12/03/2014

O Atheneu: múltiplas memórias

Publicação: 12 de Março de 2014 - Tribuna do Norte     
 
Ticiano Duarte
escritor

Foi com emoção que assisti, nas comemorações dos 182 anos de fundação do Atheneu, o lançamento do livro, “Construtores da Ágora Soberana Potiguar, Múltiplas Memórias”, organizado por Eva Cristini Arruda Câmara Barros e Diógenes da Cunha Lima. É um valioso testemunho das diversas fases de vida da nossa primeira Universidade, que por dever de justiça podemos nominá-lo, nosso mais tradicional e glorioso estabelecimento de ensino público, do Rio Grande do Norte.

Para Eva Arruda o meu testemunho e creio de todos que participaram da elaboração do livro, da sua abnegação, pertinácia, paciência e determinação para alcançar o objetivo de homenagear o Atheneu, sua história de cultura e inteligência, os antigos mestres, as gerações que por ali passaram, os diversos períodos de sua rica existência, o resgate de sua importância na formação de uma elite política e intelectual que serviu e ainda serve, não somente ao Rio Grande do Norte, mas ao Brasil.

O Atheneu está para mim, como no verso do poeta, “intacto, suspenso no ar”, com as suas salas de aulas, seus corredores, sua balaustrada, a presença inesquecível do velho diretor, Celestino Pimentel, sua roupa azul de todos os dias, a gravata vermelha, e os meninos cantando baixinho, em cadência: Lá vem Celé/na porta do pé/ligui/ligui/liguelhé...

Ainda ouço a voz de neurastênica e impaciente do bedel, Zé Bezerra. Não tinha a doçura dos seus companheiros de trabalho, Sérgio Santiago, João Elesbão de Macedo, Waldemar Pedrinha e Vicente Manga Rosa. Zé Bezerra era apelidado de Chamirranha. Udenista radical. Na eleição de 1947, disputada por José Varela e Floriano Cavalcanti, foi várias vezes às “vias de fato” com alunos simpatizantes do candidato pessedista, vitorioso. E Chamirranha levou desvantagem em todos os momentos que tentou impor-se pela força.

Mas havia uma figura que conheci em idade bem avançada, ainda trabalhando que era o inesquecível tio Emídio, o porteiro do Atheneu, nome oficial que se dava ao administrador do estabelecimento, que abria, fechava e zelava o prédio. Tio Emídio tinha histórias antológicas. Pertencia a uma família de tradição política. Fora deputado e o seu sogro, o vigário Bartolomeu Fagundes, antigo deputado provincial, assumira interinamente o governo por diversas vezes.

O Atheneu de tantas lembranças, de tantas histórias dos seus alunos e professores. O Atheneu de Cascudo e padre Monte. O Atheneu de Cipriano Barata, Dr. Barata, herói da revolução de 1917, apostolo da liberdade de imprensa, na luta pela independência do Brasil. Cipriano Barata que editava o jornal, “Sentinela da Liberdade”, escrito nas masmorras, onde viveu no mais longo período de vida, condenado pelos colonizadores portugueses.

O Atheneu dos meus melhores momentos de juventude. O Atheneu que me ensinou a amar a liberdade, que me fez conhecer os clássicos, o gosto pela leitura, a lição que aprendi que mais tarde Carlos Lacerda melhor definiu, o Brasil é como um homem que foi bêbado para a cama dormiu pouco e mal, mais que precisava acordar bem cedo pela manhã. Você tem que sacudi-lo, estapeá-lo. Se ficar fazendo festinha, ele não levanta. Daí porque às vezes me confundiram com alguns dos meus colegas mais radicais que sonhavam com soluções extremistas. Eu pensava que a agitação era necessária para sacudir o povo sonolento e alienado. Enfim, o Atheneu foi à grande escola de civismo de todos nós.


Renovado, mas com o mesmo DNA
Tomislav R. Femenick – Mestre em economia, contador e historiador

Três eventos alteraram profundamente a estrutura do capitalismo: a revolução bolchevique de 1917, a quebra da bolsa de New York em 1929 e a segunda guerra mundial.
O primeiro deles despertou os Estados Unidos e os países da Europa ocidental para as reivindicações sociais, resultando em um freio na ganância dos empresários que exploraram os trabalhadores sem que houvesse leis que lhes impusessem limites, inclusive nas longas jornadas de trabalho. Foi a partir dai que apareceram as primeiras legislações estabelecendo os direitos dos trabalhadores.
O colapso dos anos 1929/1930 evidenciou o fato de que o mercado não pode funcionar sem controle e que o governo não deve ficar ausente dos fatos econômicos. Somente com a ingerência do Estado, criando regras e intervindo diretamente no sistema produtivo, foi possível restabelecer a ordem socioeconômica nos países mais afetados pela crise.
A segunda grande guerra resultou em dois cenários totalmente diferentes. Os Estados Unidos dela saiu confirmado como a maior potencia mundial e os outros países do continente americano deram um salto quantitativo e qualificativo em suas economias. Por outro lado, foi o maior desastre econômico jamais acontecido na Europa e na Ásia, que dele saíram com sua infraestrutura e seu sistema produtivo destroçados, pois suas fábricas, portos e estradas eram alvos preferenciais dos aviões alemães, aliados e japoneses.  
A recuperação desses países deu-se graça a ação norte-americana em suas economias, via seus respectivos governos. Em valores atuais, cerca de 300 bilhões de dólares foram aplicados como assistência econômica e tecnológica. Além do mais, no Japão foi realizada uma reforma agrária e foram desmantelados os grandes zaibatsus (trustes), que controlavam a economia e as finanças do país.
Esses três acontecimentos terminaram por dar uma nova feição ao capitalismo contemporâneo, tirano de suas características o absolutismo do mercado e o reinado do laissez-faire. Essa visão de um novo capitalismo, reformado, mais humanizado e não totalmente livre para fazer o que quiser, teve repercussão em 1965, quando o economista, professor e jornalista britânico Andrew Shonfield, publicou sua mais famosa obra “O capitalismo moderno”. Nesse livro Sir Andrew diz que, embora as características básicas do capitalismo tenham permanecido intocadas (relações de produção, de trabalho e de renda, por exemplo), o impressionante ritmo do desenvolvimento tecnológico e a busca do pleno emprego para a população economicamente ativa deram um novo dínamo ao crescimento econômico, inclusive com maior distribuição da renda. Suas explicações para que o capitalismo continue sendo a mola mestra da economia incluem alguns outros pontos relevantes: a ingerência do Estado no planejamento e na execução dos projetos de desenvolvimento, o aumento da parcela dos recursos públicos destinados à promoção do bem-estar social e o crescimento da renda real per capita da população.
Foi dessa forma que os países desenvolvidos evoluíram e assumiram a ponta do crescimento econômico mundial, sempre tendo em vista que a grande massa de consumidores são os trabalhadores, que neles compõem a classe média.
Embora não seja a maravilha das maravilhas e apesar de suas crises cíclicas, o capitalismo tem se mostrado ser o melhor sistema possível no mundo real; sem empulhações, elucubrações enganadoras, sem contorções argumentativas, sem hipocrisias intelectuais. Enquanto isso por aqui ainda há saudosistas da utopia do socialismo pseudocientífico. No entanto, a realidade vale mais que mil palavras.
Tribuna do Norte. Natal, 09 mar 2014.

11/03/2014

João de Barros, Pirangi e o Porto de Búzios, 1564

João Felipe da Trindade (jfhipotenusa@gmail.com)
 
Professor da UFRN, membro do IHGRN e do INRG
Muitos documentos escritos, da História do nosso Brasil, encontram-se submersos em vários arquivos públicos ou privados, daqui e d’além mar. Encontro no nosso IHGRN um livreto, de apenas 30 páginas, de autoria do historiador natalense, Guarino Alves, com o título: Capitanias Hereditárias ou dissertações sintéticas de um historio-geógrafo, editado em Fortaleza. Traz informações muitas ricas para a História do Rio Grande do Norte. Entre outras obras desse autor, cito: Pequena história do Cabo de São Roque; Origem do nome histórico “Ponta do Mel”; João Rodrigues Colaço; O Verde Potengi e Designação amerígena da Ponta do Calcanhar.

Nesse livreto, um dos títulos é: Considerações sobre o Porto dos Búzios que transcrevo para cá:

Escritores cearenses trouxeram à baila a ideia de uma fronteira na capitania dos Potiguares pela ponta dos Búzios. O Sr. Thomaz Pompeu Sobrinho, por exemplo, diz, a propósito, o seguinte:

“Num documento curioso, “certidão referente a uma questão de limites da capitania de João de Barros”, de 3 de março de 1564, publicado por Antonio Baião, em 1917, verifica-se que o ponto lindeiro entre a capitania do feitor da casa da Índia, e a de Itamaracá não era a baía da Traição e nem o lugar dado por Gabriel Soares, porém uma ponta de terra que devia passar obra de meia légua do porto dos Búzios, o qual ancoradouro fica na barra do rio que os potiguares chamavam Pyramgipepe, segundo o mencionado documento, isto é, Pirangi. Realmente, deste ponto as 100 léguas vão terminar na enseada da Curimicoara, a Angra dos Negros dos antigos mapas.”

A questão de limites surgiu em consequência de o capitão de Itamaracá, João Gonçalves, haver explorado, sem mandado de ninguém, a costa vizinha à de Dona Isabel Gambôa, sucessora de Pero Lopes de Sousa. Houve protesto de Antonio Pinheiro, Procurador de João de Barros, na Vila dos Cosmes de Igaraçu, no dia 3 de março de 1564:

...”ho dito porto dos Búzios que pela língua dos imdios se chama Piramgypepe está fora da demarcação de dona Isabel e está na capitania e terra do dito seu constituinte he e seu he estaa de posse delle de muitos hanos há esta parte e como tal lho teve arremdado por certos hanos a Martim Ferreira de São Vicente e que ho houve de Pero de Goes comprado e que sempre ho dito seu constituinte deu licenças pera o dito porto em seus procuradores nesta terra arrendarem por as ditas licenças em dinheiro e escravos e em búzios.”

Conseguintemente, o protesto por si já mostra o direito de João de Barros.

Desde quando se explorava o Porto dos Búzios?

No dia 3 de março de 1564, Antonio Pinheiro, Procurador daquele muito distinto e erudito fidalgo, arrolou quatro testemunhas, Manoel Fernandes, Fernão d’Holanda, Gonçalo e Bartolomeu Royz, e a 4, as inquiriu Manuel Pereira, em presença do Juiz Ordinário, João Fernandes. Ficou esclarecido que o Porto pertencera a Pero de Góis, fora arrendado depois a Martim Ferreira, e que ali se coletava búzios desde aproximadamente vinte anos: “ave rahobra de vinte anos pouco mais ou menos”, disse perante o Juiz a testemunha Bartolomeu Rodrigues.

Segundo o depoimento de Manoel Fernandes, o fidalgo Pero de Góis “vendera o porto dos búzios que era seu com dez léguas de costa ao dito João de Barros, feitor da Casa da Índia, dizendo que lhas dera por quinhentos cruzados.”

Ignora-se a data dessa transação, mas é posterior à da donatária de Barros. Significa que Pêro de Góis já era dono do lugar muito antes da Carta de doação ao Feitor da Casa da Índia. E sendo assim, pergunta-se: em que ano adquiriu Pero de Góis as dez léguas de costa? Ninguém sabe, e no entanto há uma passagem em Frei Vicente do Salvador, dizendo isto:

“Em companhia de Pero Lopes andou por esta costa do Brasil Pedro de Góis, fidalgo honrado, muito cavaleiro, e pela afeição que tomou à terra pediu a El-Rei D. João que lhe desse nela uma capitania, e assim lhe fez mercê de cinquenta léguas de terra ao longo da costa ou aos que se achassem  donde acabassem as de Martim Afonso de Sousa, até que entestasse com as de Vasco Fernandes Coutinho.”

Ora, as viagens costeiras de Pero Lopes são de 1531-1532. A escolha e apossamento do Porto dos Búzios por Góis vem, portanto, dessa época, e feitos pelo que se deduz, à revelia do rei, já que a capitania oficial de Pero de Góis, estava encravada no sul do país. Dessarte, é de supor-se que acontecera o seguinte: doada a Costa dos Potiguares a João de Barros e Aires da Cunha, da Baía da Traição até a Angra dos Negros, viu-se empenhado o ilustre Feitor da Casa da Índia, em indenizar a Pero de Góis, pelas dez léguas do Rio Grande, na importância de quinhentos cruzados; e, posteriormente, arrendou-o a Martim Ferreira, sócio de Pero de Góis, em aventuras comerciais.

Fica bastante explícito que a questão de limites verificada na Vila dos Cosmes de Igaraçu não retifica os termos da Carta de doação da capitania de João de Barros e Aires da Cunha, nem deixa supor que a fronteira primitiva, segundo o critério adotado por alguns escritores cearenses, se fazia pela Ponta dos Búzios.

Como fronteira “primitiva”, se esta começou com a Carta de doação de 1535, na Baía da Traição? Como fronteira “primitiva”, se a nesga de costa de Pêro de Góis não se entrosara no sistema de doações de capitanias hereditárias? O fato é que a “estação” balneária de Pero de Góis vem dando margem a ideias fantasiosas. Aqui termina o texto de Guarino.

Esse Antonio Baião, citado acima, foi Diretor do Arquivo da Torre do Tombo e sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, e o título do seu livro que contém o documento curioso a que se refere Thomaz Pompeu é: Documentos inéditos sobre João de Barros. Há cópia no IHGRN.

Acredito que o francês João Lostau já atuava nessa área, que foi de Pero de Góis, antes de receber suas sesmarias, a partir de 1601.
 
Trecho do Rio Potengi que vai desaguar no mar

Trecho do Rio Pontegi, do outro lado da ponte

10/03/2014

        O REI MALVADO
Por: Gileno Guanabara, advogado

Ao final do século V, a ameaça de guerra com que D. João II, Rei de Portugal, se arvorou para exigir dos soberanos espanhóis uma terça das terras recém- descobertas no Ocidente, resultou na assinatura entre ambos do Tratado de Tordesilhas (1494) e, por isso, afinal, foi possível a existência de uma colônia portuguesa no Sul da América. Esse pedaço foi ampliado pelos bandeirantes e veio a compor o imenso território a que se chamou Brasil.
Não sei a que atribuir o fato de D. João II ter passado à História como o “Príncipe Perfeito”. No entanto, ele foi um psicopata, um assassino cruel, como confessou ao pedir ao Papado a absolvição pelas maldades que praticara.
Relatou com frieza indescritível que atraiu e matou, à punhaladas, D. Diogo, o Duque de Vizeu, seu aparentado, após convidá-lo para ter acesso ao camarim do palácio. O Bispo de Evora, D. Garcia de Meneses, teve pior sorte. O déspota ordenou  - alegando ser de melhor piedade  - que o bispo fosse jogado numa fossa cheia de sapos, para se divertir e se alimentar da carne macia dos batráquios. O sexagenário morreu de fome e pavor. Tal ignomínia, fê-la o malsinado rei, louvando-se no Rei Luis IX, de França, que trancafiou um desafeto numa jaula de ferro, como se presa mantivesse uma fera. Ou a prisão e o envenenamento do Bispo de Safim, D. João Sotil.
O fidalgo D. Fernando, Duque de Bragança, de linhagem nobre, foi atraído e preso em Palácio por D. João II. Acusado de traição através depoimentos forjados, segundo os quais conjurava contra o rei, foi condenado a morte, tendo a cabeça decepada em patíbulo, na praça pública e confiscada a sua fortuna em favor do soberano.
Outra vítima de D. João II foi o Conde de Haro que escapou inicialmente da ira do rei, cuja intenção confessa era extirpar-lhe o coração pelas costas. O Conde fugiu para a Espanha e depois para a França, onde foi achado e assassinado por um sicário, a mando do seu perseguidor.
Aos tantos homicídios cometidos, em número de oitenta, somam-se outros tantos executados a mando, em cadafalso, ao fio da espada, amputações, esquartejamentos, decapitações em praça pública, devorados por feras, como confessou. Para isso, forjavam-se as provas. Os testemunhos e confissões eram obtidos mediante tortura. Na súplica que dirigiu ao Papa Inocêncio VIII e renovada depois a Alexandre VI (Biblioteca do Vaticano, 14/10/1456 – in Hist. Genealógica da Casa Real portuguesa - Antônio Caetano de Sousa, 1746), o soberano malvado, já no leito de morte, confessou as simulações, a falsidade das correspondências, as provas forjadas para incriminação, os falsos testemunhos, a infâmia estendida às gerações futuras das vítimas, a peita impingida aos juízes e o confisco do patrimônio dos condenados. Por isso, Camilo Castelo Branco (Gaseta Literária, Porto, 1868) chamou o Rei João II de “Rei Carrasco”, porque fora cruel, mesquinho e hipócrita.
Trecho da súplica que o soberano dirigiu ao papado, com a confissão das centenas de crimes que cometeu - assassinatos; roubo; prevaricação; suborno; falsos testemunhos obtidos sob tortura; calúnia e sadismo, tal o nível de penúria que impingia às vítimas  - revela sua angústia final, quanto ao futuro que o aguardava no inferno: “... as terras de chistans os publicava por traidores, tomando-os a seus próprios herdeiros e avendo-as dava, e muitos que com temor de sua perseguição fugirão com vitupérios, e cartas defamatórias erão delle, suplicante, perseguidos, e, finalmente outros em Reynos extranhos padecerão morte, e de tal maneira que o Rey, suplicante, confessa que sob calor de título de justiça e por seu induzimento farão mortos oitenta homens ou mais” ... “mas na verdade sua Santidade fora falsamente informado, por cuja causa pede perdão a Deus e a V. Santidade.”
O historiador João de Barros (Décadas. Portugal) informa que Cristovam Colombo ofertou ao Rei criminoso seus planos marítimos de, através de caminho mais curto e seguro, na direção do ocidente, chegar às Índias Orientais. O Rei apelou aos conselhos de astrônomos judeus e de um Bispo de Ceuta que concluíram ser absurda a proposta de navegação. O Rei desconsiderou o projeto e despediu o navegador. Restou a notícia de uma provável tentativa de assassinato de Colombo em Portugal.
Colombo foi recebido em Castela (1484) quando relatou aos reis Fernando e Izabel o seu plano e, por isso, ficou retido. Quatro anos depois, em Granada, após a oitiva dos conselheiros reais, os soberanos espanhóis acolheram a empreitada. As esquadra de Cristovam Colombo, composta de três caravelas, partiu do Porto de Palos, em Andaluzia, no mês de agosto do ano de 1492. Atravessou o Oceano Atlântico e descobriu a América. Como consequência da desdita do Rei João II à proposta de Cristovam Colombo, a América deixou de ser inteiramente portuguesa, de Norte a Sul do continente.

Garcia de Rezende, cronista de época, relatou o remorso que teve o Rei malvado, pouco antes de sua morte. Registrou a sentença que ele mesmo ditou e se lhe reservou em forma de epitáfio: “Não me confortais, que eu fui tão mau bicho que nunca me acenaram que não mordesse”. 

08/03/2014



LUCIANO ALVES DA NÓBREGA

Jurandyr Navarro

Do Conselho Estadual de Cultura

Nascido no abrasado Seridó, soube honrar as tradiçoões de seus antepassados, cultuando os ensinamentos cristãos no cerne da família e transmitindo aos círculos de  amizade.

A sua atividade social foi traçada por uma linha sem deflexões. Em Caicó, ainda moço, foi atraído pelo canto mavioso da sereia da Política, elegendo-se Vereador, nos verdes anos primaveris. Esse único mandato legislativo foi qual sonho de uma noite de verão... para a carreira política iniciada.

A fim de continuar seus estudos, iniciados no Ginásio Diocesano, veio para Natal onde estudou no Colégio Pedro II, sediado na Ribeira, próspero bairro da época. Esse aprendizado levou-o ao Recife, metrópole adiantada de então, onde cursou Filosofia e fez o CPOR, na idade própria da sua convocação para Reservista, recebendo a espada, símbolo do oficialato.

No retorno ao torrão potiguar, submeteu-se ao vestibular de Direito, tendo sido, durante o bacharelado, eleito presidente do Diretório Acadêmico, pelo prestígio de sua liderança.

Diplomado, a exemplo de colegas veteranos, efetuou os primeiros ensaios nas lides advocatícias. Vocacionado para o magistério, com o tempo, tornou-se educador, não somente em sala de aula, mas, também, ocupando cargos públicos dos mais importantes, na Pasta da Educação, fazendo parte, por um espaço de tempo, do seu egrégio Conselho.

Depois, ingressou no quadro da Procuradoria Geral do Estado, no cargo de Procurador, servindo, durante anos na Secretaria da Educação, dirigindo o Setor Jurídico. E o fez com a devida competência.

Aposentado, após algum tempo, participou da criação da Academia de Letras Jurídica, do Rio Grande do Norte, como Acadêmico, na Cadeira nº 35, cujo Patrono é o Professor Otto de Brito Guerra, parente próximo, seu conselheiro e amigo, que, na intimidade, chamava-o de “Tio Ótimo”!

Nesse cenáculo lítero-jurídico, desempenhou afazeres relevantes, fazendo parte da sua organização interna, no cargo de Diretor da Revista. Em reuniões solenes, teve ele a grata oportunidade de proferir palestras e orações outras, da sua tribuna, sempre prestigiando, com sua presença e participação, esses encontros culturais.

Na Revista que dirigia, escreveu num de seus números, em sua Apresentação: “A Revista da Academia deve cultivar as Humanidades, tornando obrigatória a existência de espaço para exposição de temas humanísticos e científicos, sobre aqueles uma vista quanto ao majestoso conjunto das ciências que lhe são próprias, o campo do pensamento, da imaginação, da memória e das artes. Ensaios ou análises referentes à ciência e à cultura, aos estudos de diferentes tendências para análise múltipla. Visão tecnicista ou pragmática sobre material de excepcionalidade.

Enfim, haverá um plano para a fixação, a visão de novas perspectivas, sugestões ou repensar metódico do que se constata nos conhecimentos hodiernos, propostas e conclusões e até sugestões de mudanças estruturais. Órgão de instituição que vivencia a ciência e a cultura do Direito, impossível suas páginas não transparecerem os debates que lhe são próprios, existenciais, compatíveis com as necessidades do povo e do seu meio”.

A sua vida foi, toda ela, ligada a ocupações de ordem sócio-intelectual, tendo pertencido ao Rotary Club, onde a sua dedicação à causa levou-o ao posto de alta confiança, de seus confrades, o de Governador, por um mandato, repleto de realizações.

Outras instituições culturais tiveram-no como integrante, inclusive o Instituto Histórico e Geográfico do RN, onde no vetusto e tradicional casarão, realizou pesquisas, durante algum tempo.

Nos seus estudos alicerçou apreciável lastro cultural em literatura e noutros domínios do saber. Deixou pesquisas anotadas e escritos inéditos. Tinha mente ativa e curiosa.

Era dotado de uma Fé inquebrantável. Na idade madura a saúde física sofreu cruel abalo, somente vencido por pessoas abençoadas. Dos olhos marejados, pelo doloroso sofrimento, afastou, naquela ocasião, pela graça de Deus, a maldição da morte, que abatera à sua porta, antes da hora.

Muita coisa boa teria, ainda, de realizar na vida, com sua família, sempre unida ao seu lado. E esse tempo precioso seria-lhe concedido pela bondade da divina Onipotência, que tudo pode.

As continuadas ocupações sociais de Luciano, livram-no dos momentos de dissipação, por muitos experimentados. Tais ocupações ocuparam o seu espírito afeito às generosas realizações.

O labor bem direcionado, na razão de ordem temporal, espiritual e ética, conduziram-no às boas obras. Tudo, na convergências de um resultado satisfatório à  alma e ao intelecto, desabrochando, daí pensamentos positivos.

Avizinhando-se da idade octogenária, dentre outros afazeres, ofertou-se de corpo e alma, à causa do catolicismo, dando continuidade à sua crença, arraigada desde a infância, por transmissão hereditária. Prestou, assim, na fase derradeira, serviços a uma Capela do seu bairro, acompanhado de amigos do mesmo credo religioso.

Fecho feliz, o da página final do livro da sua vida!

A esposa, Deuze, e filhos, muito contribuíram para tamanho sucesso, o da sua trajetória luminosa, e que sua despedida final ocorresse em ambiente de plena paz.



07/03/2014


A Coluna do Gal. Miguel Costa/Prestes em São Miguel/RN, em 1926. (VIII)
Luiz Gonzaga Cortez.

A Passagem do Exército Brasileiro rebelde, conhecida por Coluna General Miguel Costa/Prestes, em 1926, pela Vila de São Miguel, um lugarejo mixuruca de quatro ruas, não deixou rastro de terror e destruição, pois já existia banditismo, coronelismo de baraço e cutelo, assassinatos de encomendas, crimes hediondos, mandonismo, eleições sujas, etc. Matava-se por qualquer motivo, à luz do dia. Sem me aprofundar no estudo da violência quem imperou nas últimas 10 décadas na região  Alto Oeste Potiguar, a 500 quilômetros de distância de Natal,  consultei o livro de Zenaide Almeida Costa, “A Vida em Clave de Dó”, e extraí alguns trechos sobre os potentados da região que eram chamados de “chefes”, mas que não passavam de chefetes.

Houve um carnaval no “Grupo Escolar” de São Miguel, em plena Quaresma, animado pela orquestra “Samba da Bola Preta”, durante três dias e três noites, com muita cachaça, brigas e foguetórios, música e danças na escola e no meio da rua. O chefe não estava na cidade. Quando chegou e soube do ocorrido, disse para o pai de Zenaide, Sr. Celestino, do cartório: “Celestino, ele não presta! É meu genro, mas não presta! Ele me paga! Fique sabendo que não vai ficar assim!”. O coronel Farias, poderoso Chefe da Vila, político de longas datas, estava furioso! O genro, Pedro Inácio, tinha criado, sem o consultar, uma ala política diferente da sua. Foi uma discussão violenta, de lá de casa ouvimos os gritos. O Coronel, alto, vermelhão, nariz achatado, cabelos crespos já grisalhos, era conhecido pela sua valentia e pelo seu poder absoluto. Não tinha inimigos declarados, mandava matar todos eles. Mandara matar o próprio irmão, deixando o cadáver exposto na estrada, proibindo que alguém chegasse perto. Com sua fala fanhosa, passara ordem para que o corpo ficasse onde estava. Que os porcos bebessem o sangue e os urubus comessem a carne. Quem desobedecesse cairia morto no mesmo lugar”.(p.36). “.... Outras pessoas sofreram vexames semelhantes. Emboscada, cabra morto enterrado nas beiras das estradas, era o clima em que se vivia. Ninguém tinha coragem de viajar de noite, não se ficava nas calçadas depois das nove horas”, (p.37).

O coronel Farias tinha contratado Lampião para entrar na vila, matar o genro, Pedro Inácio e ir embora, foi ao encontro do cangaceiro na estrada real, a 3 léguas de Pau Branco e avisou que não fizesse o ataque. Lampião “seguiu seu caminho de destruição em busca de Patú, Apodi, Mossoró”.

Um dia depois de uma grande festa religiosa na Vila, o coronel Farias saiu de casa para ver as suas hortaliças na beira de uma lagoa, passou perto local onde seu irmão caiu morto, quando foi atingido por cinco tiros de revólver. Relata Zenaide Almeida Costa, na página 45 do seu livro: “O peito varado, o corpo caiu entre as pedras, ficando encurvado, a cabeça em cima de umas, os pés em cima de outras. Escondidos no mato, os dois cabras saíram de seu esconderijo, caíram  em cima do corpo de faca na mão, furaram sem piedade, cortaram o pescoço para arrancar a cabeça e espetar nas estacas da cerca. O sangue corria, tingindo pedras e chão. Ninguém por perto presenciava, apenas eles dois se satisfaziam na sua missão escabrosa. Quando conseguiram o osso, faltando apenas acabar de cortar o couro para separar a cabeça do corpo, uma mulher que morava nas imediações, estranhando os gemidos que ouvira dos tiros, aproximou-se da cerca, viu que estava acontecendo, saiu correndo aos gritos histéricos em busca de casa: Acudam, pelo amor de Deus, que tem dois cangaceiros matando um homem no Riacho das Mulatas!”.

Os assassinatos continuaram, mataram um irmão de Pedro Inácio, o mandante da execução do Coronel Farias. Pedro Inácio foi absolvido em dois júris, e mudou-se para o Ceará e nunca mais  retornou a São Miguel/RN.

O caro leitor sabe que a impunidade e o “Sindicato do Crime” no alto oeste do RN, principalmente em São Miguel, somente passou a ser combatida pelo Estado nos primeiros meses de 1983, após a posse do governador José Agripino Maia?  E a apuração de vários crimes começou depois que o Diário de Natal, dirigido pelo jornalista Luiz Maria Alves, passou a cobrir as investigações desenvolvidas pelo delegado Maurílio Pinto de Medeiros, a partir de denúncias de familiares de Francisco de Assis Queiroz, o “Assis de Totô”, filho de Antonio Cipriano de Queiroz, que dando tiros na estrada de acesso a São Miguel. Mas isso é outra história.
Renato Gomes, um poeta popular.

Luiz Gonzaga Cortez*

"Memórias de um leigo" é o livro de estreia do poeta popular Manoel
Renato Gomes, natural de Currais Novos, nascido e criado até os 18
anos no sítio Liberdade, a poucos quilômetros do casarão da sua bisavó
Maria Senhorinha Dantas Pegado Cortez, conhecida por "Marica Pegado",
uma mulher culta e inteligente que administrou uma hospedaria em "São
Luiz", até fins de 1927. Octogenário, Sr. "Santos", apelido familiar,
muito cedo deixou os estudos para se dedicar a agricultura e ajudar a
família. Quando atingiu a maioridade, se alistou na Aeronáutica, mas
foi dispensado porque dois irmãos já serviam na Base Aérea de Natal,
em Parnamirim. O sonho de estudar na capital, fracassaram.
Decepcionado com a discriminação, o  poeta "Santos" arrumou a mala e
partiu para o Sul do Brasil, em busca de trabalho. Andou pelo sul,
sudeste, norte e centro-oeste, trabalhando em fazendas e empresas
urbanas, sem deixar de gravar na memória o universo humano, as
desigualdades sociais, a convivência entre pobres e ricos, as
diferenças étnicas, a qualidade de vida, a marginalidade, a política e
a cultura.
Depois de mais de 5 décadas de viagens pelo Brasil, Manuel Renato
Gomes conseguiu editar o livro de memórias, através da "Petry -
Gráfica e Editora Ltda.", de Brasília/DF, em 2011. O livro é recheado
de pensamentos, adágios, sonetos, críticas aos dirigentes da Nação, a
minoria da classe política que não se preocupa com os problemas
coletivos, etc. Não escapa ninguém que fez e faz o mal ao povo. Nem o
pai escapa. Analise duas estrofes do poema "Espelho" (p.153) e tire
suas conclusões do poema do sertanejo sofredor, mas feliz, hoje: "Eu,
desde menino bem pequeno/meu fraco era brincar no frio e calor/porque
chovendo eu não ia para a roça/E fazendo sol até hoje eu não vou. / Eu
nasci numa bendita fazenda/Que tinha o nome de liberdade/E eu fui um
dos escravos brancos/ Que sofri muito castigo e maldade".
Segundo a romancista Custódia Wolney, no prefácio, "a poesia de Renato
Gomes traduz a sabedoria de um homem que sabe extrair do cotidiano a
essência da vida. Observa, sente. Seu ser é invadido por  uma
necessidade de transformar em estrofes e rimas as faces que  delineiam
um fato. Homem de muita sensibilidade, palavras francas e olhar
sincero. Um artista que foi esculpido ao longo da vida por
experiências que lapidaram o seu ser e por volta dos 50 anos, surgiu
um Poeta pleno com a habilidade de tocar o íntimo do coração do
leitor, com suas palavras cheias de verdade e sentimento. Goiás Velho,
cidade de Cora Coralina, de Goiandira Couto, e tantos outros
importantes artistas, ganha hoje um grande Poeta, Renato Gomes, que
vem fazer história e acrescentar sua forte e marcante contribuição ao
acervo cultural da cidade".
Renato Gomes escreve talqualmente fala o homem do povo. Apesar de
pouca instrução, ele é rico em cultura popular e assegura: "Ser
inteligente com humildade e simpatia é caminhar em direção ao último e
mais alto degrau da competência e sabedoria. Fazer o mal é fácil, o
difícil é colher o fruto que ele produz". "Memórias de um leigo" foi
produzido pela Petry Editora, SIBS , Q.03, Conjunto "A", Lote 11,
Núcleo Bandeirantes -DF. Tel (61) 3386.2944/ 3879.9292/ - imeio:
petrygrafica@gmail.com
Obs.: O livro de Francisca Noélia de Oliveira, "Grandes Personagens do
Sertão - A história dos esquecidos pela história",  Editora Travessia,
Manaus, 2012, é outra obra literária, que deve ser lida pelos amantes
da poesia e prosa de uma parte do Seridó potiguar. Manoel Renato Gomes
e Francisca Noélia de Oliveira são curraisnovenses, mas não se
conhecem. Ambos se preocupam com os problemas sociais e dos excluídos.

*Luiz Gonzaga Cortez é jornalista.