A morte de D. Altina,
esposa de José da Penha
Professor da UFRN,
sócio do IHGRN e do INRG
Cem anos atrás, o capitão José da Penha incendiou este Rio
Grande do Norte com suas palavras flamejantes. Mas antes disso, o capitão mais
atrevido das nossas forças armadas se envolveu em outros episódios de luta. As
críticas que pronunciou sobre o morticínio em Fortaleza, no dia 3 de janeiro de
1904, acabaram gerando sua prisão. No jornal “A Província” de Pernambuco
encontramos o relato da morte de D. Altina, no Forte do Brum.
Preso na fortaleza do Brum desde o dia 18 de dezembro último
(1904), o alferes do 17º batalhão José da Penha Alves de Sousa, foi ontem ao
anoitecer ferido por um dolorosíssimo golpe.
Esse distinto oficial, que veio do Ceará sem nota de culpa
aguardar aqui deliberação do marechal ministro da guerra, a cuja ordem se acha
preso, trouxe consigo a sua esposa Altina Alves de Sousa, senhora assaz formosa,
ornada de belos dotes de coração e de espírito e extremosamente dedicada ao
marido e à duas filhinhas que constituíam a alegria e a consolação do casal
através da vida forasteira e acidentada que constitui quase sempre a carreira
militar.
O alferes José da Penha, por sua vez, nutria pela família um
afeto extremo e um desvelo a toda prova, de sorte que, fossem quais fossem as
atribulações da existência, havia de reinar entre eles uma felicidade relativa,
a felicidade do lar pelo menos.
No entanto, D. Altina, senhora altamente impressionável, não
estava satisfeita; não por si, mas por julgar-se um obstáculo à carreira do
marido. Daí a tresloucada ideia do suicídio que a assaltou, ideia que por mais
de uma vez pretendeu levar a efeito, conseguindo fazê-lo afinal ontem (9 de
janeiro de 1905) às seis e meia horas da noite.
De nada valeram as prevenções e as cautelas do alferes José
da Penha e da criada Damiana, uma criada de rara dedicação que acompanhava D.
Altina desde a infância.
A desventurada senhora, não se sabe como, conseguiu uma
cápsula para o revólver que o marido tinha o cuidado de trazer sempre
descarregado e fechado na mala, e, ontem à citada hora, apoderando-se da arma,
carregou-a e disparou-a contra a têmpora direita.
Ao estampido, o alferes José da Penha, que tomava café da
parte de fora com dois outros oficiais, correu, como muitas outras pessoas,
para o ponto de onde ele partira – um compartimento de tabique situado a um
canto da sala cedida ao casal. Ali deparou, preso do mais doloroso assombro,
uma cena desoladora. A esposa jazia por terra, insensível e banhada em sangue;
a morte fora instantânea.
A inditosa moça
desprendera-se da vida sem uma contração de agonia, sem um traço de amargura no
rosto e, quando mais tarde a vimos naquela mesma sala, então transformada em
uma câmara mortuária, parecia mais uma criatura serenamente adormecida de que
um cadáver. Apenas traziam à ideia o tristíssimo sucesso algumas manchas
vermelhas sobressaindo nas ataduras brancas que abraçavam a cabeça da morta.
- Logo que teve conhecimento do fato o general Serra Martins
compareceu a aquela praça de armas e providenciou para que se iniciassem
imediatamente os competentes inquéritos: militar e civil. Neste intuito
comunicou o ocorrido ao Dr. Chefe de polícia que fez seguir para ali o Dr. Glycério
Gouveia, delegado do 1º distrito. Além desta autoridade compareceu também o Dr.
Souza Paraízo, delegado do 2º distrito.
Entre os muitos oficiais que foram à fortaleza do Brum
enquanto lá estivemos, notamos os tenentes coronéis Alberto Gavião e Eduardo
Silva.
Reinava geral desolação entre as pessoas ali reunidas,
desolação a que nos associamos, apresentando condolências ao brioso oficial.
Dois dias depois da publicação acima, o alferes escreveu
para a redação.
Senhor redator: - De par com os meus agradecimentos pela
tocante e carinhosa notícia do inesquecível sucesso do dia 9, aceitai uma breve
explicação, a que não posso renunciar.
Afirmaste que era minha desventurada esposa, altamente
impressionável, conjeturando-se um obstáculo à minha carreira do que lhe
advieram tendências para suicidar-se. Consente-me que vos ministre mais
acertados informes.
Desgraçadamente mais do que pura impressionabilidade,
comandam o corpo e o espírito as prepotências da alienação mental, que a
martirizaram três vezes no curto lapso de oito anos. De cada uma, conforme
fosse o delírio ou a mania, deixava ou não de ter, consoante a lei que preside
ao desdobrar daquela triste moléstia, as impulsões suicidas, o que lhes servem de
instrumento os objetos mais inconcebíveis, confirmam todos os profissionais, de
qualquer procedência ou escola.
Cessada a causa dessa obstinação intraduzível, que fazem
somente ideia pouquíssimas pessoas, o que mais torturava aquela alma de santa,
era justamente o horror de suas “criminosas tentativas”, como lhes chamava ela.
Repugnava-lhe às crenças religiosas, restauradas nos
momentos de trégua, achar desculpa, mesmo estando alienada, para quem atentava
contra a própria vida. E quando de fato se restabelecia de todo, transpunha os limites
do normal o seu desejo de viver para os nossos filhos. E os modestos incitamentos,
com que me impelia à conquista do seu mais forte ideal – um nome para seu
esposo, adquirido na luta pela justiça e pela liberdade, - ultrapassavam identicamente
a zona, em que se agitam as fragilidades comuns à maioria das pessoas do seu
sexo.
Tanto assim, que o meu derradeiro tributo à sua alma, será
imolar-me sempre quando for oportuno, aos meus ideais, em que apoia minha
consciência de crente e homem livre.
Reiterando meus comovidos agradecimentos, subscrevo-me vosso
patrício e admirador. J. da Penha.