A Revolução de 1922
OS 18 DO FORTE
"Que povo não se orgulharia de possuir na raça tais leões?"
1. Às Portas da Revolução
Domingo, 2 de julho de 1922. O decreto de fechamento do Clube Militar, anunciado pelo governo, é debatido em Assembléia dirigida pelo marechal Hermes da Fonseca, presidente do Clube. Presentes cerca de 600 oficiais, em clima de grande agitação. Contra o tenente Gwyer de Azevedo, que discursa na tribuna, disparam apartes o major Euclides Figueiredo, o coronel Tertuliano Potiguara, os generais Setembrino de Carvalho, Napoleão Felipe Aché, Carneiro de Fontoura, membros da cúpula militar comprometida com a velha ordem que começava a desmoronar. O relato do episódio, firmado pelo próprio tenente Gwyer de Azevedo, é representativo da tensão que marcava a época. Oito anos e três meses mais tarde, a oligarquia cafeeira seria derrubada do poder pela Revolução de 1930.
Tenente Gwyer: ... Os jornais noticiam que o senhor Presidente da República ...vai mandar seus agentes fecharem amanhã o Clube Militar, baseado numa lei proíbe as sociedades de anarquistas, de cáftens e de exploradores do lenocínio...
Major Euclides Figueiredo: O senhor Presidente da República tem toda a razão.
Tenente Gwyer: Vossa Excelência concorda que o presidente feche o Clube Militar baseado naquela lei?
Major Euclides Figueiredo: Concordo.
Tenente Gwyer: Então Vossa Excelência é cáften? É explorador do lenocínio?Queira desculpar porque, francamente, eu não sabia.
Marechal Hermes: O senhor tenente Gwyer precisa modificar a sua linguagem...
Tenente Gwyer: ... O que revolta é oficiais emprestarem seus galões a um bandido, ... deixando-o cavalgar livremente o Exército e fechar o Clube Militar de maneira infame, injuriosa e opressora.
Coronel Tertuliano Potiguara: Vossa Excelência se atreve a chamar o senhor presidente da República de bandido?
Tenente Gwyer: Ele não é somente bandido, é ladrão também, está provado...
Capitão Teopon Vasconcelos: Vossa Excelência é indigno de vestir a farda do Exército. Não agrida seus superiores!
Tenente Gwyer: Eu falei com o coronel Potiguara, e não com o seu ordenança...
Capitão Teopon Vasconcelos: Vou lhe mostrar quem é o ordenança, seu cachorro...
Marechal Hermes: Se os senhores oficiais continuarem nessa linguagem, serei obrigado a suspender a sessão. Todos nós somos do Exército, e o que está se passando aqui depõe contra nossa cultura e nossa educação. Continua com a palavra o Tenente Gwyer de Azevedo.
Tenente Gwyer: A observação do senhor presidente atinge aqueles que me obrigam a responder com violência aos apartes violentos e indelicados...
Coronel Potiguara: Vossa Excelência é um cretino.
Tenente Gwyer: Cretino é Vossa Excelência. Não estamos no Contestado, onde Vossa Excelência mandava fuzilar a torto e a direito...
General Setembrino de Carvalho: Fosse eu presidente do Clube, esse oficial não continuaria a falar.
Tenente Gwyer: ... Como poderia ser presidente deste Clube um oficial-general que na campanha do Contestado roubou da nação dois mil e seiscentos contos, assinando recibos fantásticos de víveres e deixando os soldados morrerem de fome?
Coronel Potiguara: Vossa Excelência é um caluniador:
Tenente Gwyer: Vossa Excelência toma as dores porque mandou encher de palha os 15 vagões que deveriam levar roupas para os soldados no Contestado, remeteu 30 volumes de pedras no lugar de 30 volumes de granadas ... fluidificou 20 mil pares de botas de montaria que nunca foram vistas, em ponto algum do planeta, a não ser nas algibeiras de Vossa Excelência, vastas como o oceano...
General Napoleão Felipe: Torna-se necessária uma reação da nossa parte, porque esse oficial está nos enxovalhando.
Tenente Gwyer: Vossa Excelência também tem rabo de palha..
General Napoleão Felipe: Aponte uma irregularidade minha.
Tenente Gwyer: Vossa Excelência, na França, requisitou dinheiro do Tesouro Nacional para pagar dívidas contraídas em conseqüência de jogo e libertinagem... Isso está no relatório do embaixador do Brasil enviado ao Ministério do Exterior.
General Napoleão Felipe: Mas esse embaixador é um canalha...
Tenente Gwyer: Não sou o culpado. Entenda-se com o senhor embaixados.
Marechal Hermes: Não posso aceitar os termos em que o senhor está se expressando...
Tenente Gwyer: Senhor presidente... Estamos às portas da revolução!
2. A República do Café
Em 1894, com a ascensão de Prudente de Moraes à presidência, a oligarquia cafeeira paulista assumira o controle da República.
A produção do café viera se expandindo continuamente, desde 1830. A partir de 1870, com a marcha para o Oeste paulista e a introdução da mão de obra assalariada, esse crescimento foi fortemente acelerado. Porém, no final do século, grandes dificuldades despontaram no horizonte.
Em 1893, a saca de café no mercado internacional estava cotada a 4,90 libras. Em 1899, o preço caíra para 1,48 libras - uma queda de 70% em seis anos. Sob comando dos cafeicultores, a resposta do governo era a desvalorização cambial. A oligarquia cafeeira recebia menos libras por cada saca de café. Mas compensava a perda no momento em que trocava as libras valorizadas pelos mil-réis desvalorizados.
Do outro lado da moeda, o preço, em mil-réis, dos produtos importados se elevava. Como a oligarquia não queria nem ouvir falar em política de industrialização, o país seguia importando quase tudo o que consumia. Portanto, quem acabava pagando a conta da política de manutenção dos lucros do café através da desvalorização cambial era o povo, assolado por uma inclemente carestia.
Em 1901, a produção nacional de café atingiu 16,3 milhões de sacas, enquanto o consumo mundial era de apenas 15 milhões. O problema tornava-se mais grave.
Em 1906, uma nova política foi inaugurada, através do Convênio de Taubaté. O governo paulista - secundariamente os de Minas e Rio -, com o aval do governo federal, contrairia empréstimos junto aos bancos ingleses e norte-americanos para comprar e estocar café, de modo a que a oferta excessiva do produto não acarretasse a redução dos preços.
O resultado era previsível: estoques invendáveis se acumulariam e os bancos não abririam mão de receber seus empréstimos. Para atendê-los o governo acabaria promovendo a socialização dos prejuízos, drenando os recursos do conjunto da sociedade.
Batizada de política de valorização do café, esse expediente arquitetado para garantir lucros à oligarquia cafeeira e ao sistema financeiro internacional, às custas da expropriação de todos os demais setores da sociedade, perdurou até a Revolução de 1930, convivendo, inclusive, em vários períodos com a desvalorização cambial.
Tal situação se refletiria diretamente sobre o sistema político. Na impossibilidade de mantê-la através de regras minimamente democráticas, seus beneficiários transformaram o processo eleitoral num grosseiro cambalacho.
Além do voto a bico de pena - aberto e não secreto - que propiciava toda a sorte de pressões, intimidação e encabrestamento dos eleitores, o sistema de apuração alterava escandalosamente o veredicto das urnas.
A designação de todos os componentes das mesas eleitorais era de responsabilidade exclusiva dos presidentes das casa legislativas. Depois de colhidos e contados, os votos eram incinerados. Sobravam as atas, cuja validação e totalização também estavam sob estrito controle dos presidentes dos legislativos.
Quando isso não se mostrava suficiente para alijar os candidatos oposicionistas, as comissões de verificação de poderes das Assembléias Estaduais e da Câmara Federal, nomeadas pelo mesmo critério, se encarregavam da degola: termo pelo qual celebrizou-se o ato de transformar candidatos derrotados em vencedores e vice-versa.
Tal sistema eleitoral, fraudulento até a medula, garantia às elites estaduais o controle sobre sua província e à oligarquia paulista, coadjuvada pela mineira, o controle sobre a máquina federal.
Só uma única vez, em 1910, uma cisão entre paulistas e mineiros produziu a brecha que levou à presidência da República um candidato fora do eixo café-com-leite, o marechal Hermes da Fonseca.