O O F í C I O D E E S C R E V E R
Gileno Guanabara
O ofício de escrever trata do mister
de ler e garimpar palavras. Não apenas o sentido filológico das expressões, mas
também a forma mais escorreita, a busca erudita de maior sentido e alcance,
tendo em vista a quem se destina comunicar o objeto da manifestação. Não se
trata de um ofício espécie exclusiva que só os ungidos dos deuses são capazes
de exercê-lo. Sendo assim, há momentos de dúvidas, de correições, de trato
sucessivo das palavras, a cada rabisco e leitura, que torna exigível o reparo,
o detalhe quanto a forma e o conteúdo, enfim, torna-se imensurável o prazer de cambiar
as palavras e vê-las mais exatamente compreensíveis. O fato de ler a imprensa,
suas crônicas diárias e colunas, faz bem.
Não me reporto à forma absolutamente irrepreensível
do mestre Machado de Assis em sua produção literária. Mais próximo de nós temos
exemplos de lapsos de redação ou de revisão que subverteram o sentido da
palavra ou de orações inteiras. Para o conforto de Graciliano Ramos, um dos
melhores estetas da nossa língua, a palavra “estrambólico” se deveu a uma
imperícia de revisão em um periódico. Na verdade, a intenção do articulista era
a de referir-se a um fato extravagante, esquisito, incomum. No entanto, com a
circulação da edição, a palavra reinou a partir de então. O que devia ser estrambótico
passou doravante a ser aceito como estrambólico.
A crônica carioca também incorreu em
imperícias que distorceram o flagrante, por mais factual se assemelhasse à
verdade dos fatos. D. Pedro I, Imperador do Brasil, se dava o luxo de
frequentar ambientes festivos, ainda que com as devidas cautelas e protocolos.
Pairava sobre sua majestade a fama de conquistador e devorador de corações, sem
o pejo de vulnerar sentimentos angelicais de anjos femininos feridos pelo ardor
do cupido.
Na condição de simples mortal, D.
Pedro também estava sujeito às intempéries da vida. Levou um tombo de uma égua,
quando de um torneio esportivo, o que lhe causou uma luxação da perna. Forçado
ficou a usar de um par de muletas, a fim de cumprir os compromissos sociais.
Atendeu a um convite que tratava de uma festa no bairro da Lapa boêmia, no Rio
de Janeiro. Durante o evento não dançou nem exercitou seus dotes
cavalheirescos, haja vista a sua perna acidentada. Ao se retirar, tarde da
noite, os “paparazzi” de então cercaram D. Pedro à busca de notícias do
acidente. Foram dadas as explicações necessárias, enquanto o Imperador se ausentou
conduzido em sua carruagem.
No dia seguinte, a principal manchete
do jornal carioca dava conta da saída à francesa do Imperador: “Sua Majestade
retirou-se furtivo do baile, amparado por um par de “mulatas”. Se bem que de
fácil confusão, dada a fama do monarca, entretanto, o erro foi crucial haja
vista que em vez de “muletas” a revisão deixou passar “mulatas”, o que se
tornou motivo de uma crise política no Império.
Dias desses, escrevi a palavra
“enfiteuta do universo” que reportei ao amigo Ticiano Duarte, dadas as suas
hostes maçônicas e desde que é acanhado o meu conhecimento da matéria. A dúvida
veio-me depois e quase se instalou uma angústia, para conferir o sentido daquela
referência. Volvi ao mestre Aurélio e dissipei a dúvida: “enfiteuta pessoa
titular da enfiteuse de um bem dominial”. Afora o sentido técnico, o uso da
expressão foi deveras correto e apropriado.
Aproveito o ensejo dessa coluna para
agradecer o apoio singular de Marcos Aurélio, da articulista de cultura, Anne
Medeiros, do Jornal de Hoje, ao possibilitar a publicação das crônicas de que
me valho como colaborador. Sob títulos e assuntos diversos, me exponho ao
encontro dos amigos e leitores desse conceituado jornal, emitindo opiniões,
fatos e personalidades que fizeram e fazem a vida nossa de cada dia mais feliz.
A publicação do livro “A Cidade do
Natal e as historias do nunca” reuniu o Prefácio de João Batista Machado e a Apresentação
de Ticiano Duarte, escudeiros das lutas democráticas recentes em nosso pais. De
nossa parte distribuímos os convites que nos foi possível.
Na noite de sexta-feira congregaram-se
gerações de personagens que venceram os dissabores da escuridão política de
1964. Fizeram-se presentes políticos de gerações mais recentes, representantes
daqueles que já não se encontram entre nós, parentes e simpatizantes da cidade,
todos para saber quais as “histórias do nunca” que temos guardadas dentro de
nós. Uma felicidade geral de reencontro. Wilma, Garibaldi, Roberto Furtado,
Ney, Valério Mesquita, Hermano, Carlos Eduardo, Aldo Tinoco, Ticiano,
Machadinho, Salésia, Cecy Dieb, Campelo, Carlos Furtado, Josemá, George Câmara,
Luis Lopes, Rubélio, Ivaldo, Neemias, Gilvan, me desculpem os demais que se
fizeram presentes.
A Cidade do Natal carece ver
inscritas as suas histórias e seus atores. Sejam histórias do nunca, sejam
histórias outras que estão à espera de serem contadas. Cumpri a minha parte. A
todos que atenderam ao convite os recepcionei juntamente com os meus
familiares. À Cidade do Natal que trago e conheço repilo a conjura dita por
Mário de Andrade: “Nesta Rua Lopes Chaves/Envelheço e envergonhado/Não sei quem
foi Lopes Chaves.” Meus agradecimentos a todos os que me apoiaram nesse conluio.
Que assim seja.