Sobre Maquiavel (IV)
No artigo da semana passada, embora eu tenha reconhecido o “lado
sombrio” de Nicolau Maquiavel (1469-1527) e do seu “O Príncipe” (“Il
Principe”, 1513), também afirmei que há muita incompreensão acerca desse
grande florentino e, sem dúvida, um olhar mais acurado sobre sua obra e
suas circunstâncias faz com que cheguemos a uma opinião mais favorável a
respeito dele.
Além dos argumentos elencados na semana passada,
milita em prol de Maquiavel o próprio desiderato da sua mais badalada
obra. Antes de mais nada, “O Príncipe” deve ser visto mais como um
receituário de conselhos de um amigo experiente, dados “ad hoc” aos
governantes (no caso específico, ao príncipe Médici de sua amada
Florença), do que propriamente um tratado de filosofia ou de ética
política. Ademais, em vez de imaginar a sociedade e a administração do
Estado como elas deveriam ser, Maquiavel preferiu mostrar como elas
efetivamente são. A política é tratada não como um objeto de uma
filosofia de viés moral ou ético, mas, unicamente, nos seus aspectos
realistas e práticos. Maquiavel trabalha – sendo assim um dos seus
“pais” – com o que hoje convencionamos chamar de “Realpolitik”.
Aliás, como lembra Cabral de Moncada (em “Filosofia do Direito e do
Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), nos seus
importantes “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”,
publicados entre 1512 e 1517, mas que são anteriores a “O Príncipe”, o
“imoralismo” de Maquiavel “não atinge ainda a forma drástica,
escandalosa, que alcançou nesse último [“O Príncipe”], apesar do juízo
desfavorável aí proferido sobre o Cristianismo. Num outro escrito,
embora talvez da mocidade, por outro lado, Maquiavelli dá-nos uma ética
totalmente diferente em que respira ainda um espírito religioso cristão e
medieval. E ainda até no próprio II Principe é preciso não esquecer que
não faltam também passagens em que o verdadeiro juízo moral fica
suspenso, não se aplicando ele, por se suporem os homens maus, mas
deixando adivinhar um diferente critério de valor a aplicar se eles
fossem bons”.
Outro ponto que deve ser ressaltado em favor de Maquiavel é a sua originalidade.
É claro que a aplicação prática da ideia da “raison d'État” (“razão de
Estado”) antecede a Maquiavel. E mesmo a sua problemática, sob o ponto
de vista teórico, já havia preocupado os antigos. Mas em muitos aspectos
Maquiavel se diferenciou dos pensadores que antecederam a ele – Platão
(427-347 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.), Cícero (106-43 a.C.), os
escolásticos e por aí vai.
Em primeiro lugar, Maquiavel é, sob
certo sentido, a antítese do “homo theoreticus” (“homem teórico”), assim
distanciando-se da filosofia das épocas precedentes. Como anota Cabral
de Moncada (em “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado
Editor Sucessor, 1955), “enquanto que os escolásticos e os maiores
filósofos gregos se moviam, primeiro que tudo, no campo da especulação
teórica, para daí baixarem depois ao campo das realidades imediatas, o
grande político da Renascença desconhece por completo o primeiro; só o
segundo lhe fornece a base para todas as suas construções da vontade e
da inteligência”. Numa sentença, o pensar de Maquiavel “é um pensar em
função da vida”.
Sem dúvida, Maquiavel também fundou um método
novo na ciência política, alicerçando esta na experiência – na sua
própria experiência, sobretudo – e na história, antiga e recente.
Viviam-se tempos turbulentos, que haviam abalado a fé da comunidade
cristã. As nacionalidades modernas surgiam, com tudo que representaram
para a história. Maquiavel olhou tudo isso pelo prisma não da filosofia,
mas da história, pondo mais umas pitadas do naturalismo, do
individualismo e do humanismo que marcaram o Renascimento.
O
próprio estilo usado pelo autor em seu “O Príncipe” – em total oposição à
denominada “moralidade cristã”, espirituoso, cínico ao extremo e
revelador – mostrou-se também inovador. E se aquilo que descreveu já era
de conhecimento das classes dominantes, Maquiavel, com o seu estilo e
com o seu sucesso, fez com que esse “segredo” finalmente atingisse uma
audiência muitíssimo mais ampla.
E, de fato, talvez esteja aqui a
grande sacada de Maquiavel: a “originalidade do escândalo” de ensinar
“ex professo” coisas que, embora corriqueiramente praticadas, eram, até
então, inconfessáveis. Nas palavras de Cabral de Moncada, a
originalidade de “dizer em voz alta aquilo que todos, ou antes, muitos,
particularmente os príncipes, diziam já em voz baixa e, mais que diziam,
praticavam. Com ele, o aspecto político dos problemas sociais do Homem
passou adiante do aspecto jurídico mais abstracto desses problemas A
vida pôs à consciência e à ética cristãs problemas novos que estas até
aí tinham sempre procurado iludir”. Maquiavel e seu “O Príncipe” foram,
realmente, e talvez demasiadamente, um escândalo.
Por
derradeiro, há a própria questão do seu legado. Gostemos ou não,
Maquiavel merece um importantíssimo lugar na história. Os críticos de
Maquiavel, é verdade, vêm de todos os lados da filosofia e da política.
Termos como “maquiavélico” e “maquiavelismo” são hoje de uso comum,
aplicados, de modo pejorativo, em desfavor de pessoas (os políticos,
sobretudo) tidas como falsas ou manipuladoras. Mas sua importância para o
pensamento político foi e é enorme. Não só na Renascença, com sua
ênfase no humanismo ao invés da religião. Continuou pela história da
civilização. Basta lembrar, como fazem os autores de “O livro da
política” (publicado pela Editora Globo em 2013), que “O Príncipe” foi
bastante “influente nos séculos que seguiram a morte de Maquiavel, em
especial entre líderes como Henrique VIII, da Inglaterra, Carlos V, do
Sacro Império Romano, Oliver Cromwell e Napoleão, e o livro foi
reconhecido como inspiração por figuras tão díspares como o teórico
marxista Antônio Gramsci e o ditador fascista Benito Mussolini”.
E, claro, como “maquiavélicos”, eu poderia citar vários nomes do
cenário político atual, todos vivíssimos. Mas deixa para lá. Já
terminando este riscado, não quero mais causar problemas para a minha já
não tão bela figura.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP