O ontem do meu tempo no Grande Ponto
Odilon de Amorim Garcia
Desde o tempo em que eu comecei a tomar conhecimento das coisas da vida que o
ponto nevrálgico de Natal foi o Grande Ponto.
O Grande Ponto era uma encruzilhada situada entre a Avenida Rio Branco e a Rua
Pedro Soares que, depois da Revolução de 30, mudou o nome para Rua João Pessoa.
Em cada esquina desta encruzilhada, existia uma edificação marcante. De um
lado, ficava o “Café Avenida”, de Seu Andrade, local de encontros, de pequenos
lanches, e onde se tomava um bom caldo de cana, e a casa residencial da viúva
Dona Sinhá Freire. Do outro, o mais antigo e tradicional clube social da
cidade, “O Natal Clube”, e a casa residencial do Dr. Alberto Roselli. Em frente
ao “Café Avenida” e a casa “das Freire”, se reuniam os mais heterogêneos grupos
de “habituês” para uma tradicional conversa de fim de tarde. Eram comerciantes,
profissionais liberais, desembargadores, professores, etc...
Por esta encruzilhada, passavam todas as linhas de bonde da cidade, único
transporte coletivo existente na época. A linha do Alecrim, que subia a ladeira
da Avenida Rio Branco em direção à Ribeira, retornando pela Praça João Maria e voltando ao Alecrim.
Havia também a linha Circular, que descia a Rio Branco no sentido da Ribeira,
voltando pela Praça João Maria, e retornando à Ribeira. Na esquina, defronte ao
“Café Avenida”, depois “Café Grande Ponto”, era o ponto inicial das linhas dos
bondes para os bairros de Petrópolis e Tirol, que se localizava, exatamente,
junto à calçada de um prédio que na parte térrea tinha uma confeitaria de
propriedade de um Sr. Guerra, e na parte superior, o consultório do Dr. Onofre
Lopes. Estas duas linhas seguiam pela rua João Pessoa até a esquina da praça
Pedro Velho, quando, então, se bifurcavam, tomando cada uma a direção do seu
respectivo bairro. Os bondes de Petrópolis se caracterizavam por uma luz verde,
de cada lado do nome do bairro, e os do Tirol, por uma luz vermelha. Era
somente para esses quatro bairros que existia condução.
Hoje, procurando recordar alguns momentos memoráveis daquele local tão
vivenciado por muitos companheiros da juventude, fazemos uma viagem no tempo,
um evocar melancólico dos dias idos. Nunca se deve mexer em coisa antiga, mas,
às vezes, é bom trazer de volta um passado que alegrou a nossa mocidade.
No Grande Ponto, vivenciei muitos fatos e momentos interessantes da minha vida,
nesta nossa belíssima cidade de Natal.
Quando da Revolução de 30, houve um movimento da mocidade estudiosa, que pensava
em transformar o mundo, liderado pelos alunos do Atheneu, que arregimentou
alunos dos vários Colégios da cidade para uma passeata pelas ruas, como um
protesto pelo assassinato do presidente João Pessoa (os governadores de Estado
eram chamados de presidente), um dos líderes revolucionários. Nesta época, eu
tinha uns 10 anos e estudava no Colégio Santo Antônio, dos Irmãos Maristas, que
funcionava ainda na Rua Santo Antônio, junto à igreja, que também era incluída
como estrutura do colégio. Todos nós, do colégio, fomos arrastados com o
restante dos estudantes dos vários estabelecimentos, Atheneu, Marista, Colégio
Pedro II (do memorável professor Severino Bezerra) e de alguns grupos
escolares, pelas principais ruas da cidade, num sonho utópico de contestação de
liberdade e de conquista do poder, terminando em pleno Grande Ponto, cantando,
ajoelhados, o hino que tinham composto em homenagem a João Pessoa:
João Pessoa, João Pessoa,
Bravo filho do sertão
O teu vulto varonil
Faz vibrar o coração do Brasil
Tua glória espera um dia
A tua ressurreição.
Os anos se passaram, e, um dia, volto eu de Recife, formado em Odontologia, e
depois de uns anos com consultório na Ribeira, verifiquei que o progresso da
cidade estava se desenvolvendo na Cidade Alta. Imediatamente, abandonei o
Edifício Aureliano e me mudei para a Cidade. Montei, então, meu consultório na
Rua João Pessoa, no “Edifício Rian”, que foi construído pelo comerciante Amaro
Mesquita, junto ao antigo “Café Avenida”, agora já com o nome de Grande Ponto. O
nome “Rian”, dado ao edifício, significava o contrário a Nair, esposa de Amaro
Mesquita.
Eram meus companheiros, com consultório no Edifício, as grandes e saudosas
figuras humanas do meu colega e amigo Sílvio Tavares, uma ausência marcante, e
o médico Dr. João Tinoco Filho.
Na parte térrea do Edifício, funcionava a “Confeitaria Cisne”, de Múcio e
Rossine Miranda, cujo garçom era o antológico José Américo, que chegou a ser
candidato à Câmara Municipal.
A “Confeitaria Cisne” era o local preferido pelos amantes de um bom e
necessário drinque, para acalmar os espíritos. Ali, se reunia a nata da boemia
natalense e de todos aqueles que, homens de espírito, sentiam a alegria de uma
conversa, mesmo sem a necessidade de uma cerveja ou uma dose de uísque. Existia
tempo para todas as conversas do mundo dos nossos horizontes, naquela época,
inatingíveis. Era um tempo sem angústia, sem medo e, principalmente, sem
pressa.
O comércio da cidade fechava geralmente às 17 horas e, logo depois, começavam a
se formar as diversas rodas para o bate-papo até o horário do jantar, e
restabelecido por volta das 19:30 até às 21:00 horas. Nesta hora, se dizia na
época, “se soltavam as feras”. Era a hora que todos tinham que deixar as suas
namoradas, retornando ao Grande Ponto.
Passei a conviver, diariamente, com a intensa movimentação do Grande Ponto. Só
trabalhava até às 17 horas, pois neste horário começavam a chegar os
freqüentadores assíduos, amigos e conhecidos, para as conversas e as novidades do dia. Havia tempo
para tudo. Principalmente o encantamento por uma cidade e os delírios de uma
mocidade cheia de sonhos, que se tornava grande aos nossos olhos. Estavam
sempre presentes as figuras mais
expressivas de uma geração: Armando Fagundes, Rossine Azevedo,
Rômulo da Fonseca Miranda (Rômulo Minha Gata), Genar Wanderley, Alvamar Furtado
de Mendonça, Humberto Nesi, Protásio Mello, Luiz Tavares, Carlos Bengne, João
Cláudio Machado, Zé Herôncio, Djalma Maranhão, João Alfredo Pegado Cortez (o
conde de Miramontes), Luiz Maia, Alínio Azevedo, Marito Lira, Dácio Azevedo,
Ernani Lyra, Veríssimo de Mello, Ebenezer Fernandes, Paulo Pires, Paulo Lira,
Alberto Moura, Osman Capistrano, Lauro Bacelar, e alguns de uma nova geração,
como José Alexandre, meu irmão, Jahir Navarro e outros.
Outro grupo, composto por figuras mais ilustres e com mais idade, discutiam
problemas mais complexos. Gonzaga Galvão, Edgar Barbosa, Antônio Soares Filho,
Otto de Brito Guerra, Alfredo Lira, e outros que a memória começa a falhar...
Um grupo de notívagos, comandado por João Cláudio Machado e Djalma Maranhão,
varava a madrugada em intermináveis conversas, grupo que era conhecido como os
freqüentadores da ”Universidade do Grande Ponto”.
Infelizmente, a grande maioria destes personagens já empreendeu a grande
viagem, mas continuam presentes nas estórias que costumam resgatar a nossa
memória.
Existiam grupos para conversas de todos os assuntos: futebol, política,
religião, até de safadeza.
Também um pequeno grupo, formado pelos “artistas”, rapazes de uma geração bem
mais nova, que se preocupavam em se vestir na última moda e sempre com o cabelo
muito bem penteado. Eles chegavam ao cúmulo de ensaboar os cabelos e ir para a
Praia do Meio, para que o sol endurecesse o seu ondulado.
Deste grupo, recordo-me de Mozart Romano, Milson Dantas, José Garcia da Câmara,
Wellington Muniz, Wilton Pinheiro, Milton Fernandes, Mozart Silva. Existia um
outro elemento, que era filho de Seu Andrade, dono do “Café Avenida”, mais que
não me lembro do seu nome. Ele era chegado a uma briga e uns amores perigosos.
O Grande Ponto era divertido. Apareciam figuras de todos os tipos. Havia
esmoler impertinente, como Maria Mula Manca, personagem que, andando de
muletas, percorria, incessantemente, todo aquele quarteirão, atazanando e
insultando todo mundo. Na época da política, então, se revelavam figuras excepcionais, como Capote
Molhado, candidato eterno e avulso em todas as eleições, que fazia discursos
homéricos, em cima de uma cadeira, sempre na calçada da Sorveteria e
Restaurante Cruzeiro, e era efusivamente aplaudido pelo público gozador.
Os carnavais, que se realizavam até então na Ribeira, na Av. Tavares de Lyra,
na época de 40, passou para a Cidade Alta, realizando o seu corso num grande
circuito, indo pela Av. Rio Branco, Ulisses Caldas, Av. Deodoro e rua João
Pessoa.
Este fato tornava o Grande Ponto um dos locais mais animados da cidade, pela
convergência dos vários bares existentes: “Confeitaria Cisne”, “Casa Vesúvio”
(de Maiorana), “Sorveteria e Restaurante Cruzeiro”, “O Natal Clube”, o
Restaurante de Seu Gaspar, a Sede do Santa Cruz Football Club, que ficava em
cima da Farmácia de Cícero, esquina com a Rua Princesa Isabel, e algumas
pequenas barracas que eram armadas improvisadamente.
Eu, da sacada do meu consultório, juntamente com a minha família e alguns
amigos, assistíamos, de camarote, toda essa movimentação. Sílvio Tavares, com
seu constante espírito brincalhão, lançava mão das bisnagas que se usava
antigamente nos consultórios odontológicos, enchia-as de água e, lá de cima,
molhava os foliões que passavam nos carros fazendo o corso. Os foliões,
sentados nas capotas arriadas dos carros abertos, aturdidos, não sabiam de onde
vinha aquele jato d’água.
Os corsos dos carnavais de antigamente eram animados, principalmente, porque os
carros favoreciam que os foliões se sentassem em suas capotas, dando ensejo que
se atirasse serpentina e confete de um carro para outro, unindo os carros, numa
verdadeira brincadeira carnavalesca. As luxuosas e variadas fantasias usadas
pelos foliões embelezavam de uma maneira destacada o carnaval. Eram os Pierrôs,
as Colombinas, os Palhaços, Chinesas, Japonesas, Índias, Marinheiros,
Bailarinas, Ciganas, e uma infinidade de outras fantasias, algumas até com
aspectos exóticos.
Curioso no carnaval eram as pessoas que apareciam, inesperadamente, se lançando
em plena folia, a exemplo do comerciante Júlio Cézar de Andrade, um homem
sóbrio, austero, ponderado, mas, às vezes, de respostas implacáveis quando se
sentia insultado. Pois não é que Júlio, pai do meu amigo Dalton,
num carnaval, montou o bloco da ”Manteiga Garça” (produto que ele
representava), e saiu no corso, fantasiado, tentando apresentar ares
carnavalescos, em cima de um caminhão, cuja ornamentação era uma enorme lata da
tal manteiga, e ainda com a animação de uma orquestra de cordas, dirigida por
Augusto Dourado no pandeiro?
Existiam, também, figuras que, isoladamente, pela sua irreverência,
extrapolavam alegria. Era o sempre extrovertido e brincalhão Zé Herôncio, que
vestido de mulher, tendo na mão um pinico cheio de salsicha, ostensivamente,
com caretas como de nojo, fazia que comia o verdadeiro conteúdo que geralmente
existe num pinico. E Yoyô Barros, um senhor já com certa idade, que, tocando um
reco-reco, era acompanhado, espontaneamente, por um grande grupo de pessoas,
cantando, insistentemente, uma canção onomatopéica: “Olha o cão, olha o cão,
olha o cão do Jaraguá”.
A animação do carnaval daquele tempo deu ensejo a que as gerações seguintes
seguissem a tradição dos blocos daquela época, como o “Aí Vem a Marinha” e
criassem alguns outros blocos com a mesma tendência carnavalesca. Os
“Kafajestes”, “Jardim da Infância”, “Puxa-saco”, “Bakulejo”, “Saca-Rolha”,
“Elite”, “Ressaca” foram os blocos representativos de uma rapaziada da classe
mais abastada, que faziam o corso em carros alegóricos, e costumavam,
tradicionalmente, “assaltar” as casas residenciais antecipando o período
momesco. Este costume dos anos 50 e 60 de assaltar uma casa, significava uma
visita do bloco a uma residência, de comum acordo com o seu dono, e eram
regados de muita bebida e tira-gostos, confetes e serpentinas.
E, logo depois, o tradicional local do corso mudou-se para a avenida Deodoro.
O Grande Ponto sempre foi palco de grandes acontecimentos. Durante a II Grande
Guerra, começou a funcionar o “Serviço de Alto Falante”, de Luiz Romão, cujas
caixas de som eram fixadas em um poste, exatamente na esquina da João Pessoa com a avenida Rio
Branco, defronte ao “Café Grande Ponto”. Todos os dias, às 19 horas, o Serviço
transmitia músicas, e, às 21 horas, re-transmitia o noticiário da BBC de
Londres. Os freqüentadores do Grande Ponto se deslocavam para aquela esquina
para ouvir as últimas notícias sobre a guerra.
Outro acontecimento da época foi o “blackout”. Durante a guerra, por um grande
período, as luzes das ruas eram apagadas, ficando a cidade quase totalmente às
escuras. Somente as residências tinham o direito de manter alguma luz acesa,
mas com todas as vidraças cobertas com papel escuro para não passar luz.
Assim mesmo, as reuniões do Grande Ponto continuavam concorridas. Ficávamos
todos conversando na penumbra, olhando, embevecidos e apreensivos, os holofotes
que cruzavam o céu na busca dos aviões da esquadrilha alemã, que diziam vir
bombardear Natal, por ser o ponto mais próximo de Dakar, no continente
africano, onde os alemães já estavam quase dominando.
O vestuário usado tradicionalmente por toda a população da cidade era paletó e
gravata, e alguns usavam chapéu, como eu, que procurava esconder a minha
precoce careca. Podia ser sábado, domingo ou dia da semana, era esta a maneira
de vestir. Mesmo durante o “blackout”.
Humberto Nesi não foi sempre aquela figura sisuda, circunspeta, introspectiva,
como quando foi durante quase toda sua vida como Inspetor Seccional da Receita
Federal. Humberto era um gozador, gostava de fazer umas estripulias, um
verdadeiro “moleque”, na expressão brincalhona da palavra. Morava numa casa,
ainda com seus pais, no segundo quarteirão da João Pessoa, bem perto de onde
nos reuníamos. Numa noite de “blackout”, quando estávamos todos reunidos,
conversando, esperando o noticiário da BBC, inesperadamente, chega Humberto,
vestido somente de pijama e com chinelos. Foi um verdadeiro escândalo.
Havia casas de comércio que marcaram época, como “O Café Maia”, de Chico
Azevedo, que era dirigido pelo seu filho Rossine Azevedo, nosso grande amigo. O
“Café Maia”, que se especializava em moer café, era um ponto permanente de
encontros do nosso grupo de amigos. Tinha a Fotografia de Namorado, fotógrafo
da elite da cidade. A “Confeitaria Vesúvio” também era destaque, não só por duas mesas que existiam por trás de um grande armário
cheio de bebidas, e era assiduamente freqüentada por alguns fregueses, como
Joaquim Luz, Otto Júlio Marinho, Paulo Pires e outros, e sempre servidos pelo
próprio proprietário, Francisco Maiorana, mas também pela presença do seu
filho, Rômulo Maiorama, um rapaz metido a “dândi”, muito apreciado pelas
mocinhas casadoiras. Anos depois, Rômulo foi para Belém do Pará,
tornando-se um homem rico, até dono de jornal.
Infelizmente, desapareceu muito cedo.
Ainda hoje permanece, no chamado pé de escada do consultório do Dr. Onofre, um
senhor desta época, com mais de 80 anos, que tem o ofício de gravador. O
senhor, religiosamente, pode ser encontrado neste local, todos os dias, das 8
às 18 horas, gravando medalhas, placas de metal, relógios, etc.
Assim era o Grande Ponto.
Velhos tempos. Quanta coisa a ser lembrada e relembrada num mergulho que, quase
sem querer, damos no passado das nossas memórias. Quanta saudade desses dias,
que, infelizmente, é inteiramente impossível, no tempo e no espaço, voltar
atrás.