A viagem do elefante
12/03/2018
A rua da Conceição compete com a Rua Grande, nos documentos, a ser a
primeira da cidade. Estamos em Natal, Rio Grande do Norte, capital, sede
do IHGRN. Cidade que nasce e cresce as margens do Potengi, o rio dos
comedores de camarão. E como o índio guerreiro e capitão-mor dos índios,
Felipe Camarão, somos todos guerreiros, e todos poti, potiguares.
O Rio Grande foi obra portuguesa decidida: ou se povoa ou se perde a
capitania. Uma capitania não conquistada por João de Barros e Aires da
Cunha, seus donatários, por uma série de infortúnios.
Chega 1599, nasce Natal na Cidade Alta, um platô, protegida, e como
escreveu Cascudo: já nasceu cidade. E ali no núcleo primeiro de
povoamento, vizinho a antiga matriz, fez-se para sempre um edifício
séculos e séculos depois.
Construção do seu tempo, três grandes salões para as proporções da
época, elevado da rua, com uma charmosa sacada lateral. Em 1906 é
concluído, e seria sede da instituição que, embora jovem, era a mais
importante do seu tempo. E continua. O Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte, fundado em 1902. Mas acontece que o tribunal de
justiça andava sem sede...
O instituto vinha de sedes provisórios, até casinhas alugadas, e
passaria por outras, e uma delas, aquele espaço que dividiu com o
tribunal. Contam que hoje, onde figura salão nobre, os desembargadores
descansam das sessões em cadeiras de balanço aproveitando o terral nas
tardes quentes de verão na Cidade do Sol. Aliás, é de Cascudo a
observação válida: em Natal há apenas duas estações. O verão e a do
trem.
Então o instituto ficou para lá e para cá só tomando aquele espaço
como sede definitiva em 1938. Obra do presidente Aldo Fernandes, filho
do presidente Hemetério Fernandes, neto do fundador Manoel Hemetério
Raposo de Melo, pernambucano, que era meu tetravô, de maneira que
gerações e gerações da família zelam por aquela casa.
Assim, o instituto seguiu a sua história na guarda da documentação do
período colonial, imperial e republicano, montando uma biblioteca
notável, conservando um museu de relíquias, como a estola do
revolucionário de 1817, Miguelinho; a primeira urna eleitoral, o cofre
da intendência e tudo mais, e toda uma história que se escreve nas atas e
nas edições de sua revista. Abro aspas: “O IHGRN possui documentos
originais com uma quantidade de grandeza fora do comum”, professor José
Luiz da Mota Menezes. Fecho aspas.
Mas acontece que, a casa da memória do Rio Grande do Norte, este
grande elefante que está nos mapas, o tempo foi maltratando. O descaso, o
desinteresse do poder público, a falta de verba, de funcionários
especializados e a deterioração do edifício exigiam uma tomada de
providência. Uma salvação. Então foi preciso uma obra, refazer a fiação,
recuperar o piso. Mas eis que a obra é embargada e o instituto fica a
ver navios.
Todo o acervo teve que ser retirado às pressas. O mobiliário, os
documentos, os livros, e na urgência e sem a condição adequada de
mudança. Estava fadado a perecer no sótão do edifício anexo. Espalhado
pelas salas, pelos cantos, até que a lentidão e morosidade do judiciário
fizesse a justiça. Tardava, tardava, o acervo se perdia. O prejuízo
material irrecuperável, as pesquisas interrompidas, o elefante pairava
órfão de sua casa da memória.
Até que tudo se tornou passado. Um acordo judicial colocou a
engrenagem dos reparos necessários em andamento, voltamos a publicar a
nossa revista, tratamos da digitalização do nosso acervo, rearrumamos o
museu, reabrimos para visitação e preparamos a longa viagem da
biblioteca do elefante e do arquivo a ser instalado nas modernas
estantes deslizantes. Começamos uma nova história. Precisávamos começar
um novo instituto, 115 anos depois.
Fiando-se no ideário dos fundadores, procedemos com novos estatutos,
criamos cadeiras, firmamos um calendário cultural para palestras e
exposições, chegamos às redes sociais e fundamos um site. Caminhamos.
E estamos dispostos a fazer mais. Num Estado pequeno, pobre, o
instituto assume o papel não só de guardião da história e da memória do
elefante, mas é responsável pelo fomento da sua cultura. Assim, há
também a busca pela interiorização, pela presença dos municípios no
instituto. Agosto passado (2017), trouxemos para à tarde no nosso largo,
a cultura popular, o folclore do município de Ceará-Mirim, evento que
ficou registrado como #Ocupação.
Buscamos estar no dia-a-dia do Rio Grande do Norte, pregando as
tradições, guardando as suas relíquias, preservando a sua memória, mas
também buscamos estar atentos ao presente, as novas concepções
museológicas, ao papel da revista como um canal de conhecimento também
para o leigo, a firmar-se como um ator social, ampliando o nosso papel.
Os jornais da capital, a par da apatia cultural em que o Estado se
encontra, tem reportado o nosso sopro de ação e esperança.
Quanto a 1817, Registramos a ausência de profundidade de estudos da
história da revolução no interior do RN. Agostinho Pinto de Queiroz, por
exemplo, meu ancestral, avô da avó da minha avó, revolucionário de
1817, foi preso e enviado para a Bahia até ser anistiado por Pedro I em
1821. A sua história e de outros jaz esquecida ainda 200 anos depois...
Quanto a Tavares de Lira, citado na conferência do professor Chacon,
acrescento que é a primeira do RN (1921); e a de Cascudo, também
referendada, é de 1955, e é ele quem escreve alguma coisa já mais para
além dos acontecimentos na capital.
Registro ainda que a norte-rio-grandense Izabel Gondim conta tin tin
por tin tin o movimento em Natal, porque conheceu testemunhas. Aliás,
professora e historiadora era sócia correspondente do IAHGP, admitida em
1883; e a primeira mulher sócia do IHGRN em 1929.
Portanto, participamos e celebramos a Revolução de 1817, sim;
reeditamos uma edição especial da nossa revista, aquela comemorativa dos
cem anos da revolução (1917), promovemos uma sessão solene em
celebração. Foi o que alcançamos em meio a todo este processo narrado de
reconstrução que vivemos. Saímos do nada, 115 anos depois, para propor
um novo instituto para os próximos 115 anos.
E viemos aqui ouvir, porque combalidos com cada moinho de vento do
dia-a-dia, não nos sobrou ainda tempo para pensar 2021, 2022 e 2024. Por
isso viemos ouvir, ouvir para aprender, ouvir para levar as ideias e os
pensamentos de cada um dos institutos. E procurando conhecer a cada um,
começamos antecipadamente a enviar um pequeno questionário para
mapeamento de nossas instituições estaduais. Creio que todos já devam
ter recebido e já estamos obtendo respostas e aguardando respostas.
Alagoas, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Paraná: muito obrigado! Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Paraíba e Pernambuco, já fizemos o primeiro contato e estamos aguardando! Piauí e Sergipe,
por favor, precisamos dos seus contatos! E precisamos dos contatos,
quem os tiver, nos passe, dos institutos de Amazonas, Mato Grosso, Rio
de Janeiro e Rondônia.
É ao pensar juntos onde estamos, para onde vamos, e o nosso papel
institucional num país de inúmeras carências que, face a todos os
descasos, problemas, dificuldades, podemos nos erguer pela criatividade,
pelo empenho, e mais que isso, pela esperança e perseverança.
Resgatando o exemplo dos grandes nomes, cito dois dos meus maiores
conterrâneos, sem prejuízo para os demais, Rodolfo Garcia, meu patrono
no instituto, sobre o qual atualmente escrevo um trabalho; e Luís da
Câmara Cascudo, que certa vez disse:
“Qual o segredo de trabalhar sempre e não desanimar? É simples.
Consiste em não esperar estímulo, em não aguardar recompensa, em não
pensar que está sendo admirado e compreendido. Trabalhar pela própria
alegria do trabalho, sem interesse, sem orgulho, sem imediatismo.
Confiar na justiça infalível que o Futuro trará aos que perseveram numa
estrada limpa de egoísmos e livre de vaidade esterilizadora”.
Assim, conclamo a todos a responder ao questionário, a colaborar com a
nossa pesquisa, que será divulgada, e convidamos a todos, de braços
abertos, acolhida potiguar, a visitar o pequeno grande elefante, o nosso
Rio Grande do Norte, a conhecer a casa da memória. E, assim, encerro
essa longa viagem do elefante a procura de um futuro que hoje aqui
encontro.
Recife/PE, 06 de março de 2018
Gustavo Sobral
Diretor de Biblioteca, Arquivo e Museu do IHGRN, representante do IHGRN no VI Congresso Nordestino de Institutos Históricos