18/05/2018



              Marcelo Alves



Crimes econômicos (I) 

Atualmente, uma das grandes preocupações do direito e das autoridades brasileiras, sobretudo daquelas verdadeiramente preocupadas com o futuro do nosso país, é a investigação e a persecução penal da nossa velha conhecida “corrupção” e dos denominados “crimes econômicos”. Aceitando “impositivo” convite do meu amigo Ivan Lira, fui escalado para falar sobre essa temática no seminário “Inserções do direito penal econômico no quadro jurídico atual” do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN (dia 25 de maio próximo, às 9 da matina, se querem saber data e hora). O título dado à minha palestra é até pomposo: “Modernas técnicas de investigação dos crimes econômicos e as garantias constitucionais dos cidadãos e das empresas”. Meu amigo Ivan, mesmo contra minha vontade, sempre me arruma umas dessas. 

Para preparar a minha fala, a primeira questão com que me deparei foi: que danado são crimes econômicos? Em outras palavras, quais crimes podem ser qualificados de “econômicos”? 

Antes de mais nada, temos uma primeira conceituação de crimes econômicos que tem por referência o sujeito ativo do crime: os crimes econômicos, com base nessa referência, seriam os denominados “crimes de colarinho branco”. Para quem não sabe, devemos a origem dessa conceituação ao sociólogo e criminologista americano Edwin Hardin Sutherland (1883-1950) e, especialmente, à sua obra “White Collar Crime”, publicada em 1949. Segundo Sutherland, o delito de colarinho branco pode ser definido, basicamente, como um delito cometido por uma pessoa de respeitabilidade e alto status social no exercício de sua ocupação habitual. E daí decorreria, a contrário senso, que o crime de colarinho branco não poderia ter como sujeito ativo um integrante das classes ditas populares. Sem dúvida, Sutherland teve um grande mérito: o de chamar a atenção para um outro tipo de criminalidade – os tais “crimes de colarinho branco” – que não eram pensados, muito menos estudados, como crimes, àquela época. Ademais, ele rompeu com uma tradição que defendia estar a criminalidade associada à pobreza ou a patologias sociais ou pessoais. Pessoas de padrão socioeconômico elevado também praticavam crimes, deixou-se claro; crimes não são “privilégios” só dos pobres. Entretanto, embora os estudos de Sutherland tenham sido importantes para o estudo do tipo de criminalidade de que ora tratamos, é evidente que esse tipo de conceituação esbarra em dois problemas claros: (i) nem todos os crimes econômicos são praticados por pessoas social e economicamente favorecidas, sendo perfeitamente factível que um sujeito ativo desse tipo de crime não possua tal condição; (ii) pessoas social e economicamente privilegiadas podem cometer qualquer tipo de crime, inclusive os considerados “não econômicos”. 

Doutra banda, a delimitação do que são crimes econômicos pode também ser realizada a partir de um ponto de vista estritamente formal, com base na simples definição legal de um crime como tal. Já que o princípio da legalidade (ou da reserva legal, como querem alguns) – disposto no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal e no artigo 1º do Código Penal – afirma que “nullum crimen, nulla poena sine lege”, essa lei necessária, em algum momento, deve afirmar (ou mesmo sugerir) o pertencimento da conduta/crime ao ramo direito penal econômico. Seria certamente o caso, por exemplo, de uma penca de crimes que temos contra o sistema financeiro nacional (Lei nº 7.492/86). Mas aqui também não se está imune a críticas. É evidente que uma definição por intermédio da legislação é de grande valia para uma melhor sistematização e uma maior precisão do que sejam os crimes econômicos. Todavia, mesmo pressupondo uma boa técnica legislativa (que frequentemente não é o caso do Brasil), a conceituação baseada nesse critério legal padece de um simples mas sério problema: alguns delitos, essencialmente econômicos, por opção ou esquecimento legislativo, podem ficar fora do alcance dessa conceituação estritamente legal. Basta que a lei, formalmente, os classifique diferentemente. 

Ao que tudo indica, trabalhar com um conceito material de crimes econômicos, partindo da ideia do bem jurídico tutelado pelo direito penal econômico, é a melhor opção. Partindo deste novo referencial, os crimes econômicos seriam aqueles que visam proteger (com a sanção prevista para a prática da conduta, evidentemente) a ordem econômica planejada, regulada e controlada pelo Estado soberano. Em outras palavras, (visam proteger) as estratégias e opções adotadas pelo Estado para conduzir a economia. Essa ordem econômica, registre-se, deve ser enxergada tanto sob o ponto de vista jurídico como pelo prisma econômico. Numa interdisciplinariedade com o direito, é a macroeconomia, planejada e conduzida pelo Estado, que aponta as atividades que necessitam de uma tutela especial, no caso penal. Assim, tecnicamente (ou restritivamente), os tipos penais que visam proteger direitos individuais econômicos – como uma penca de crimes contra o patrimônio que temos em nosso Código Penal, a exemplo do furto (art. 155 do CP) e do roubo – não devem ser considerados como crimes econômicos, mesmo que, no caso concreto, tenham uma repercussão coletiva. Há de haver um plus que vá além do individual (ou mesmo “social”) econômico. Algo macroeconômico, relacionado à tal ordem econômica, aqui entendida como o planejamento e a organização econômica da vida em sociedade. Decorre daí um conceito material restritivo de crimes econômicos. Acuradamente proposto por Andrei Zenkner Schmidt (no texto “A delimitação do direito penal econômico a partir do objeto do ilícito”, que faz parte da coletânea “Direito Penal Econômico: Crimes Financeiros e Correlatos”, publicada pela Saraiva em 2011), os crimes econômicos seriam, assim, os ilícitos penais relacionados à proteção supra-individual dos valores dessa ordem econômica: leia-se aqui a política econômica “strictu sensu” e as políticas de rendas, monetária, fiscal e cambial, que o Estado resolveu, especial e penalmente, também proteger. 

Bom, e no direito brasileiro, tomando como base esse conceito material de crimes econômicos, quais seriam então os tipos penais, previstos expressamente em nossa legislação (lembremos: “nullum crimen, nulla poena sine lege”), que poderíamos classificar como econômicos? Aqui rogo um tiquinho de paciência. Por falta de espaço, a resposta a isso eu só darei na semana que vem. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

17/05/2018


Seu Joca



Por Gustavo Sobral

O vale dividia distâncias que só ali se mediam. O verde da cana imperava absoluto, confundia propriedades. Coisas de herança, inventários, posses, limites, registros, carimbos e até desavenças. Seu Joca, tinha por herança. Do partido popular do governador José Augusto, os jornais lia todos e preferia A República. Paletó sem gravata, relógio na algibeira e uma pistola de dois tiros, uma bengala e puxava uma perna. E montava. Barba branca e comprida, escovada todo santo dia. Feito o imperador Pedro II, nunca aparou. Olhos bem azuis e miúdos, passados para Manuel, Jacob e Adelaide.

Do tipo calado atravessava uma légua rumando do engenho a Ceará-Mirim. Não perdia missa de domingo, o cavalo alazão baixeiro todo não concedia atraso. Levantava quatro horas da madrugada para tratar do canavial e do gado. Viajou ao Norte para resgatar a irmã, de lá trouxe manga Mariti para plantar. Lia a Bíblia e aplicava sermão invocando as parábolas lá escritas. O pai português teve as terras que vão de Ilha Bela a Timbó. Joca fez engenho e rua de casas que pôs o nome Guarani. No começo, moagem da cana por obra de umas bestas na almajarra, animais que criava lá por Baixa Verde junto a um gadinho pouco. Começava a moer em agosto o açúcar entregue a Tiburtino Bezerra que negociava para a Inglaterra. O transporte em lombo de animal até Igapó, ali de canoa pelo Potengi até os armazéns da Ribeira.


16/05/2018

 DIRÃ – Berilo de Castro

DIRÃ –
Nas décadas de 1960/70, o futebol do interior do Estado teve o seu apogeu. Um futebol muito respeitado, com boas  e fortes equipes. Diga-se, a região do Seridó: Caicó, Currais Novos, Parelhas; na região agreste: o bom time do Nova Cruz;  Santa Cruz, Baixa Verde (João Câmara), Monte Alegre.
Nessa época, o bom time de Currais Novos tinha um excelente jogador que atuava no meio de campo. Jogador expressivo, meia avançado, que jogaria em qualquer time da região do Sudeste.
Seu nome: Dirã. Bonito título. O seu belo futebol contrastava com a seu biotipo: de baixa estatura, cabeça chata, olhos repuxados, boca larga, lábios finos, dentadura destrambelhada, pele morena acinzentada, cabelos pretos e  ralos.
O bom time de Currais Novos tinha marcado um  importante jogo contra a forte equipe do Corinthians de Caicó. Jogo que definiria a liderança do futebol da região. Encontro muito comentado e esperado, pelo fato de ser pela primeira vez acompanhado e transmitido pelas rádios e  por toda  imprensa esportiva  da capital potiguar.
Domingo, casa cheia, — Estádio Coronel José Bezerra, tarde bonita e festiva, de sol forte, na terra da Scheelita.
Jogo iniciado, o time de Currais Novos muito bem em campo, dominando todas as ações. Dirã tomava conta do jogo, com dribles desconcertantes, fazendo tabelas e mais tabelas com outro grande jogador meio-campista Neném de Núbia com sua vasta e bonita cabeleira; passes curtos e rápidos, chamando a atenção de toda a impressa  e  recebendo aplausos da grande torcida curraisnovense.
Final de jogo, ampla, justa e larga vitória do time de Currais. Herói e artilheiro da partida: — Dirã.
Toda a imprensa presente no Estádio correu para entrevistar o craque maior do jogo, o herói  da partida:
— O repórter: Dirã, que beleza de futebol! Você recebeu o Motorádio com louvor e justiça. Impressionante o seu futebol, joga em qualquer time grande do Brasil!
— Dirã, uma curiosidade: você  tem descendência francesa? Ou quem  sabe o seu pai foi prestar uma homenagem ao craque francês Didier Deschamps ou referenciar o  ídolo argentino Di Stefano, que fez história na equipe milionária do Real Madri. Afinal, um nome de craque: Dirã!
— Dirã, na sua simplicidade e timidez interiorana, olhando para o chão, responde:
— Na verdade, desde criança que me chamavam de c. de rã ( anfíbio anuro da família Ranidae); aqueles que me deram essa alcunha afirmam  que eu tenho a cara igualzinha a um c. da rã. Estranho, não? Mas o  que fazer? Quando comecei a jogar futebol, o treinador um tanto preocupado com a estranheza do apelido, me chamou no canto de muro e perguntou como eu gostaria de ser chamado, uma vez que estava me destacando nos jogos e, para ele (o treinador), eu tinha boas chances de progressão no futebol nacional. Continuou, o treinador, do jeito que está é que não pode ficar. Pensei, pensei e disse: vamos tirar o c. e deixar só — de rã — o treinador respondeu afirmativo, fica bem melhor sem o c. e podemos unir o D com o i,  formando Dirã. Uma boa ideia, professor! Fica à altura do seu bom futebol. Um Dirã afrancessado, lembrando e referenciando os grandes craques internacionais.
Dirã saiu sorrindo e feliz!
Berilo de Castro – Médico e Escritor
As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores

15/05/2018




A OUSADIA DE CRIAR

Valério Mesquita*

Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão nasceu em Macaíba, em 02 de outubro de 1872 e faleceu em Angra dos Reis (RJ) no dia 1º de fevereiro de 1944. Um meteoro de luz incandescente, que já aos 20 anos de idade colava grau na Faculdade de Direito do Recife. Ocupou inúmeros cargos: promotor público, secretário de governo, deputado federal por dois mandatos e governador do Rio Grande do Norte, por duas vezes. Intelectual, publicou livros e colaborou com diversas revistas literárias. Fundador do Instituto Histórico e Geográfico do RN, em 29 de março de 1902. Era filho de dona Feliciana e Amaro Barreto de Albuquerque Maranhão. Teve irmãos que também se notabilizaram como ele na história.
De compleição altiva, olhar sobranceiro, Alberto conduzia na palavra e nos gestos toda a obstinação de uma inteligência que escolheu a cultura como altar de sua crença. Naquele limiar do novo século era o homem esculpido, de ritmo inimitável de ascensão para a luz que surpreendeu até o irmão primogênito e líder Pedro Velho. E como primeiro impulso em favor das artes e da literatura, através da Lei 145 de 06 de agosto de 1900, proposta por Henrique Castriciano, estabeleceu a premiação de livros produzidos por autores domiciliados no Rio Grande do Norte. E, logo em seguida, inaugurou o teatro Carlos Gomes, hoje Alberto Maranhão, cuja renda do seu espetáculo inaugural foi revertida em favor dos flagelados da seca que se concentravam em Natal. O seu humanismo e nobreza de caráter alçaram-no à estatura de um Péricles de Atenas, tão expressiva foi a sua afirmação cultural com a obra administrativa que realizou.
No segundo mandato, fundou o Conservatório de Música, o Hospital Juvino Barreto, a Casa de Detenção, além da implantação da luz elétrica e dos bondes em Natal. Sem esquecer, ainda, a criação da Escola Normal e a reforma da educação, bem como, a edificação do Palácio do Governo na Praça 07 de Setembro. Uma visão global da obra de Alberto Maranhão me leva a dizer que ele foi um intelectual arrojado com uma intuição administrativa admirável, ao mesmo tempo que um dirigente operoso com uma visão cultural futurista para o inicio do século vinte. Conseguiu, até os nossos dias, irradiar uma luz tão forte sobre a sua personalidade política, ao ponto de merecer o respeito unânime de várias gerações, eternizado no tempo e no espaço.
Por tudo isso, no dia 04 de outubro de 2005, os restos mortais dele e de sua Inês, por iniciativa da Casa da Memória do Rio Grande do Norte, apoiada pelo Governo do Estado e pelo Conselho Estadual de Cultura foram trasladados para Natal. O homem não passa de uma extensão do espírito do lugar. Tudo se desfaz, menos os elos nativos que o prendem à terra. O homem será sempre prisioneiro de sua origem. Alberto Maranhão foi capaz de compreender o legado dos seus ancestrais e apaixonou-se pela causa pública no firme desiderato de dar glória ao seu Rio Grande do Norte. Nele se resume a dimensão da política no seu sentido aristotélico. Cito Pablo Neruda: “Ele sabia compartilhar conosco o pão e o sonho”. E a ousadia de criar.

(*) Escritor.

08/05/2018



 
   
Marcelo Alves

 


Os humanistas (II)

Como prometido no artigo da semana passada (e costumo cumprir minhas promessas), hoje, para além da biografia dos mestres “humanistas”, trataremos dos principais postulados ou orientações propagadas pela denominada “Escola Culta de Jurisprudência”. E faremos isso com a ajuda, aqui e ali, de Antonio Padoa Schioppa e sua “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea” (edição da WMF Martins Fontes, 2014), que, publicada originalmente em italiano (2007), considero a melhor obra escrita sobre a temática nos últimos anos. 

Antes de mais nada, é importante lembrar que o desabrochar da Escola Culta de Jurisprudência decorre diretamente do panorama cultural europeu de então (séculos XV e XVI, especialmente), marcado pelo humanismo e pelo denominado “Renascimento” e a sua paixão pela Antiguidade Clássica, representada nas culturas grega e romana. A redescoberta de “novos” textos gregos e romanos, o estudo dessa literatura, dessa história, dessa filosofia, fez com que se tentasse imitar, tanto quanto possível, toda sua arte, toda sua técnica. Isso contaminou todas as ciências, inclusive o direito. Inicialmente na Itália (vide o caso de Andrea Alciato) e, em seguida e principalmente, na França, com o incomparável desenvolvimento do “mos gallicus iura docendi” (“modo francês de ensinar o direito”). 

Dentro desse contexto, Antonio Padoa Schioppa ajunta alguns postulados da “Escola Culta de Jurisprudência”. Um dos mais importantes, certamente o mais característico, talvez seja o viés “histórico-filológico” do (futuramente apelidado) “modo francês de estudar o direito”. De fato, desde os tempos de Alciato, às pesquisas de ordem filológica do direito somou-se uma tendência à historização do direito. Nas palavras de Schioppa: “(…) alguns importantes textos pós-clássicos – entre os quais as Pauli Sententiae, o Édito de Teodorico, a Collatio legum mosaicarum et romanarum, a Consultatio veteris cuiusdam iurisconculti – foram redescobertos e editados por Pierre Pithou e por outros estudiosos humanistas. Mas foi, sobretudo, a orientação filológica inaugurada no século XV por Valla e Poliziano que veio a conhecer no século XVI um desenvolvimento notável. Foram organizadas as primeiras edições críticas do Corpus iuris, baseadas no exame de vários manuscritos e publicadas sem o aparato da Glosa arcusiana para que o estudo ficasse mais concentrado no texto antigo”. Esse método histórico-filológico alcançou seu apogeu com Jacques Cujas, que empreendeu exaustivas pesquisas nos textos dos juristas romanos clássicos, a exemplo de Papiniano (142-212), na medida do possível com base em fragmentos originais anteriores ao Corpus Iuris Civilis (529-534) do Imperador Justiniano (482-565) e do seu grande jurista Triboniano (500-547). 

Some-se a isso, ainda relacionado a esse viés histórico-filológico, uma nova atitude “crítica” dos cultos em relação à própria historicidade do direito. Entenda-se aqui, como explica Schioppa, “justamente o cuidado com o qual eles buscaram reconstruir o teor original e o significado autêntico dos textos dos juristas clássicos – que eles admiravam mais do que os juristas da era pós-clássica – levou-os a considerar as fontes contidas no Corpus iuris principalmente como monumentos da cultura antiga, no mesmo nível dos textos literários, históricos e poéticos. Mas isso não acarretava nenhuma convicção a priori sobre a validade, em todo tempo e lugar, da normativa romana. Pelo contrário, Budé já considerava com ironia aqueles que julgavam as leis romanas divinas e caídas do céu, em vez de escritas por homens: 'leges non ab homine scriptas ac conceptas, sed de coelo delapsas esse credunt'”. Mais tarde, François Baudouin chamou de “superstição fátua” essa adesão “a priori” às disposições do direito da Antiguidade. 

Outra grande preocupação da Escola Culta de Jurisprudência era a “sistematização” cultural do direito. Como registra Schioppa, essa preocupação está relacionada “à valorização das ciências humanas distintas do direito, a começar pela filosofia, considerada pelos Cultos não apenas útil, mas necessária para o jurista: Alciato já escrevia assim, mas ele mesmo escrevera em outra ocasião que a única 'verdadeira filosofia' é a história. O mesmo fizeram outros expoentes da escola. É um posicionamento que encontrará em Rebelais, ex-aluno do jurista André Tiraqueau, uma reprovação mordaz, no ponto em que ele declara 'loucos' os juristas que ignoram a filosofia”. 

Por fim, a orientação teórica em si dos cultos/humanistas era vanguardista. Consoante lembra Schioppa, eles “sublinharam que o necessário fundamento teórico do direito devia ser formulado em termos universais (daí a importância atribuída à formação filosófica): é o caso de Duaren e de Bodin. E isso levou Doneau a enfatizar o vínculo entre a norma jurídica e a 'natureza': a natureza das coisas, a natureza do homem, à qual o próprio príncipe não pode se opor. Segundo Connan, a natureza constitui o núcleo fundamental dos próprios costumes, razão pela qual ele identifica o direito consuetudinário compartilhado pela maior parte dos povos, e não o direito legislado, com o direito natural”. 

Eram muito bons esses tais humanistas. Muito cultos, não acham? 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

07/05/2018

Voluntário da pátria




Por Gustavo Sobral


Foi com o cavalo que tinha, a muda de roupa que tinha e um farnel. Childerico usava bigode de ponta, terno com colete e relógio na algibeira. Calçava botas, era cidadão e podia votar. Se despediu de quem queria, pediu a benção a quem devia, e foi-se embora para o Norte ganhar a vida, trabalhar com borracha e fazer fortuna. Contavam que sabia segredos dos Incas, padeceu de epidemias e parece que foi até vítima para mais de uma maldição. Virou guerreiro do Yaco e mandava cartas contando cada coisa por aqui recriadas e aumentadas por um e outro que as ouvia de quem lia, também fantasiadas no falatório de quem as repassava. Miudezas, coisa de boca a boca, pé de ouvido e até fofoca. Índio muito, fortuna grande, lenda aprumada, aventura arrepiante, tudo navegado nos rios e afluentes sediado ele no Purus. Voltou velho, já no fim, quando já era lenda e rei do Seringal Oriente com o título de coronel da guarda nacional que o governo lhe deu, voluntário da pátria na questão do Acre. A fortuna já mais não tinha. Quem viu disse que ele voltou assim, mesminho como foi, a trouxa de roupa, o chapéu de massa, o terno, e teve gente que desconfiou que até o cavalo era o mesmo.

02/05/2018


 
Marcelo Alves publicou no grupo Filosofando no Direito..
 
   
Marcelo Alves

 


Os humanistas (I) 

Como referido no artigo da semana passada, o final do século XV assistiu ao epílogo da chamada “Escola dos Comentaristas” (que, por sua vez, havia sucedido, na história do direito, à “Escola dos Glosadores”). Isso seu deu pelas mãos dos “humanistas”, como eram (e são ainda) chamados os representantes da “Escola Culta de Jurisprudência”, que, filhos do Renascimento, atacaram os comentaristas medievais (ditos também “bartolistas”), censurando-lhes, entre outras coisas, a falta de originalidade na mera repetição e/ou glosa do que haviam dito os seus mestres Bartolo e Baldo, o emprego do método escolástico, o uso de um latim vulgar e o desconhecimento da literatura, da história e das instituições da Antiguidade. 

Esse novo viés “humanista”, como lembra António Manuel Hespanha em “Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações Europa-América, 1998), está de fato associado “ao ambiente cultural, filosófico, jurídico e social dos primórdios da Europa moderna. No plano cultural, ele é tributário da paixão pela Antiguidade Clássica típica do Renascimento (séculos XV e XVI); o que levava a uma crítica contundente da literatura jurídica tradicional, estilisticamente impura e grosseira, filosoficamente ingênua e ignorante do enquadramento histórico dos textos com que lidava”. 

Aluno de Giasone del Maino (1435-1519), tido como o último dos comentaristas, Andrea Alciato (1492-1550) é, segundo convencionado, o primeiro dos juristas humanistas. Nascido no Ducado de Milão, Alciato formou-se pela prestigiada Universidade de Bolonha, onde estudou letras clássicas. Em parte com base nesses estudos, ele procurou dar uma nova direção ao ensino do direito. Acabou hostilizado pelos bartolistas, emigrando para a França em 1518 para ser professor em Avignon e, depois, em Bourges, cidade esta que acabou vendo sua universidade se tornar o centro irradiador da nova escola. Retornou à Itália mais tarde, lecionando em Pavia, Bolonha e Ferrara. Entre suas obras jurídicas, destacam-se as “Adnotationes” ao Código Justiniano; na sua produção literária e filosófica, as “Adnotationes” a Tácito. Em síntese, como anota Paulo Jorge de Lima em “Dicionário de filosofia do direito” (Sugestões Literárias S.A., 1968), ele “manifestava a opinião, transformada depois na orientação básica da Escola Culta, de que o entendimento correto das fontes do direito romano exigia do intérprete ser não apenas jurista, mas também filósofo e historiador, devendo o estudo da legislação ser realizado através do conhecimento das línguas, da literatura e da organização social da Antiguidade”. 

Entretanto, como explica Jean-Marie Carbasse em “Manuel d'introduction historique au droit” (Presses Universitaire de France – Puf, 2017), à exceção ilustre de Alciato, os grandes mestres da Escola Culta foram quase todos franceses (aliás, conta-se que, na Itália, os humanistas foram ostensivamente hostilizados pelos bartolistas, tanto que Lorenzo Valla foi, já em 1433, obrigado a deixar Pavia, assim como fez o já citado Alciato, que, deixando seu país em 1518, foi lecionar em Avignon e, depois, em Bourges). Entre os grandes franceses, são sempre citados: Guillaume Budé (1467-1540), François Douaren (1509-1559), François Baudouin (1520-1573), Hugues Doneau (1527-1591), Jaques Cujas (1522-1590) e por aí vai. E daí o porquê da expressão “mos gallicus iura docendi” (“maneira francesa de ensinar o direito”) para também designar esta Escola. 

Jaques Cujas, também conhecido pelo seu nome latino Cujacius, foi, provavelmente, o maior dos juristas “humanistas” ou “eruditos”. Cujas nasceu em Toulouse, onde privadamente ensinava direito romano. Sem oportunidade na universidade da sua cidade natal, mas disputado por outras instituições de ensino, Cujas foi professor em Cahors, Bourges, Valence, Paris e Turim, entre outras paragens. Consoante Paulo Jorge de Lima, “suas obras principais, compreendendo principalmente comentários ao direito romano, foram: Observationes, Recitationes, Paratitla, Tractatus ad Africanum”. Para além do direito, Cujas trabalhou com a história, a filosofia, a literatura e as línguas antigas, “transformando o direito romano em direito histórico, a ser estudado em suas fontes originais e em consonância com a organização social que lhe dera origem”. Sem dúvida, foi em Cujas que essa tendência historicista do direito (romano, sobretudo) chegou ao ápice. 

Seu principal “rival” dentre os humanistas, tanto em estatura intelectual como na concepção ligeiramente diferente do ensino do direito, talvez tenha sido Hughes Doneau, também referido pelo apelido latino Donellus. Nascido em Chalon-sur-Saône, Doneau ensinou em Toulouse e em Bourges. Todavia, como registra Paulo Jorge de Lima, “tendo abraçado a religião protestante, viu-se obrigado a fugir quando da noite de São Bartolomeu (1572), dirigindo-se, sucessivamente, a Genebra, a Heidelberg, a Leyden e, por fim, a Altdorf, na Francônia, onde viveu o restante da sua vida. Destacam-se entre os seus trabalhos os Commentarii de Jure Civili, publicados em Nuremberg entre 1801 e 1834”. Embora grande conhecedor das instituições e da literatura do Mundo Antigo, Doneau adotava, se comparado com os outros humanistas, em especial com Cujas, uma orientação mais realista e prática do direito, guardando essa pequena herança da tradição bartolista (leia-se: dos comentaristas) medieval. 

Mas, finalmente, o que pregavam os humanistas? Quais eram os principais postulados dessa “mos gallicus” de ensinar o direito? É precisamente disso que trataremos no nosso papo da semana que vem. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP