17/10/2018



O TEMPO E O SENSO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Nos dias de hoje, o ânimo de viver nos torna inconstante e nos empurra para buscas ávidas de expressão, imaginação e criatividade. O próprio Luís da Câmara Cascudo, no passado, apesar de um ser simples, foi uma figura numerosa, pois escreveu sobre tudo e sobre todos. Conheço muitos escritores conterrâneos que detêm idêntica curiosidade inesgotável e volubilidade inventiva contagiadas pelas ideias, gostos e poder aliciante do charme da escrita cascudiana. E nesse particular, todos foram largamente influenciados pelo desejo insofreável de ressurreição do tempo morto, pela inestimável compreensão da alma coletiva das gerações passadas que se encontram como que cristalizadas em todos nós.
São as nossas afinidades eletivas fincadas na íntima, nostálgica página evocativa que romantiza a realidade ou, às vezes, a fantasia. Daí, não me encantar tanto com os procedimentos rotulados de culturais pela mídia eletrônica e certos gestores públicos. Não é a compulsão de recapturar o antigo só por ser antigo. O que desejamos, penso, é respirar o oxigênio cultural que foi dotado de um poder de radiação imanente, que se manteve vivo, apesar do efeito paulatino, paradoxal e destrutivo de uma “cultura de aparências”, fóssil e fútil, atualmente em alto astral! O crítico Paulo Prado chegou a afirmar no seu livro Retrato do Brasil que a proliferação desse contraditório “representava a astenia da raça, o vício de nossas origens mestiças”. Nada mais verdadeiro e impiedoso.
A cultura se transformou num circo mambembe de vaidades ressentidas, perdida nas suas cismas e inseguranças, desde o tempo em que o Ministério da Cultura tornou-se serpentário de figuras exóticas e estereotipadas. No Rio Grande do Norte, por exemplo, está na hora do futuro governador reunir os órgãos de cultura do estado: Academia Norte-riograndense de Letras, Conselho de Cultura, Instituto Histórico e mais ensaístas, poetas, historiadores, sociólogos e críticos literários para ouvir sugestões dessa atividade tão pluralista e significativa da sociedade, porém, totalmente esquecida e somente lembrada para eventos passageiros. Nas vésperas, por exemplo, do governo contrair um vultoso empréstimo internacional, as entidades culturais não foram ouvidas para discutir e identificar os seus problemas estruturais.
É com profunda lástima que vemos as edificações, casarões e monumentos que representam o vasto painel da dramática criação de uma sociedade civil de cem e de duzentos anos passados se encontrarem em estado de deterioração. Lembremo-nos que o “passado não passa”. A beleza plástica dos casarões, o teor emotivo e sentimental que retrata a abordagem lírica de épocas imemoriais, em qualquer país civilizado, nunca foram substituídos por folguedos e fanfarras. A preservação do patrimônio histórico e artístico do Rio Grande do Norte precisa de maior atenção e acuidade perceptiva dos governos. Como na Trindade Santa, o passado, o presente e o futuro se entrelaçam na mesma realidade temporal. São três tempos distintos numa só integridade temporal; amalgamados de ideias e inteiriços. Que esse cabedal seja intenção e deliberação permanentes dos órgãos de cultura do estado. Vamos aguardar.
(*) Escritor

16/10/2018



Viajando com a amiga (III)

Agatha Christie (1890-1976) ganhou o mundo. Com suas estórias, traduzidas para um sem-número de línguas, chegando a todas as partes do planeta. E, também, para o nosso deleite, em suas estórias. Como já dito aqui, se sua Miss Marple, mais provinciana, esteve uma vez de férias no Caribe, o seu Hercule Poirot, com meios e recursos para tanto, andou muito mais longe: nos Bálcãs, em Istambul, na Mesopotâmia, no Egito e por aí vai.
Na verdade, a própria vida de Agatha Christie sob esse aspecto é bastante peculiar. Se hoje, com os preços mais acessíveis das passagens áreas, estamos acostumados com a ideia de visitarmos outras culturas, no tempo de Christie, sobretudo nos seus anos de formação, não era assim. A futura Rainha do Crime, entretanto, desde cedo, viajou muito. E para bem longe.
Como bem relata Martin Fido, em “The World of Agatha Christie: the Facts and Fiction behind the Word’s of Greatest Crime Writer” (Editora SevenOaks, 2010), “a variedade de experiências de viagem de Agatha Christie era realmente incompreensível para a sua geração. França, Alemanha, Cairo. Ainda antes de se casar, ela já tinha viajado aquilo que seus contemporâneos só teriam alcançado em uma vida inteira. Aos Pirineus com Archie [Archibald Christie, 1889-1962, seu primeiro marido]. Pelas colônias e pelos domínios onde o sol nunca se punha com o Major Belcher [1871-1949, líder do ‘Grand Tour’ realizado para promover a ‘British Empire Exhibition’ nos anos 1920]. A inesquecível viagem no Expresso do Oriente, a partir da qual o Oriente Médio tornou-se um território familiar. Lua de mel com Max Mallowan [1904-1978, o grande arqueólogo e seu segundo marido] em Veneza, na Iugoslávia e na Grécia. Férias na Alemanha, na Áustria, na Suíça. Visitas à Índia, ao Paquistão e ao Ceilão. No fim da vida, a muito almejada e tanto adiada viagem às Índias Ocidentais”.
Muitíssimo disso, claro, foi transposto para os seus romances.
De minha parte, de uma variada lista, destaco três títulos nos quais essas “andanças” da minha amiga por outras culturas nos encantam quase tanto quanto a trama detetivesca em si: “Murder on the Orient Express” (“Assassinato no Expresso do Oriente”, 1934), “Murder in Mesopotamia” (“Morte na Mesopotâmia”, 1936) e “Death on the Nile” (“Morte no Nilo”, 1937). Os três títulos, não coincidentemente, são protagonizados pelo inconfundível Hercule Poirot. E esses títulos, também não coincidentemente, estão relacionados, com algumas alusões recíprocas, como veremos a seguir.
Por exemplo, em “Murder on the Orient Express” (1934) a estória começa com Poirot na (hoje) triste Alepo, na Síria, para depois chegarmos à maravilhosa Istambul, na Turquia. É dali – da outrora Bizâncio e, depois, Constantinopla – que o nosso detetive toma o famoso Expresso do Oriente. Aliás, nessa jornada, ele está precisamente voltando da sua aventura em “Murder in Mesopotamia”, muito embora, curiosamente, esse título só tenha sido publicado posteriormente, em 1936. O resto da história, como sabemos, se passa na Europa do leste. O famoso trem, devido a uma nevasca noturna, para no meio dos Bálcãs. Na manhã seguinte, um dos passageiros é encontrado morto. O crime, aliás, está relacionado com um sequestro e assassinato acontecido ainda mais longe, nos EUA. O resto da trama, claro, eu não vou contar. Mas já dá para ver quão interessantes eram as viagens da minha amiga.
Já em “Murder in Mesopotamia” (1936), o título já diz tudo. Mais uma vez com Hercule Poirot no comando, a trama é ambientada no Iraque, em meio a uma escavação arqueológica. Aqui, os especialistas não têm dúvida: a inspiração para a ambientação e para as personagens da trama veio da experiência de Christie na escavação da necrópole da antiquíssima (e bote antiga nisso) cidade de Ur, no que hoje é o Iraque. Aliás, foi nessa expedição que a minha amiga conheceu, em meio a outros arqueólogos britânicos, Sir Max Mallowan, que viria a ser o seu segundo marido. Bendita escavação, para ela e para nós. Sim, aqui a trama gira em torno do assassinato da misteriosa (e um tanto paranoica) Louise Leidner, esposa do arqueólogo chefe da expedição. Já ia me esquecendo desse “pequeno” detalhe.
Por derradeiro, temos “Death on the Nile” (1937). O Nilo, não preciso dizer, é o famoso rio que corre pelas terras dos faraós. E aqui, mais uma vez, temos prova da relação entre os três títulos citados, quando Poirot afirma haver aprendido uma das técnicas do seu método de investigação – a remoção de toda matéria estranha para que se possa enxergar a verdade – em uma expedição arqueológica na qual esteve profissionalmente (ou seja, em “Murder in Mesopotamia”). Para mim, “Death on the Nile” é muito mais que excelente. Aliás, não canso de assistir à versão cinematográfica deste romance, de 1978, com direção de John Guillermin (1925-2015). O elenco é simplesmente fantástico: Peter Ustinov, David Niven, Lois Chiles, Jane Birkin, Maggie Smith, Angela Lansbury, Bette Davis, Mia Farrow, George Kennedy e Jack Warden, entre outros. Adoro Peter Ustinov (1921-2004) no papel de Poirot. Não canso de olhar para a beleza bem nascida de Lois Chiles (1947-) no papel da jovem assassinada, a muito invejada Linnet Ridgeway. Afinal, ela tinha tudo: juventude, beleza, dinheiro e até inteligência. Mas talvez isso não seja uma mistura boa. Talvez seja demais para qualquer pessoa.
Definitivamente, a minha Agatha Christie não era uma paroquiana. Nem muito menos uma escritora que “cantou” apenas a sua aldeia. Ela era até uma cosmopolita, muito embora, como descreve o já citado Martin Fido, “numa forma anglocêntrica de ser, que hoje é provavelmente apenas encontrada entre aqueles da carreira diplomática”. Ademais, sem dúvida, suas viagens lhe deram um razoável cabedal de conhecimento em áreas como arqueologia, geografia, histórias clássica e contemporânea e por aí vai, que foi, para o nosso prazer, utilizado em seus inúmeros livros.
Bom, mas como podemos nos aproveitar das andanças de Agatha Christie? Como podemos viajar, por tão diferentes culturas, com a Rainha do Crime?
Eu conheço duas formas. E as duas eu explicarei nas nossas próximas conversas.

Marcelo Alves Dias de Souza

Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

SAUDOSA HISTÓRIA DO INSTITUTO BATISTA DO NATAL

Amigos do IHGRN, tenho a particular alegria de postar esta mensagem, em homenagem ao DIA DO PROFESSOR, que envolve um saudoso, mas venturoso tempo de Natal.

Geovanira Galvão de Lima compartilhou uma publicação no grupo Falando do RN.
Prof. Carlos D Miranda Gomes quem sabe, não estamos nessa foto... É do nosso tempo!

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas e atividades ao ar livre
Junia Pires Falcão

Hino do Instituto Batista de Natal
(Aonde fiz o curso primário)
Ex alunos (as) quem ainda se lembra?


Para frente ò mocidade,
Cheia de fé e bondade.
Avancemos na peleja!
Embora má sorte seja,
Nada nos abaterá.
Cada qual aprenderá
A sofrer com paciência,
De todo mal a inclemência

Serás IBN
Eternamente o nosso bem,
Oh! IBN.
Em nossas almas viverás,
Oh! IBN.
Até a morte e além,
Oh! IBN,
Teu nome ficará.

Disciplina, esforço, estudo,
Pela pátria, tudo, tudo.
Morrer pela pátria é glória.
É fazer parte da história!
Ressuscita cedo ou tarde,
Enquanto o homem covarde
Não terá nome alcançado
E nem terá nome exaltado.

Coro
Em prol do bem e contra o vício
Não poupemos sacrifício.
Ser bom, ser justo e forte ser,
Tenhamos sempre por dever.
Seja o céu o nosso abrigo
E o livro, o melhor amigo,
Vem ser nossa diretriz
Para orgulho do país.


______________

Esta foto me foi enviada há alguns anos pelo saudoso colega CIRO TAVARES. Foi tirada após nosso desfile numa comemoração do DIA DA INDEPENDÊNCIA - 7 de Setembro dos anos 50. Eu estou aí, Ciro também e mais grande quantidade de amigos: Netinho, Ester, Marta, Soriano, Caetano Damasceno, OS PROFESSORES: Pastor Gabino Brelaz, Dona Arquimínia, Izabel, Mirandolina, Iracema....(perdoem outros que me faltam à memória). Com eles e elas HOMENAGEIO  OS MESTRES DE TODOS OS TEMPOS. É uma saudade gostosa essa que nos proporcionaram Geovania e Junia, inclusive com o nosso Hino, o qual ainda sei cantar. O INSTITUTO BATISTA DO NATAL foi construído por missionários da GeórgIa - Estados Unidos, tendo à frente o Dr. TAMBLIN e Dona FRANCISCA. 



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As de Taborda tem
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Heráclito, dona Mariquinha, e a história da cotia: Outrora em Taborda...

Outrora em Taborda
15/10/2018


Por Gustavo Sobral
Heráclito Vilar emproando a palavra, carregava nas letras demorava para dizer a sua Tabouuurrrda, capaz até de tomar eco, tão grande e compridas eram as terras, era a sua Taborda. Lá passava um riacho azul e muita coisa no engenho dele e de dona Marriquinha, sua mulher, que só ele recordando contava, como uma certa vez lá ele estava e rumando para um passeio e uma cutia ele avistou no mato e achou de perseguir.

Outrora em Tabooorrrda sai para andar com um cachorro e levei a espingarda. Quando ia no caminho assustei uma cotia e o cachorro botou atrás. Eu aprumei a espingarda e disparei, meti chumbo do grosso para cima da cutia. E nada, que errei o tiro. E parti atrás. A cutia tome a correr, eu tome a correr atrás, pois a cutia continuou e entrou num buraco que tinha logo mais pela frente, pois lancei a mão e puxei a cotia pelo rabo. Heráclito, e cotia tem rabo? As de Taborda tem.

Para ler esse e outros escritos acesse www.gustavosobral.com.br

15/10/2018


 HOSPITAL PORTA FECHADA – Berilo de Castro

HOSPITAL PORTA FECHADA –
Nesses quase cinquenta anos de atividade médica, acompanhei, presenciei e testemunhei seus grandes avanços, em sua ininterrupta estrada de conquistas científicas. Avanços na área de genética; novas e fantásticas técnicas de diagnósticos; avanços extraordinários na área farmacológica; nos aprimoramentos cirúrgicos; o avanço espetacular nos transplantes de órgãos, mais recentemente a imunoterapia ( Prêmio Nobel – 2018), enfim, uma interminável e benéfica evolução nessa bela e admirável arte de curar.
Por outro lado, é bem notório que todos esses importantes e inquestionáveis avanços não chegam a maioria da população: a pobre, a necessitada. Ficam retidos e são de uso exclusivo das camadas sociais de maior poder aquisitivo.
A saúde pública brasileira, com o seu Sistema Único de Saúde (SUS), belo e eficaz (só no papel), não tem correspondido e, muito mais, só tem piorado na sua aplicação prática – faltou gestão desde o seu nascedouro.
Todos os dias, somos não mais surpreendidos com situações as mais caóticas em os todos os rincões nacionais. O descaso, a indiferença, a ausência dos governos vêm dia a dia ocupando e fazendo mais vítimas nos hospitais públicos.
Hoje, para um cidadão comum conseguir uma simples consulta, um exame de sangue, um exame de imagem, nem pensar! Vai ter que esperar uma infinidade de tempo. Um internamento para uma cirurgia nem pensar. Aí o bicho pega! Entra em uma fila interminável. Quando, já cansado de tanto esperar, chega a sua vez; os exames pré-operatórios realizados já estão caducos, não servem mais. Aí começa tudo outra vez. É uma brincadeira de mal gosto, uma ciranda desumana e cruel.
Os responsáveis administradores públicos, vivenciando a situação, anunciam medidas midiáticas: mutirão disso, mutirão daquilo, revelando a inércia e o não compromisso com a saúde pública: – usando a máxima do “quanto mais, melhor”. Deixa aumentar a fila!
E agora, recentemente, inventaram o que eles denominam – Hospital porta fechada. Que coisa louca! Que horror! O que significa?
“Fechar” a porta do maior e único hospital público de urgências e emergências do Estado. Vamos explicar: em determinado momento (dos mais cruéis), sem aviso prévio, como em um passe de mágica, o maior hospital da região “fecha a sua porta” e passa a escolher os seus pacientes. “Aqui, agora só entra paciente traumatizado e/ou portador de acidente vascular cerebral”. Vejam só o vexame daqueles que necessitam e procuram o Hospital. Chegam ao nosocômio de referência com a certeza do atendimento e são rejeitados; são orientados a procurar uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) mais próxima da sua localidade. Muitos desses doentes já sem nenhuma condição financeira e física de se locomoverem. E mais, são encaminhados para Unidades de Saúde, onde se sabe que não funcionam a contento. São precárias em todos os seus aspectos. Pior ainda para aqueles que vêm do interior do Estado, que são orientados a voltar para seu lugar de origem. Vejam só que confusão e que humilhação! É desumano ou não é?
Entendo que Hospital porta fechada caberia muito bem para situações onde os serviços públicos situados na periferia da cidade funcionassem de verdade; que existisse no Estado, polos regionais de Saúde bem estruturados, onde se realizassem cirurgias de menores portes e riscos, equipados de UTI. Um bom e eficiente serviço de traumatologia e ortopedia. Enfim, com uma competente e fixa equipe médica. Aí, sim, poderíamos muito bem escolher os doentes por tipo de doença e gravidade. Caso contrário, vamos continuar aumentando as nossas intermináveis, sofredoras e cruéis filas de doentes esperando os novos e mais novos mutirões da vida.
Piorou muito para a população pobre, a massa maior do nosso país.
Abram as portas dos hospitais públicos!
Berilo de CastroMédico e Escritor –  berilodecastro@hotmail.com.br
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

14/10/2018

Marcelo Alves

PARTE 2

Viajando com a amiga (II)

Como dito no artigo da semana passada, apesar da “campanha” dos autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries” (publicado pela HarperCollins Publishers/Índia em 2017) em prol de um “turismo literário” em cidadezinhas no condado de Devon e na Riviera Inglesa, os mistérios da Rainha do Crime não se resumiram a essas paragens. Christie “hospedou-se” em balneários e pequenas ilhas. Viajou por outras partes da Inglaterra. Esteve frequentemente em Londres. Na verdade, ela foi até muito mais longe.
Não é difícil constatar isso.
Antes de mais nada, para além das cidadezinhas do tipo St. Mary Mead (a vila fictícia criada para ser o lar de Miss Marple), Christie ambientou seus romances em balneários ou mesmo ilhas “macabras”, que são misturas de sua imaginação fértil com lugares identificáveis na diversificada geografia britânica.
Para exemplificar o que eu estou dizendo, começo citando um dos melhores títulos da Rainha do Crime: “Evil under the Sun” (“Morte na praia”, 1941). A coisa se passa em um hotel situado entre os condados vizinhos de Devon e da Cornualha, no sudoeste da Grã-Bretanha. Entre os hóspedes está a bela Arlena Marshall, que, um dia, aparece morta em uma enseada da região. Lá também se acha Hercule Poirot, que se dispõe, claro, a desvendar o caso. E, como registra Mark Campbell, em “The Pocket Essential Agatha Christie” (publicado pela Pocket Essential em 2005), “vários lugares de Devon aparecem neste livro. Torquay é chamada St. Loo, a ficcional Smuggler’s Island é a Bigbury-on-sea’s Burgh Island (referida de novo em Ten Little Niggers, 1939)” e por aí vai.
Aproveitando o gancho, outro exemplo maravilhoso do que estou falando é “Ten Little Niggers” (“O caso dos dez negrinhos”, 1939), romance sobre o qual, aliás, eu até já escrevi aqui, em “E não se vende uma amiga”, tratando da polêmica envolvendo o seu título. O enredo de “Ten Little Niggers” é mais do que excelente, pelos personagens estereotipados e, sobretudo, pela localização sinistra. Dez pessoas são convidadas para uma estada em uma mansão na ilhota chamada Nigger Island. Os convidados chegam, entusiasmados, em uma tarde de verão. Mas todos têm algo a esconder. “Crimes” que a Justiça dos homens não foi capaz de punir. E logo tudo muda, a começar pela vinda de uma tempestade que os deixa isolados na pequena ilha. Os especialistas não têm dúvida: a ilha de “Ten Little Niggers” não é outra senão a tal Burgh Island, de fato localizada na costa de Devon. De minha parte, pensando bem, acho que não quero conhecer Burgh Island.
Ademais, na obra de Christie, tem-se também cidadezinhas que simplesmente estão localizadas em um lugar qualquer da Inglaterra. Como exemplo, peguemos o caso de King’s Abbott, a cidadezinha retratada por Agatha Christie em “The Murder of Roger Ackroyd” (“O Assassinato de Roger Ackroyd”, 1926), livro que por muitos é considerado o melhor da autora. O final desta trama, de tão engenhosa para com o leitor, é até controversa. Mas claro que não vou contá-lo aqui. Apenas registro que King’s Abbott, não identificada sua localização no livro, pode ser qualquer daquelas pequenas vilas inglesas, onde a vida passa devagar e a fofoca corre rápido.
Aliás, a quantidade de pequenas cidades “criadas” por Agatha Christie é enorme. James Hobbs, no seu blog “Hercule Poirot Central” (www.poirot.us), cita, entre outras: Chipping Cleghorn (“A Murder is Announced”, 1950), Lymstock (“The Moving Finger”, 1942), Much Benham (em várias estórias de Miss Marple), St. Loo (“Peril at End House”, 1932), Woodleigh Common (“Hallowe'en Party”, 1969), Warmsley Vale (“Taken at the Flood”, 1948), Market Basing (em várias estórias de Poirot), Wynchwood (“Murder is Easy”, 1939), Much Deeping (“The Pale Horse”, 1961) e Deering Vale (“The Mysterious Mr. Quin”, 1930). Onde elas estariam localizadas? Confesso a vocês que não tive condições de pesquisar.
Por óbvio, a gigante Londres, com seus incontáveis atrativos, figura em vários títulos da Rainha do Crime. Por exemplo, eu mesmo já citei aqui a estação de trens londrina de Paddington que, de cabeça recordo logo, aparece em ao menos dois excelentes romances de Christie: “The ABC Murders” (“Os Crimes ABC”, 1936) e, claro, até pelo sugestivo título, “4.50 from Paddington” (1957). De cabeça ainda, posso dar um outro típico exemplo de “policial londrino” de Christie com “Lord Edgware Dies” (“A morte de Lorde Edgware” ou “Treze à mesa”, 1933), título que mencionei outro dia aqui. Nesse que é considerado um dos melhores romances escritos por minha amiga, com Hercule Poirot, o Capitão Hastings e o Inspetor Japp à frente das investigações, aparecem vários cenários famosos da capital inglesa, tais como Piccadilly, Covent Garden, Sloane Square, Regent’s Park, Grosvenor Square e o luxuoso Claridge’s Hotel, para ficar, aleatoriamente, em uns poucos exemplos. E, especialmente para os amantes do direito, posso mesmo lembrar uma das peças mais famosas de Christie, “Witness for the Prosecution” (“Testemunha de Acusação”, 1953), em que boa parte dos atos se passa na mítica “Old Bailey”, que é, para quem não sabe, a sede das cortes criminais (centrais) de Londres. Tudo ali bem pertinho da famosa Fleet Street (outrora “a rua” dos jornais londrinos e hoje sinônimo, em forma de metonímia, de “imprensa” na Inglaterra) e da ainda mais famosa St. Paul’s Cathedral, obra-prima de Sir Christopher Wren (1632-1723).
Na verdade, as andanças de Christie por Londres, especialmente em companhia de seu Hercule Poirot, são muitíssimas. Incontáveis mesmo. Afinal, diferentemente de Miss Marple, que é uma senhorinha “local” e detetive amadora, o pequenino e arrogante detetive belga Hercule Poirot é um profissional, com contatos na Scotland Yard e popular em várias tribos da cidade de Londres. E certamente por essa razão, Miss Marple e Poirot, curiosamente, nunca se encontraram em qualquer das muitíssimas estórias imaginadas por minha amiga Agatha Christie.
Por fim e para além disso, também é fato que Agatha Christie e Hercule Poirot ganharam o mundo. Se Miss Marple esteve uma vez de férias no Caribe, Poirot, com meios e recursos para tanto, foi muito mais longe: nos Bálcãs, em Istambul, na Mesopotâmia, no Egito e por aí vai. Mas sobre essas andanças, nessas diferentes culturas, nós só conversaremos no artigo da semana que vem.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

13/10/2018

PARTE 1
Vai texto de artigo publicado domingo retrasado, dia 30 de setembro de 2018, no jornal Tribuna do Norte (de Natal/RN):
Viajando com a amiga (I)

É fato: nos romances da minha amiga Agatha Christie (1890-1976), nós somos “convidados” a desvendar um crime. Seguimos os passos e o raciocínio do seu Hercule Poirot ou da sua Miss Marple, através de um jogo de pistas e charadas, para chegarmos a um final, quase sempre, surpreendente. O mistério por detrás do crime é, com certeza, o mais importante para o sucesso da estória.
É algo bem diferente do que se dá com os policiais noir americanos, de gente como Raymond Chandler (1888-1959) e Dashiell Hammett (1894-1961), que nos apresentam um mundo estranho de dinheiro farto, casamentos falidos, destruição pelo álcool, fêmeas fatais e assassinatos, misturado a um aparelho policial e judicial corrupto, que é enfrentado pelos seus detetives durões. Nos policiais noir, para o sucesso da coisa, o ambiente no qual estão inseridas as personagens é tão ou mais importante do que a trama/mistério em si.
Entretanto, por mais paradoxal que seja – já que o ambiente onde se passa a estória, em Agatha Christie, é bem menos importante que o mistério por detrás do crime –, para mim, uma das coisas mais gostosas de se fazer, na companhia da Rainha do Crime, é “viajar” nos seus romances.
Explico: em regra, o ambiente das estórias de Agatha Christie é muito “saudável” e turístico. São casas de campo em cidadezinhas da Inglaterra, balneários na sua “Riviera”, a alta sociedade londrina ou mesmo o outrora pitoresco Oriente Médio. E o turista, literário ou não, pelo menos aquele “bom da bola”, gosta de viajar para lugares pitorescos, mas que sejam também saudáveis e razoavelmente seguros.
É o que também pensam os autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries” (publicado pela HarperCollins Publishers/Índia em 2017), que, mandando esquecer o Nilo ou o Expresso do Oriente (aqui eu discordo), recomendam vários sítios para se visitar, a partir das estórias da Rainha do Crime, no sul do belo condado inglês de Devon ou mesmo na chamada Riviera inglesa.
De fato, muitas das cidadezinhas inglesas retratadas por Agatha Christie são visivelmente inspiradas na sua cidade natal, Torquay, que, às margens do Canal da Mancha, em Devonshire, com seu clima ameno, é um destino certo para os fãs da nossa amiga. O exemplo mais visível disso é St. Mary Mead, a pequena vila fictícia criada por Christie como lar da sua famosa detetive, uma senhorinha solteirona, batizada de Miss Marple. St. Mary Mead aparece já em “The Murder at the Vicarage” (“Assassinato na casa do pastor”, 1930), o primeiro caso da querida Miss Marple, assim como em “The Body in the Library” (“Um Corpo na Biblioteca”, 1942), também protagonizado pela detetive e que, de tão bom, eu recomendo sem pestanejar. O mesmo se dá em “The Mirror Crack’d from Side to Side” (“A maldição do espelho”, 1962), sem dúvida um dos maiores sucessos de Agatha Christie. Neste romance, não coincidentemente, o crime a ser desvendado é praticado em Gossington Hall, antiga residência de Dolly Bantry, amiga de Miss Marple, a mesma mansão em St. Mary Mead onde, alguns anos antes, foi encontrado o cadáver no já citado “The Body in the Library”. Desde já eu asseguro: a trama de “The Mirror Crack’d from Side to Side”, parcialmente inspirada na trágica história da atriz americana Gene Tierney (1920-1991), é simplesmente fantástica. Por fim, na fictícia St. Mary Mead também se passa “Sleeping Murder” (“Um crime adormecido”, 1976), o último romance publicado por Christie com Miss Marple “no comando” das investigações. E aqui, para se ter uma ideia, o Hotel Imperial da trama não é outro senão o famoso Hotel Imperial de Torquay, no qual, um dia, se Deus quiser, fã da Rainha da Crime, eu de fato me hospedarei.
Mas não foi só Miss Marple que andou xeretando por Devon e pela Riviera inglesa. Também ali ambientados, mas com Hercule Poirot no comando das investigações, os autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries” citam, entre outros, o excelente “The ABC Murders” (“Os Crimes ABC”, 1936). Aqui, por exemplo, Poirot e Hastings viajam, de trem, da gigante estação londrina de Paddington para a “Churston Railway Station”, no sul de Devon, que fica não muito longe de onde morou a Rainha do Crime. Dali dão ensejo às suas investigações. Por aquelas bandas ainda se passa outro excelente romance de Christie, também protagonizado por Poirot, que até já mencionei aqui, “Five Little Pigs” (Os cinco porquinhos”, 1942). É seguro dizer que o local em que é assassinado o pintor e hedonista Amyas Crale não é outro senão a famosa Greenway House, a casa adquirida por Christie em 1938, perto de Dartmouth e às margens do rio Dart, onde ela viveu idilicamente até o explodir da Segunda Guerra Mundial. Greenway House, aliás, aparece representada em pelo menos dois outros títulos de Christie: “Dead Man’s Folly” (“A extravagância do morto”, 1956) e “Ordeal by Innocence” (“Punição para a inocência”, 1958).
Por fim, é preciso lembrar que, apesar da “campanha” dos autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries” em prol de Devon e da Riviera Inglesa, os mistérios de Agatha Christie não se resumiram a essas paragens. A Rainha do Crime passou por outras partes da Inglaterra. Esteve frequentemente em Londres. Na verdade, como veremos na semana que vem, ela foi até muito – e ponha muito nisso – mais longe.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP