CARTA A NILO PEREIRA E SUA RESPOSTA Ciro José Tavares.
Mestre Nilo: Leio com entusiasmo sua Crônica do Velho Casarão, publicada no Jornal do Commercio e tomo a liberdade de enviar o meu poema Farewell Adelle. Fácil observar que o ambiente que me contagia é o mesmo, diferenciado apenas pela fantasia que me veste. Depois que Adelle e Mariê partiram, minha mãe, Juraci, resistiu em rever suas antigas ruas e locais abençoados, não voltando nunca mais. Guardava a sensação, segundo me disse, da cidade adormecida permanentemente, como se estivesse morta. Nas vezes em que lá fui, constatei a informação. À medida que o veículo descia, lentamente, a Rua São José até a estação ferroviária, margeando a linha férrea, conduzindo-me a casa, eu vislumbrava o largo pátio da Matriz e via a inexistência das mãos amigas que nos saudavam a chegada. Para o lado do canavial, adentrado o vale, havia uma multidão de fantasmas no meio da qual rondava a realidade. O aspecto físico da cidade, no seu setor mais nobre e conhecido, não se modificou tanto. O espiritual, sim, volatizou-se, dando a impressão de que teria sido arrastado pelos que se despediram deste mundo, levando jardins, escadarias de acesso e terraços bordados de sancas e florões, suspensos nas colunas jônicas. Habituei-me a associar os velhos personagens da cidade à figura do Tio Spencer da novela O Chapéu Mexicano, de Aldous Huxley. Mansos de coração, eternizados na doce arquitetura. Ciro José Tavares.
O poema que Ciro José Tavares dedica a Adelle de Oliveira é, para mim, a ressurreição da primavera da vida. Ela foi minha primeira professora no Ceará-Mirim. Tinha a fragilidade de um lírio e o encanto de uma alma pura, solitária, romântica. Seus versos rivalizam, em muita coisa, com os de Auta de Souza. Sempre a lembrarei, Como fiz na Academia Norte-rio-grandense de letras, ao ser empossado e saudado por outro cearamirinense, o realmente grande escritor Edgar Barbosa. É para este universo sentimental que Ciro me remete, numa hora de meditação e de quase êxtase. Hora da infância restituída. A aurora ainda indecisa da vida. Nilo Pereira.
FAREWELL ADELE Ciro José Tavares.
la etemidad espera en la encrucijada de estrellas. JORGE LUIS BORGES – UM PATIO
Os sinos da matriz chamam às vésperas os fiéis. Galahad! Galahad apressa-te! Quando voltarmos verás o trem das seis e meia ganhando o rumo agreste. Depois da ceia do senhor (rogai por nós), a nossa. Virgo, na cozinha, permanece preparando nosso magro pão de cada dia.
As oito, na praça Lateral à Igreja, barracas, carrossel, roda gigante iluminados, empolgam feérica quermesse dos fiéis. Há Verônica, Marias, Madalenas, Tranças louras, vestidos rendilhados, passando, por dois réis, rifas vermelhas e azuis, na ajuda ao velho sacerdote. Galahad, cuidado, não percas sobre alguém o teu olhar perdido, nem sujes a vistosa calça curta de algodão. Na páscoa do domingo vais usá-la. Se as dez a luz apaga, acende, é sinal, logo silenciará o gerador. Atento embala na ladeira, a noite, assim como folguedos, é terminal. Oramos antes de dormir, mantendo brancas velas acesas no oratório. Mesmo frágil, o lume guiará teus passos Pelos silentes quarto e corredores. Galahad, Galahad, penitencia-te, Cristo é recrucificado sexta-feira. Rangem máquinas, vagões, aguardando que se processem embarques na estação, antiga e fronteira à rua São José.
Reprime as lágrimas e logo saberás que tua saudade é transitória. Prometemos, crescido, repetir nossas santas semanas no futuro. Segura a bolsa e leva à bandoleira tuas roupas, lembranças, brinquedos. Cuidado na janela, o vento sopra as cinzas para trás, Galahad, Galahad, a direção é leste, hoje é contra o tempo. Ouve, os sinos da Matriz parecem dobrar em Jerusalém, Galahad, Galahad, Galahad, alegra-te. Aberto o santo sepulcro o Cristo está ressuscitado, busquemos reencontro na páscoa matinal. Apesar dos muitos pecados, convidamos.
Quem sabe não queiras antes da missa confessá-los ao jovem celebrante, serão compreendidos e perdoados. Esperamo-te na porta principal, nossas pernas cansadas e franzinas têm pela frente a ladeira e degraus. Não tardes, guardião do sono, a toalha está presa no varal, a jarra d’água cheia no úmido banheiro do quintal, as roupas na cadeira, os sapatos sob a cama. Quanto ao café, na volta, arranjam-te essas duas tias alquebradas, porque faz muito tempo que partiu a doce Virgo.
Não vieste à Ceia do Senhor, ao pão do corpo, ao cálice de sangue do Cordeiro? No átrio montaste vigilância, perdido de amores ou espanando a diáfana bruma da aurora sonolenta, Galahad. Para revê-la volta ao átrio amanhã cedo, deitada indormida nos canaviais, mágicos riachos, engenhos mortos, nas moendas gastas e carros de boi sumidos nos caminhos de verde rendilhados. O trem, o trem podes perdê-lo, Galahad. Se puderes faz breve longo regresso, ou breves notícias apesar do espaço longo. Sabes que somos as filhas puras da bruma onde estaremos para sempre fixadas, Galahad, Galahad.
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