do Baldo, usando o seu invejável uniforme negro, só usado pelo melhor goleiro do mundo — Lev Yashin, o Aranha Negra (1929-1990), da seleção Russa. Atuou também em vários outros times de várzeas, participando de jogos pelo interior do Estado.
Na era do Estádio Juvenal Lamartine (JL), no ano de 1955, teve uma rápida passagem pela equipe rubro-negra do Clube Atlético Potiguar (CAP), do nosso querido e imortal presidente João Machado, de Brígido Ferreira, do treinador Coqueiro, do seu auxiliar Arlindo e do boxeador/massagista Kid Passo.
No final da década de 1950, quando o Futebol de Salão (hoje Futsal) chegou empolgando a cidade, Elacir reaparece defendendo com destaque o gol do bom time do ABC, onde conseguiu levantar dois títulos.
Aposentado do futebol de salão, integrou-se definitivamente ao nosso grupo de peladeiros, chegando a participar por mais de 50 anos da nossa parceria recreativa nas tardes dos sábados. Chegando a impressionar nas suas últimas participações, com belíssimas, empolgantes e arrojadas defesas, quando já passava dos seus 70 anos.
Em 1973, já casado com Maria da Conceição de Araújo Rocha e com 4 filhos pequenos, foi diplomado em Direito pela UFRN.
No ano de 1975, assumiu o cargo de Auditor Fiscal do Ministério do Trabalho, onde permaneceu até a sua aposentaria como Delegado do Trabalho da Região.
Hoje, 27 de janeiro do ano de 2019, domingo de belo verão, reúne os seus fraternos amigos, os seus queridos familiares para comemorar os seus 80 anos de vida. Uma dádiva, uma história vencedora, de muito brilho, de muita união e muito amor.
Que a BÊNÇÃO e a PAZ do Senhor continuem a iluminar e a guiar a sua tão bonita e rica trajetória de vida.
PARABÉNS, AMIGO ELÁ!

30/01/2019



RESTAUREM O ENGENHO DOS GUARAPES!

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

O chamado Engenho dos Guarapes foi o marco expressivo do desenvolvimento econômico dos Séculos XVIII e XIX, através da comercialização de produtos agrícolas exportados para outros Estados e para o Exterior. Viveu o seu apogeu ao tempo de Fabrício Gomes Pedroza, rico comerciante, até chegar o seu declínio econômico no inicio deste século. O prédio situado no alto de uma colina, próximo a divisa dos municípios de Natal e Macaíba, embora em péssimo estado de conservação, a ele podem ser aplicadas as técnicas arquitetônicas utilizadas na reconstrução do Solar do Ferreiro Torto em Macaíba, cuja situação física era semelhante ou pior que o Casarão dos Guarapes, mas que para a sua consecução, houve empenho e verbas do Governo do Estado e Patrimônio Histórico da União.
A Arquiteta Jeanne Fonsêca Nesi na sua análise técnica, assim se expressou:
“Edificação majestosa e imponente, construída em alvenaria de tijolos, dentro das técnicas e padrões do século passado. Por volta de 1861, Guarapes era o centro comercial de repercussão, conhecimento, fama e poder. O seu proprietário e administrador era Fabrício Pedroza, o mais rico, mais poderoso e mais influente negociante da região. Exportava milhares de cargas de algodão, açúcar, sal, couros, peles, etc.”
Tarcísio Medeiros, no seu livro – Aspecto Geopolíticos e Antropológicos da História do Rio Grande do Norte – descreve: “... De lá, galeras, briques, caravelões, uma quantidade enorme e variada de embarcações a vela, transportava mercadorias para o estrangeiro. Somente no ano de 1869/70, vinte e duas ganharam o mar alto, pejadas em busca da Inglaterra. De Natal, apenas 09.”
Em 1989, propus ao Conselho Estadual de Cultura o seu tombamento, tendo merecido o parecer favorável do então Conselheiro Otto Guerra, o qual opinou também que fosse ouvido o proprietário atual do imóvel. O Secretário de Estado da Educação e Cultura, por ofício, consultou o Sr. Gerold Gerppert que respondeu por carta, datada de 02 de abril de 1990, a sua anuência ponderando a realização do levantamento topográfico a ser efetuado pela Fundação José Augusto e o desmembramento legal do terreno para a sua averbação em cartório. Em 18 de dezembro de 1990, o Casarão dos Guarapes foi finalmente tombado pelo Governo do Estado através da Portaria nº 456/90.
E agora? Passados tanto tempo, de concreto, nenhuma medida foi tomada. Sei do interesse da Fundação José Augusto em restaurar esse sítio histórico. E daqui, renovo o meu apelo ao novo presidente da Fundação José Augusto Crispiniano Neto que já visitou a área e ficou entusiasmado com a beleza da vista que se descortina do alto do Casarão, para que juntos, possamos dá a largada sensibilizando a governadora Fátima Bezerra. É o resgate de uma etapa importante da vida econômica do Rio Grande do Norte, para a qual, o Governo, a FIERN, a Fecomércio avancem para o futuro e que não esqueçam que existiu um passado. Infeliz é o Estado que não tem memória, nem uma história pra contar.
Os apelos em favor da restauração através da imprensa, televisão e rede social foram intensos desde os governos de Vilma de Faria (8 anos), Rosalba Ciarlini (4 anos) e Robinson Faria (4 anos). O último gestor (R.F.) chegou a devolver uma dotação de hum milhão de reais enviados pelo Ministério do Turismo (governo Michel Temer).




(*) Escritor.

29/01/2019

Sobre Maquiavel (III)
No artigo da semana passada, deixei no ar a questão sobre como devemos avaliar Nicolau Maquiavel (1469-1527) sob o ponto de vista de uma moral ou ética cristã, tão cara para nós nos tempos atuais. Seria Maquiavel, como também indaga Cabral de Moncada (em “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), “aquilo que se chama de imoralista confesso e professo? Não existiriam para ele, na sua construção teórica do Estado, outros limites à ação deste senão os da conveniência, da força e da astúcia?”.
A grosso modo, foi com essa fama de imoralista, para dizer o mínimo, que esse ilustre florentino passou à história, tendo os seus “terríveis” conselhos ao Príncipe contribuído para moldar, positiva ou negativamente, o comportamento político das eras seguintes. E termos como “maquiavélico” e “maquiavelismo” ganharam o imaginário e o vocabulário popular, nunca para elogiar o ato ou a pessoa (o político manipulador, por exemplo) apontados como tal.
E como reconhece o já citado Cabral de Moncada, não faltam em “O Príncipe” (“Il Principe”, 1513) passagens clássicas que, sobretudo se interpretadas ao pé da letra, nos levam rapidamente a essa mesma conclusão. Com efeito, são bem “conhecidos os conselhos aí dados por Machiavelli aos príncipes, relativamente ao modo como aqueles que se apoderaram do governo por meios injustos devem praticar as crueldades e injúrias necessárias, de maneira que resultem menos gravosas para os súbditos; bem como os por ele dados, a fim de que os príncipes não tenham escrúpulos em praticar o mal quando necessário; e ainda os relativos ao direito dos príncipes de violarem a fé jurada e os tratados, sempre que isso lhes convenha, etc. Nestas e outras semelhantes doutrinas consiste afinal o chamado ‘maquiavelismo’, ou aquela moral segundo a qual os fins justificam os meios, e em que a hipocrisia, na administração destes últimos, de vício passa a ser a mais excelsa das virtudes dos príncipes e dos homens de Estado”.
Embora esse “lado sombrio da força” esteja visível em “O Príncipe” e o “amoralismo” do seu autor venha sendo enfocado pelos seus críticos, também há, quanto à obra de Maquiavel, muito erro de interpretação, fazendo dele, talvez, o mais famoso e ao mesmo tempo mais mal compreendido dos filósofos políticos que a história nos legou. Foi certamente essa incompreensão que fez dele, sob o ponto de vista da moralidade e da ética, o mais mal afamado de toda a turma.
Um olhar mais acurado em sua vida e obra, entretanto, faz com que a balança penda um pouco mais em prol de Maquiavel.
Antes de mais nada, como até já dito aqui, Maquiavel e o seu “O Príncipe” são produtos de um tempo e de uma Itália dividida num triste espetáculo de guerras e perturbações intestinas. E nessas condições emerge a Renascença, com aquilo que ela traz em contradição ao Cristianismo, da qual Maquiavel, na política, é um representante típico. Autor e obra, portanto, devem ser julgados levando em conta os padrões morais e éticos daquele inusitado período histórico.
Ademais, para Maquiavel, a criação de um Estado nacional italiano, unitário, com a regeneração do povo, era o ideal a ser atingido. Era exclusivamente para atingir esse ideal – marcadamente circunstancial e histórico – que, para ele, pensador e verdadeiro homem político, todos os meios se justificavam.
E mesmo aqui – sob a máxima de que “os fins justificam os meios” – algumas coisas podem ser ditas em prol de Maquiavel. Embora possa parecer uma diferenciação por demais sutil ou mesmo cínica, há certos tipos de “meios” ou condutas que, mesmo levando em conta o fim almejado, o próprio Maquiavel não recomenda. Como lembram os autores de “O livro da filosofia” (publicado pela Editora Globo em 2011), existem “certos meios que um príncipe sábio deve evitar, porque, embora possam alcançar os fins desejados, deixam-no exposto a ameaças futuras. Os principais meios a serem evitados consistem naqueles que fariam o povo odiar seu príncipe. O povo pode amá-lo e temê-lo – preferivelmente ambos, dizia Maquiavel, embora seja mais importante para um príncipe ser temido do que amado. Mas o povo não deve odiá-lo, pois isso provavelmente levaria à revolta. Da mesma foram, um príncipe que maltrata seu povo desnecessariamente será desprezado – um príncipe deve ter uma reputação por sua compaixão, não pela crueldade. Isso pode envolver punições duras para uns poucos, a fim de alcançar uma ordem social geral que beneficie mais pessoas a longo prazo”. E, claro, para os cidadãos comuns, mesmo tendo Maquiavel em geral desdenhado “da moralidade convencional cristã, considerada fraca e imprópria para uma cidade sólida”, a conduta recomendada “não é de modo algum a mesma de um príncipe”.
Maquiavel tem também a seu favor o princípio da “raison d'État” (“razão de Estado”, entre nós), tão utilizado ao longo da história pelos mais variados governantes, de boa ou de má fama. Aliás, esse parece ser, como anota o já citado Cabral de Moncada, “em resumo, o tema central de Machiavelli, a que obedeceram todas as suas ideias e conclusões em matéria de Estado e de direito”. A esse imperativo – a busca do sucesso do Estado –, tudo deve estar subordinado. E relendo os exemplos da história, à luz da razão de Estado, será que podemos simplesmente condenar Maquiavel sem qualquer atenuante?
E não para por aí. Pelo menos mais três coisas ainda poderiam ser ditas em favor da “absolvição” de Maquiavel e do seu “O Príncipe”: o próprio desiderato do seu tratado, a sua originalidade e o seu legado. Mas, sobre isso, por falta de espaço hoje, nós só conversaremos na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

23/01/2019

Marcelo Alves
Sobre Maquiavel (II)

Como dito no nosso artigo da semana passada, Nicolau Maquiavel (1469-1527), com o seu “O Príncipe” (de 1513, mas publicado postumamente em 1532), não pretendeu nos oferecer um tratado de moral. Ele também não nos deu uma obra filosófica, dada a quase completa ausência de base teórica desse matiz na elaboração das suas ideias. Nem mesmo construiu Maquiavel um sistema político propriamente dito, já que propôs a sua doutrina – melhor dizendo, os seus conselhos – com base em realidades concretas e determinadas, sem tomar em conta princípios políticos de valor universal.
De fato, como anota Kurt Schilling, em sua “História das ideias sociais” (Zahar Editores, 1974), “o que lhe interessava, em primeiro lugar, era a observação lúcida da dependência mútua das paixões, das instituições e das condições humanas, da sabedoria, do grau de obstinação e de versatilidade, da ambição de poder, da docilidade, da necessidade e segurança, etc. Com a análise disso, almejava avaliar com certa verossimilhança o seu encadeamento e sua interação, através de uma espécie de cálculo político. Procurava adquirir luzes com os exemplos (pouco lhe importando que fossem fictícios ou históricos) da história romana antiga e da história italiana que ele mesmo vivera. Essas luzes deviam fornecer uma série de proposições e de regras gerais do comportamento humano. Queria, com essas regras, avaliar o futuro partindo de situações dadas e constatadas, que precisava comparar com os exemplos do passado. O objetivo era a aquisição, por meio de uma análise inteligente dessas estruturas de evolução, de meios que permitissem o domínio e a orientação política”.
Mas quais foram, então, os resultados dessas observações e análises feitas por Maquiavel, que, mesmo passados tantos anos, ainda tanto nos interessam?
Antes de mais nada, vivendo um tempo de “Renascença”, mas ainda numa Itália dividida, que assistia a um vai e vem de guerras e perturbações intestinas, Maquiavel decidiu nos dizer, pondo no papel, em forma de tratado político, não como o Estado deve ser, mas, sim, como ele é. E isso já foi grande coisa.
Para Maquiavel, o êxito do Estado ou da nação, que deveria restar unida, era o fim supremo. Até porque só o Estado forte e poderoso pode impor aos homens aquilo que é necessário e bom, para que eles (os homens) não destruam a si próprios.
Assim, a sacralização da “razão de estado”, sem qualquer limitação de uma moral ou ética cristã, é certamente um ponto fundamental na obra Maquiavel, ao qual se submetem as suas propostas e as suas conclusões. No pensamento de Maquiavel, na administração do Estado, aquelas virtudes cristãs tão caras a nós – a humildade, a obediência, a tolerância, a caridade e por aí vai – pouco significam e devem até ser repelidas.
Quem governa esse Estado ou nação – o seu “Príncipe” – deve, acima de tudo, empenhar-se para garantir, para além da sua glória pessoal, o êxito desse Estado. Como bem lembra Cabral de Moncada (em “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955). “a este imperativo tudo deve ser subordinado e até a honra dos príncipes lhe deve ser sacrificada, mesmo ‘con ignominia’, se tanto for necessário”. Se é para satisfazer tudo isso, ele, o governante, fazendo uso da sua “virtú” (leia-se dos seus “poderes”), não pode ser tolhido por questões de moralidade. Não importam os meios. Os fins justificam esses meios.
Na verdade, como lembram os autores de “O livro da política” (publicado pela Editora Globo em 2013), para Maquiavel, “o sucesso de um príncipe como governante é julgado pelas consequências de suas ações e seu benefício para o Estado, não por sua moralidade ou ideologia. Citando trecho de “O Príncipe”, esse autores acrescentam: “Nas atitudes de todos os homens, sobretudo dos príncipes, em que não existe tribunal a recorrer, o fim é o que importa. Trate, portanto, um príncipe de vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, pois as massas se deixam levar por aparências e pelas consequências dos fatos consumados, e o mundo é formado pelas massas”.
O príncipe deve ter a ferocidade de um leão e a astúcia de uma raposa, tanto para atemorizar quem a ele se opõe como para identificar as tramas porventura contra ele preparadas. Essa é outra tática ou conselho sugerido por Maquiavel, tomada emprestada, segundo se diz, dos manuais de guerra. Se indefensável na vida privada, ela é aceitável – mais do que isso, é sugerida – em prol do bem comum, que, em “O Príncipe”, costuma se confundir com o bem do Estado. Como anotado no citado “O livro da política”, essa tática “cria o temor, que é um meio de garantir a segurança do governante. Com seu pragmatismo característico, Maquiavel abordou a questão se seria melhor para um líder ser temido ou amado. Num mundo ideal, ele deveria ser tanto amado quanto temido, mas na realidade os dois raramente seguiriam juntos. O temor manteria o líder numa posição muito mais forte, sendo portanto melhor para o bem-estar do Estado”.
Bom, posto tudo isso, qual o balanço que se deve fazer, sob o ponto de vista de uma moral ou de uma ética cristã, de Maquiavel e do badalado livro? Seria realmente Maquiavel, como questiona Cabral de Moncada, “aquilo que se chama de imoralista confesso e professo? Não existiriam para ele, na sua construção teórica do Estado, outros limites à ação deste senão os da conveniência, da força e da astúcia?”.
Sem dúvida, a grosso modo, foi com essa conotação que suas ideias passaram à história e, de certa forma, assim contribuíram para moldar o comportamento político das eras seguintes. Basta lembrar o uso corriqueiro, nunca para elogiar a pessoa ou o ato apontado como tal, de termos como “maquiavélico” e “maquiavelismo”.
Mas isso está inteiramente correto? Isso é o que veremos, à luz de estudos mais acurados, na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP