A REVOLTA DOS GUARAPES
Vicente Serejo*
Outro dia perguntei
ao meu amigo Valério Mesquita, legítimo senhor do velho principado de Macaíba,
como se faria para o governo estadual iniciar as obras de restauração do
casarão dos Guarapes. Valério contraiu o cenho como um velho personagem de
romance, e me respondeu: "Não sei.
Só soube que Fabrício Pedroza, inconformado com esse abandono sem fim,
arregimenta os fantasmas guerreiros e vai descer do alto dos Guarapes numa
revolta armada e sem fronteiras".
Ora, essa mania de
gostar de literatura tem esse defeito medonho: não fazemos diferença entre o
real e o irreal. A narrativa para nós, leitores como eu, ou escritores como
ele, é um toque mágico que faz viver com a força da palavra o que parece ser
apensas um quadro na parede, para usar o verso belíssimo do poeta Drummond de
Andrade. Pois assim aconteceu. Foi Valério descrevendo a cena épica e o medo
cavalgando sobre a alma melancólica deste pobre homem da Rua da Frente.
Já imagino o mui
austero Fabrício Pedroza, senhor de terras e de gados, de sonhos e de riquezas,
na sua ira santa. Duas vezes querem vê-lo vencido pelos reveses da vida. Na
saúde que perdeu tão moço e, agora, no seu casarão colonial que deixam cair em
ruínas, numa agonia de mais de um século. Resta um frontão já consumindo suas
últimas forças, mantendo a aristocracia de seu olhar sobre o rio e os
tabuleiros, ali onde seus olhos ficaram pregados na paisagem íntima.
Numa ira santa e
tão desafiado na sua coragem dura e antiga como as pedras do seu chão, ninguém
duvide mesmo se numa madrugada dessas Fabrício Pedroza, feito um Dom Quixote no
seu delírio sonhador, descer do alto do Paço dos Guarapes arrastando seus
alabardeiros com as suas alabardas em riste como a guarda suíça do Vaticano.
Quando desse rio e desse mar não foram tesouros seus no comércio das riquezas e
das palavras perdidas? Enfrentá-lo, quem há de?
Velho de mais de um
século e meio, o casarão de Fabrício É um símbolo pela voragem dos anos, nem o
tempo pode apagar sua história. A agitação dos seus dias na exposição de sal,
peles, algodão, açúcar e especiarias, conta a história viva de um tempo de
fulgor, aqui e dalém mar. Quem sepultará o sonho de Fabrício Pedroza, morto em
1871, se suas mãos e seus feitos não repousam em paz no velho Cemitério de São
João Batista?
A ninguém o rigor
histórico perdoará pela rendição. Não é só um casarão decaído, suspirando entre
ruínas. Mas seus anos de fama, riqueza e poder. Por isso, talvez pela mania de
acreditar no milagre da transcendência, tive medo quando Valério Mesquita disse
que corre na feira de Macaíba a notícia de que o pequeno e heróico exército de
Fabrício Pedroza, sem glória e sem sossego, nesses dias desce do alto dos
Guarapes. Numa revolta feita de mágoa e solidão.
(*) Escritor e Jornalista