PARTE 2
Viajando com a amiga (II)
Como dito no artigo da semana passada, apesar da “campanha” dos
autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic
Mysteries” (publicado pela HarperCollins Publishers/Índia em 2017) em
prol de um “turismo literário” em cidadezinhas no condado de Devon e na
Riviera Inglesa, os mistérios da Rainha do Crime não se resumiram a
essas paragens. Christie “hospedou-se” em balneários e pequenas ilhas.
Viajou por outras partes da Inglaterra. Esteve frequentemente em
Londres. Na verdade, ela foi até muito mais longe.
Não é difícil constatar isso.
Antes de mais nada, para além das cidadezinhas do tipo St. Mary Mead
(a vila fictícia criada para ser o lar de Miss Marple), Christie
ambientou seus romances em balneários ou mesmo ilhas “macabras”, que são
misturas de sua imaginação fértil com lugares identificáveis na
diversificada geografia britânica.
Para exemplificar o que eu
estou dizendo, começo citando um dos melhores títulos da Rainha do
Crime: “Evil under the Sun” (“Morte na praia”, 1941). A coisa se passa
em um hotel situado entre os condados vizinhos de Devon e da Cornualha,
no sudoeste da Grã-Bretanha. Entre os hóspedes está a bela Arlena
Marshall, que, um dia, aparece morta em uma enseada da região. Lá também
se acha Hercule Poirot, que se dispõe, claro, a desvendar o caso. E,
como registra Mark Campbell, em “The Pocket Essential Agatha Christie”
(publicado pela Pocket Essential em 2005), “vários lugares de Devon
aparecem neste livro. Torquay é chamada St. Loo, a ficcional Smuggler’s
Island é a Bigbury-on-sea’s Burgh Island (referida de novo em Ten Little
Niggers, 1939)” e por aí vai.
Aproveitando o gancho, outro
exemplo maravilhoso do que estou falando é “Ten Little Niggers” (“O caso
dos dez negrinhos”, 1939), romance sobre o qual, aliás, eu até já
escrevi aqui, em “E não se vende uma amiga”, tratando da polêmica
envolvendo o seu título. O enredo de “Ten Little Niggers” é mais do que
excelente, pelos personagens estereotipados e, sobretudo, pela
localização sinistra. Dez pessoas são convidadas para uma estada em uma
mansão na ilhota chamada Nigger Island. Os convidados chegam,
entusiasmados, em uma tarde de verão. Mas todos têm algo a esconder.
“Crimes” que a Justiça dos homens não foi capaz de punir. E logo tudo
muda, a começar pela vinda de uma tempestade que os deixa isolados na
pequena ilha. Os especialistas não têm dúvida: a ilha de “Ten Little
Niggers” não é outra senão a tal Burgh Island, de fato localizada na
costa de Devon. De minha parte, pensando bem, acho que não quero
conhecer Burgh Island.
Ademais, na obra de Christie, tem-se
também cidadezinhas que simplesmente estão localizadas em um lugar
qualquer da Inglaterra. Como exemplo, peguemos o caso de King’s Abbott, a
cidadezinha retratada por Agatha Christie em “The Murder of Roger
Ackroyd” (“O Assassinato de Roger Ackroyd”, 1926), livro que por muitos é
considerado o melhor da autora. O final desta trama, de tão engenhosa
para com o leitor, é até controversa. Mas claro que não vou contá-lo
aqui. Apenas registro que King’s Abbott, não identificada sua
localização no livro, pode ser qualquer daquelas pequenas vilas
inglesas, onde a vida passa devagar e a fofoca corre rápido.
Aliás, a quantidade de pequenas cidades “criadas” por Agatha Christie é
enorme. James Hobbs, no seu blog “Hercule Poirot Central” (www.poirot.us),
cita, entre outras: Chipping Cleghorn (“A Murder is Announced”, 1950),
Lymstock (“The Moving Finger”, 1942), Much Benham (em várias estórias de
Miss Marple), St. Loo (“Peril at End House”, 1932), Woodleigh Common
(“Hallowe'en Party”, 1969), Warmsley Vale (“Taken at the Flood”, 1948),
Market Basing (em várias estórias de Poirot), Wynchwood (“Murder is
Easy”, 1939), Much Deeping (“The Pale Horse”, 1961) e Deering Vale (“The
Mysterious Mr. Quin”, 1930). Onde elas estariam localizadas? Confesso a
vocês que não tive condições de pesquisar.
Por óbvio, a gigante
Londres, com seus incontáveis atrativos, figura em vários títulos da
Rainha do Crime. Por exemplo, eu mesmo já citei aqui a estação de trens
londrina de Paddington que, de cabeça recordo logo, aparece em ao menos
dois excelentes romances de Christie: “The ABC Murders” (“Os Crimes
ABC”, 1936) e, claro, até pelo sugestivo título, “4.50 from Paddington”
(1957). De cabeça ainda, posso dar um outro típico exemplo de “policial
londrino” de Christie com “Lord Edgware Dies” (“A morte de Lorde
Edgware” ou “Treze à mesa”, 1933), título que mencionei outro dia aqui.
Nesse que é considerado um dos melhores romances escritos por minha
amiga, com Hercule Poirot, o Capitão Hastings e o Inspetor Japp à frente
das investigações, aparecem vários cenários famosos da capital inglesa,
tais como Piccadilly, Covent Garden, Sloane Square, Regent’s Park,
Grosvenor Square e o luxuoso Claridge’s Hotel, para ficar,
aleatoriamente, em uns poucos exemplos. E, especialmente para os amantes
do direito, posso mesmo lembrar uma das peças mais famosas de Christie,
“Witness for the Prosecution” (“Testemunha de Acusação”, 1953), em que
boa parte dos atos se passa na mítica “Old Bailey”, que é, para quem não
sabe, a sede das cortes criminais (centrais) de Londres. Tudo ali bem
pertinho da famosa Fleet Street (outrora “a rua” dos jornais londrinos e
hoje sinônimo, em forma de metonímia, de “imprensa” na Inglaterra) e da
ainda mais famosa St. Paul’s Cathedral, obra-prima de Sir Christopher
Wren (1632-1723).
Na verdade, as andanças de Christie por
Londres, especialmente em companhia de seu Hercule Poirot, são
muitíssimas. Incontáveis mesmo. Afinal, diferentemente de Miss Marple,
que é uma senhorinha “local” e detetive amadora, o pequenino e arrogante
detetive belga Hercule Poirot é um profissional, com contatos na
Scotland Yard e popular em várias tribos da cidade de Londres. E
certamente por essa razão, Miss Marple e Poirot, curiosamente, nunca se
encontraram em qualquer das muitíssimas estórias imaginadas por minha
amiga Agatha Christie.
Por fim e para além disso, também é fato
que Agatha Christie e Hercule Poirot ganharam o mundo. Se Miss Marple
esteve uma vez de férias no Caribe, Poirot, com meios e recursos para
tanto, foi muito mais longe: nos Bálcãs, em Istambul, na Mesopotâmia, no
Egito e por aí vai. Mas sobre essas andanças, nessas diferentes
culturas, nós só conversaremos no artigo da semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP