A PASSAGEM DA NOITE
Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com
O homem social hoje
virou ambiguidade ficcional. Previna-se o leitor: não confundir amizade social
com solidariedade humana. São manifestações caracterológicas do vivente
completamente heterogêneas. O egoísmo, a acomodação, modificadas pelo tom da
luz reinante destruíram o sentimento cristão do mundo. O homem cresce, vive e
morre numa jaula, limitado às imposições de sua vida miúda, repleta de
frustrações e às circunstâncias. Há pessoas que pensam que não vão morrer
nunca. Principalmente os que são ricos ou que, pelo menos, pensam. Assim
imaginam muitos empresários, políticos, socialites, médicos, usineiros,
juristas e outros nomes, renomes e pronomes suspeitos.
Às vezes, diante do
infortúnio alheio, ancoram suas amarras no mais profundo silêncio e na mais abominável
indiferença. A postura ante o mundo é de desamparo e desalento. Não há lógica
própria nessa conduta centrada unicamente na anormalidade do desvio
comportamental porque a amizade virou interesse, esbulho, vantagem, lucro.
Lembro a minha mãe,
quando algumas vezes para rebatar a solidão centenária com uma frase humilde,
sábia e confortadora: “Meu filho, se eu fosse uma pessoa rica a minha casa
estaria repleta de visitas”.
A humildade e a
caridade cristã teriam sido substituídas pelo messianismo dos “pobres de
espírito”? Seria ataraxia, morbidez ou equívoco trágico imaginar que ninguém
seu morrerá nunca? Mas a vida é um labirinto movida por difusa fluidez
temporal, constituída de fases e de fezes (no sentido consumista, digestivo da
palavra).
E eu pensava nesse
turbilhão do tempo, dos modismos, que o exercício da amizade fosse contínuo,
mas é tão “imortal” quanto a hipocrisia de acreditar nos homens que integram as
instituições públicas e privadas (culturais, políticas, empresariais etc.). Daí
deduzir que toda celebridade em Natal quando não é célere e celerada. A
corrosão cotidiana da busca pelo dinheiro e pelo poder enferruja com rapidez as
“glórias e grandezas” de alguns governantes que se julgam donos do mundo,
quando pensávamos justos e coerentes. As mutações históricas dos valores da
personalidade humana, ao que me parece, foram provocadas pela “revolução” dos
costumes sociais, principalmente o comodismo, a apatia pelo semelhante, o medo
de morrer, as fobias e a falta de religiosidade.
Aí instaura-se um
jogo de buscas. O coração desumanizado do selvagem habitante da cidade, que
segrega o próximo jamais conhecerá qualquer modalidade de amor, principalmente
na noite sem face e derradeira do ataúde, porque em vida foi ausente,
insensível, reduzido à condição de bicho. Esse será o calvário do insensato, do
que utiliza a amizade como negócio, como moeda de troca. Vai vagar como Caim na
noite gelada do tempo sem jamais achar abrigo.
O leito caudaloso da
memória me conduz às vozes que vêm de longe. Na dor acumulada e na fadiga
rotineira, ensaio os meus passos no caminho das minhas perdas. Revejo os meus
personagens. Escuto o vento nas folhas e o piano da chuva no telhado como se
não tivesse ainda baixado a cortina da minha infância. Diante do que possa
sugerir esquisitice essa ressurreição de ambiente, impetro uma medida cautelar
possessória, uma manutenção de posse do tempo que se extravia tal qual um
desesperado náufrago na complexa realidade de hoje.
Nada disso significa nostalgia
piegas. Apenas, me interessa o imponderável e o mistério dos desencontros
humanos. Enquanto houver silêncio, solidão, tragédia, medos secretos, jamais
deixarei de perseguir os significados. Além da visão, da memória, dos sonhos,
tenho os meus pressentimentos.
(*) Escritor