NOITE DA CRUVIANA, um repensar
Um amigo de Brasília perguntou-me como se poderia pressentir os sinais de que em uma determinada noite a cruviana sairia.
Ele havia lido um texto sobre o assunto e ficou interessado em passar para os
filhos essa vivência.
Brasília é uma cidade onde predominam apartamentos em prédios de seis
andares. Aqui nós temos pilotis barulhentos e áreas comuns movimentadas, além
do barulho aborrecido dos elevadores, somado ao tagarelar das pessoas a todo
momento. Imagino não haver condições propícias nem atmosfera capaz de atrair o
inusitado, o sutil, que dependem de um conluio da alma com o inesperado para se
manifestarem. Sem chance.
Em Brasília há também aqueles que moram em bairros onde predominam as
casas que, aqui, guardam uma razoável distância entre si. Eu resido em um
desses locais. Apesar de as pessoas estarem em casas bem cercadas, os níveis de
violência se equiparam aos menores do Brasil.
Falar da cruviana é retornar à cidade da minha infância, com o verbo no
pretérito, onde a usina de luz parava de funcionar às dez da noite. É se portar
como criança em uma cidade por onde passa um belo rio repleto de embarcações,
grandes e pequenas, com seus ruídos característicos. Na escuridão das noites
estreladas, velas eram içadas e arreadas, sob o augúrio dos marujos, aqui
chamados de barcaceiros, além dos movimentos próprios do rio cuja foz fica logo
ali, com o mar tentando subjugá-lo a toda hora.
Para que se percebesse a presença da cruviana, formatada em noites onde
o escuro absoluto dava abrigo ao bicho papão, acoitava lobisomens fugidios, e
em que o barulho das serrações assombrava crianças inocentes que tremiam em suas redes brancas com cheiro de carinho, parece-me de
fácil entendimento.
Hoje, especialmente em cidades de grande porte, como imaginarmos ter
sensibilidade e ambiente propício para perceber o assobio fino de um vento
noturno que leva consigo uma aura de mistério, com uma estranha sensação de um
frio que corre fino pelo corpo, tal qual uma pizza metafísica meio mágica meio
mística? Na infância, nas noites da cruviana, as crianças percebiam um som
agudo, fininho, tipo assobio, arrastando-se pela noite, fazendo com que se
encurvassem ainda mais em suas redes, assumindo uma posição quase fetal.
Em Brasília, algumas vezes, despertado pelo som de uma ambulância em
plena madrugada, já tentei perscrutar os ruídos característicos e os eflúvios
sonoros atípicos das noites do Lago Norte, na tentativa de identificar os
murmúrios da cruviana. Em vão.
Pelos mesmos motivos, já não se percebem os sacis, os gnomos, os duendes
nem as mulas sem cabeça. Afinal, “é preciso chuva para chover”.
Os tempos são outros. Temo que a percepção dos movimentos da cruviana
não seja para qualquer um, nem para qualquer lugar ou momento. Ao menos nestes
tempos raivosos.
Temo que a maioria desta geração Whatsapp jamais consiga, em
algum momento, agendar um encontro com o lado mágico da vida, onde mora a
fantasia.
–
Evaldo Oliveira
Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN