Ferri e os criminosos na literatura
Enrico Ferri (1856-1929), o famoso jurisconsulto e político italiano,
nasceu na pequenina San Benedetto Po, nas cercanias de Mântua. Estudou
direito em Bolonha, colando grau, pupilo de Pietro Ellero (1833-1933),
em 1877. Especializou-se em Pisa, onde foi aluno de Francesco Carrara
(1805-1888), talvez o principal expoente da Escola Clássica do Direito
Penal. Estudou também na França, na Universidade Paris-Sorbonne. Foi
ainda aluno de medicina legal do criminologista Cesare Lombroso
(1835-1909), considerado o fundador da Escola Positiva do Direito Penal,
a quem restou ligado por boa parte da vida.
Ferri foi
professor de muitíssimo sucesso, desde pelo menos 1884 e até o fim da
sua vida, tendo ensinado direito penal nas universidades de Bolonha,
Siena, Pisa e Roma “La Sapienza”, entre outras. Ministrou conferências
Europa afora e chegou a fazer o mesmo, no primeiro decênio do século
passado, na nossa América Latina. Foi advogado criminalista de enorme
prestígio. Daí entrou na política, foi deputado por vários mandatos,
militando à esquerda e no Partido Socialista italiano. Escreveu
copiosamente no jornal “Avanti!”, órgão oficial do Partido. Por essa
época, foi encarregado de reformar, como presidente de comissão criada
para tanto, as leis penais italianas. No fim da sua vida, curiosamente,
mesmo sem se filiar ao Partido Nacional Fascista, deu apoio a Benito
Mussolini (1883-1945).
A principal obra (essencialmente)
jurídica de Ferri foi, sem dúvida, “Sociologia Criminale”, publicada com
esse nome em 1892, mas que, em sua primeira edição, de 1881, tinha o
longuíssimo título “I Nouvi Orizzonti del Diritto e della Procedura
Penale”. E, entre seus textos, deve também ser destacado “Principi di
Diritto Criminale”, de 1928. Juntamente com o já citado Cesare Lombroso e
com Raffaele Garofalo (1851-1934), Ferri formou a grande tríade da
chamada Escola Positiva do Direito Penal. E, como anota Paulo Jorge de
Lima em “Dicionário de filosofia do direito” (Sugestões Literárias S.A.,
1968), ele foi o representante máximo dessa escola, “sistematizando-a e
transformando-a em um campo de vastos estudos sobre a pessoa e os
caracteres do delinquente, as causas biológicas, sociais e psicológicas
da prática de crimes e dos métodos de prevenção e repressão da
criminalidade”.
Mas não é bem sobre isso – a rica trajetória
política ou as cientificidades da obra criminológica de Enrico Ferri –
que eu quero falar hoje. Quero apenas destacar e sugerir a leitura de um
livro de Ferri que caiu em minhas mãos inusitadamente: “Os criminosos
na arte e na literatura”, publicado entre nós por Ricardo Lenz Editor
(de Porto Alegre/RS), em 2001. Por mais estranho que pareça, embora seja
um livro em português, traduzido e editado no Brasil, adquiri o dito
cujo em uma livraria jurídica de Buenos Aires, uma daquelas que ficam
perto da região de “Tribunales”. O porquê de estar ali à venda, eu não
sei. Apenas peguei e paguei. E me encantei.
Em “Os criminosos
na arte e na literatura”, Enrico Ferri trata, além do que ele chamou de
“os criminosos nas artes decorativas”, de várias peças e romances de
gente como William Shakespeare (1564-1616), Friedrich Schiller
(1759-1805), Émile Gaboriau (1832-1873), Victor Hugo (1802-1885), Émile
Zola (1840-1902), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Leon Tolstói
(1828-1910), Henrik Ibsen (1828-1906) e Gabrielle D’Annuzio (1863-1938),
entre outros, escritores que, pelo menos alguns deles, já foram objeto
do nosso interesse por aqui.
Na verdade, os crimes e os
criminosos – e, por íntima relação, o direito – têm fornecido um vasto e
rico material à arte e, em especial, à literatura. Como afirma o
próprio Ferri, a “arte, esse reflexo irisado da vida, não poderia, mesmo
desde as suas primeiras e mais instintivas manifestações, negligenciar o
estudo das inumeráveis metamorfoses do crime e da alma criminal na
sociedade; não poderia ignorar o frisson passional que, em presença do
delito, subleva, na multidão, uma emoção vaga, incessantemente ampliada e
atenuada na medida de sua amplitude – ou que provoca, na consciência do
artista, a representação subjetiva de personagens misturados aos dramas
da fraude artificiosa ou da violência sanguinária”.
De minha
parte, neste momento, estou saboreando o capítulo dedicado ao francês
Émile Gaboriau, apontado por Ferri como “o inventor de um certo gênero
de romances judiciários, muito imitados depois, e muito em moda há
alguns anos”, nos quais a figura do criminoso é muitas vezes eclipsada,
dando-se protagonismo ao policial arguto e genial ou mesmo a uma
complicada instrução judiciária na qual, em meio a uma equivocada
acusação a um inocente, se procura descobrir o verdadeiro culpado. Era
prato cheio para os folhetins da época. E, mesmo hoje, eu adoro esse
tipo de estória. Acho-as intrigantes e viciantes.
Bom, eu estou
realmente adorando “Os criminosos na arte e na literatura”. E acredito
que, em pleno verão, quando as coisas de trabalho param um pouco, você
também iria gostar. Afinal, como dito no prefácio à sua edição
brasileira, ele é um livro que “transcende ao [monótono] universo dos
especialistas em matéria penal, interessando, sem dúvidas, aos cultores
das artes e da literatura”.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP