Imitando a arte
No artigo semana passada, afirmei ser comum na ficção policial que a
“arte imite a vida”, dando, como exemplo, a minha amiga Agatha Christie
(1890-1976), que, para escrever algumas das suas mais badaladas obras –
e citei os casos de “Murder on the Orient Express” (1934) e “The
Mousetrap” (1952) –, teve por inspiração, ao menos como pano de fundo
dos seus enredos, crimes de fato ocorridos.
Mas e o contrário – “A vida imitando a arte” – também se dá? Às
vezes acontece, reconheço. E posso dizer que, para o caso dos romances
policiais, “infelizmente”.
Tomemos mais uma vez o exemplo de Agatha Christie. Como lembrado em
“Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries”
(publicado pela HarperCollins Publishers/Índia em 2017): “Os assassinos
da Rainha do Crime frequentemente usaram venenos para despachar suas
vítimas. A expertise de Christie nessa área, adquirida durante a
Primeira Guerra Mundial, quando trabalhou em uma farmácia de hospital,
capacitou-a para escrever sobre venenos com uma autoridade e um realismo
que mais tarde levaria a resultados não previstos. E um romance em
particular, ‘The Pale Horse’ [‘O cavalo amarelo’, entre nós], de 1961,
aparece relacionado a genuínas situações de vida e morte nos anos
seguintes. Em algumas situações, credita-se a seus livros terem salvado
vidas, mas também alega-se terem eles influenciado um ou dois
assassinatos...”.
Certamente, o que pode ser usado para o bem, pode ser também mal
usado criminalmente. De fato, parece haver casos de homicídios que foram
praticados inspirados nos romances de Christie. O uso de substâncias
venenosas ganha aqui destaque, já que se conta em mais de 80 as
personagens que morreram envenenadas em seus livros. Suas descrições
nessa temática, sobre o uso e os efeitos dessas toxinas, é
universalmente considerado como acurado. E das páginas de seus romances
para a vida, algumas coisas deram um salto, por ela, sem dúvida,
indesejado.
Como também registrado em “Agatha Christie: Shocking Real Murders
behind her Classic Mysteries”, foi a sua descrição, em ‘The Pale Horse’,
de uma substância até então pouco conhecida, o tálio, que “realmente
parece haver atentado a imaginação de muitos leitores. O tálio é um sal
incolor e insípido que Christie utilizou nesta estória sobre assassinos
profissionais que se utilizam de falsas cerimônias de magia negra para
encobrir os reais efeitos de um envenenamento. Os sintomas de
envenenamento por tálio incluem queda de cabelo, letargia, sonolência,
desmaios e fala arrastada, todos perfeitamente descritos em ‘The Pale
Horse’. É a droga perfeita para um pretenso assassino, uma vez que ela é
difícil de detectar e seus sintomas são facilmente confundidos com
outras enfermidades”.
Na vida real, o caso de Graham Frederick Young foi o mais
emblemático. Nascido em Londres em 1947, sua mãe morreu quando ele tinha
ainda alguns meses. Foi criado pelo pai e pela nova esposa deste, que
ele detestava. Com pouco mais de onze anos, ele passou a envenenar a
família, entre eles a madrasta e a irmã. A madrasta faleceu,
consequência do envenenamento, em 1962. Young passou nove anos preso sob
medida de segurança. Foi solto, supostamente curado de sua
‘insanidade’. Conseguiu emprego. Mas envenenou também os colegas de
trabalho. Dois morreram. Um verdadeiro escândalo judicial. Foi novamente
preso em 1971. Com ele, no momento da prisão e também em sua casa, foi
achado o tal tálio. Também foram achadas detalhadas anotações das doses
de veneno que ele havia administrado. Segundo Young, essas anotações não
passavam de ficção para um novo romance. Young faleceu na cadeia, em
1990.
E “The Pale Horse” continuou a inspirar envenenamentos. Por exemplo,
em 2005, uma estudante japonesa de apenas 16 anos foi acusada de
envenenar a própria mãe. Como anotado em “Agatha Christie: Shocking Real
Murders behind her Classic Mysteries”, a estudante “havia lido um livro
sobre os crimes de Graham Young e assistido a um filme, ‘The Young
Poisoner’s Handbook’, de 1995, ligeiramente baseado na vida deste. Ela
aparentemente também havia lido ‘The Pale Horse’, sobre o qual ela falou
em seu blog”. Trágico também foi o caso de George Trepal. Residente na
Flórida, Trepal era um garoto que gostava de organizar eventos sobre
ficção policial para a sucursal da “Mensa Internacional”, a mais antiga,
maior e mais famosa sociedade de “alto QI” do planeta. Todavia, em
1988, Trepal “praticou um envenenamento real em seus vizinhos, Pye e
Peggy Carr e seus filhos. Ele pôs tálio nas garrafas de coca cola dos
vizinhos. Peggy morreu, e o júri formado para o julgamento de Trepal,
que o considerou culpado, votou pela pena de morte. Na casa de Trepal,
foi encontrada uma cópia de ‘The Pale Horse’”.
Mas não apenas “The Pale Horse” inspirou esses crimes horrendos. Na
véspera do Natal de 1977, em Créances, na França, Roland Roussel, com 58
anos à época, decidiu envenenar seus velhos tios. A tia, após dias em
coma no hospital, escapou. Mas o tio já foi encontrado morto. Uma
garrafa de vinho, presente do sobrinho, estava envenenada: atropina
(comumente usada na oftalmologia). Na busca e apreensão no apartamento
de Roussel, acharam remédios e venenos. Acharam também jornais e
revistas tratando de toxinas. E ali encontravam-se, também, vários
escritos de Agatha Christie, entre eles um conto chamado “The Thumb Mark
of St. Peter”, no qual se usa, não preciso dizer para o quê, a tal
atropina. Várias passagens desse conto, relativas à toxina utilizada,
estavam sublinhadas.
Bom, de minha parte, espero que esse tipo de coisa – mistura de
loucura com maldade – não mais se repita. Mas também espero, neste mundo
maluco de hoje, em que muitos procuram culpados para os seus próprios
erros, que não queiram processar minha amiga Agatha Christie. Ela não
tem nenhuma responsabilidade por essas sandices. Ela apenas escrevia
ficção.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP