Sobre Maquiavel (II)
Como dito no nosso artigo da semana passada, Nicolau Maquiavel
(1469-1527), com o seu “O Príncipe” (de 1513, mas publicado postumamente
em 1532), não pretendeu nos oferecer um tratado de moral. Ele também
não nos deu uma obra filosófica, dada a quase completa ausência de base
teórica desse matiz na elaboração das suas ideias. Nem mesmo construiu
Maquiavel um sistema político propriamente dito, já que propôs a sua
doutrina – melhor dizendo, os seus conselhos – com base em realidades
concretas e determinadas, sem tomar em conta princípios políticos de
valor universal.
De fato, como anota Kurt Schilling, em sua
“História das ideias sociais” (Zahar Editores, 1974), “o que lhe
interessava, em primeiro lugar, era a observação lúcida da dependência
mútua das paixões, das instituições e das condições humanas, da
sabedoria, do grau de obstinação e de versatilidade, da ambição de
poder, da docilidade, da necessidade e segurança, etc. Com a análise
disso, almejava avaliar com certa verossimilhança o seu encadeamento e
sua interação, através de uma espécie de cálculo político. Procurava
adquirir luzes com os exemplos (pouco lhe importando que fossem
fictícios ou históricos) da história romana antiga e da história
italiana que ele mesmo vivera. Essas luzes deviam fornecer uma série de
proposições e de regras gerais do comportamento humano. Queria, com
essas regras, avaliar o futuro partindo de situações dadas e
constatadas, que precisava comparar com os exemplos do passado. O
objetivo era a aquisição, por meio de uma análise inteligente dessas
estruturas de evolução, de meios que permitissem o domínio e a
orientação política”.
Mas quais foram, então, os resultados
dessas observações e análises feitas por Maquiavel, que, mesmo passados
tantos anos, ainda tanto nos interessam?
Antes de mais nada,
vivendo um tempo de “Renascença”, mas ainda numa Itália dividida, que
assistia a um vai e vem de guerras e perturbações intestinas, Maquiavel
decidiu nos dizer, pondo no papel, em forma de tratado político, não
como o Estado deve ser, mas, sim, como ele é. E isso já foi grande
coisa.
Para Maquiavel, o êxito do Estado ou da nação, que deveria
restar unida, era o fim supremo. Até porque só o Estado forte e
poderoso pode impor aos homens aquilo que é necessário e bom, para que
eles (os homens) não destruam a si próprios.
Assim, a
sacralização da “razão de estado”, sem qualquer limitação de uma moral
ou ética cristã, é certamente um ponto fundamental na obra Maquiavel, ao
qual se submetem as suas propostas e as suas conclusões. No pensamento
de Maquiavel, na administração do Estado, aquelas virtudes cristãs tão
caras a nós – a humildade, a obediência, a tolerância, a caridade e por
aí vai – pouco significam e devem até ser repelidas.
Quem
governa esse Estado ou nação – o seu “Príncipe” – deve, acima de tudo,
empenhar-se para garantir, para além da sua glória pessoal, o êxito
desse Estado. Como bem lembra Cabral de Moncada (em “Filosofia do
Direito e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955). “a
este imperativo tudo deve ser subordinado e até a honra dos príncipes
lhe deve ser sacrificada, mesmo ‘con ignominia’, se tanto for
necessário”. Se é para satisfazer tudo isso, ele, o governante, fazendo
uso da sua “virtú” (leia-se dos seus “poderes”), não pode ser tolhido
por questões de moralidade. Não importam os meios. Os fins justificam
esses meios.
Na verdade, como lembram os autores de “O livro da
política” (publicado pela Editora Globo em 2013), para Maquiavel, “o
sucesso de um príncipe como governante é julgado pelas consequências de
suas ações e seu benefício para o Estado, não por sua moralidade ou
ideologia. Citando trecho de “O Príncipe”, esse autores acrescentam:
“Nas atitudes de todos os homens, sobretudo dos príncipes, em que não
existe tribunal a recorrer, o fim é o que importa. Trate, portanto, um
príncipe de vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão
sempre julgados honrosos e louvados por todos, pois as massas se deixam
levar por aparências e pelas consequências dos fatos consumados, e o
mundo é formado pelas massas”.
O príncipe deve ter a ferocidade
de um leão e a astúcia de uma raposa, tanto para atemorizar quem a ele
se opõe como para identificar as tramas porventura contra ele
preparadas. Essa é outra tática ou conselho sugerido por Maquiavel,
tomada emprestada, segundo se diz, dos manuais de guerra. Se
indefensável na vida privada, ela é aceitável – mais do que isso, é
sugerida – em prol do bem comum, que, em “O Príncipe”, costuma se
confundir com o bem do Estado. Como anotado no citado “O livro da
política”, essa tática “cria o temor, que é um meio de garantir a
segurança do governante. Com seu pragmatismo característico, Maquiavel
abordou a questão se seria melhor para um líder ser temido ou amado. Num
mundo ideal, ele deveria ser tanto amado quanto temido, mas na
realidade os dois raramente seguiriam juntos. O temor manteria o líder
numa posição muito mais forte, sendo portanto melhor para o bem-estar do
Estado”.
Bom, posto tudo isso, qual o balanço que se deve fazer,
sob o ponto de vista de uma moral ou de uma ética cristã, de Maquiavel e
do badalado livro? Seria realmente Maquiavel, como questiona Cabral de
Moncada, “aquilo que se chama de imoralista confesso e professo? Não
existiriam para ele, na sua construção teórica do Estado, outros limites
à ação deste senão os da conveniência, da força e da astúcia?”.
Sem dúvida, a grosso modo, foi com essa conotação que suas ideias
passaram à história e, de certa forma, assim contribuíram para moldar o
comportamento político das eras seguintes. Basta lembrar o uso
corriqueiro, nunca para elogiar a pessoa ou o ato apontado como tal, de
termos como “maquiavélico” e “maquiavelismo”.
Mas isso está inteiramente correto? Isso é o que veremos, à luz de estudos mais acurados, na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP