O RENASCIMENTO DE CUNHAÚ
Valério Mesquita*
Câmara
Cascudo, em sua Acta
Diurna publicada em "A REPÚBLICA", em 13 de outubro
de 1945, dizia:
"Não há trecho de terra mais sagrado para
nós. Foi o primeiro núcleo industrial da Capitania e a região mais revirada
pela guerra e molhada de sangue. Ali viveram os filhos e descendentes do
fundador da Cidade do Natal. Ali lutaram Felipe Camarão e Henrique Dias. Ali
viveu na tranqüilidade André de Albuquerque.
Lutas, festas, crimes,
atrocidades, riquezas, alegrias, orgulhos, poderio, tudo passou como poeira ao
vento solto.
Restam as ruínas negras,
guardando a lembrança sem pausa do martírio. Sem túmulo, rondam, no silêncio da
noite tropical, as almas dos sacrificados.
A Capela era o cemitério
aristocrático dos Albuquerque Maranhão. E um altar inteiro, devocionário de
religião instintiva, como os heróis que se dedicam ao Deus do Céu e ao Rei da
Terra."
Em
1985, a
Capela de Cunhaú foi restaurada pela Fundação José Augusto com o apoio das
Fundações Pró-Memória e Roberto Marinho. A tarde festiva do seu ressurgimento,
foi a maior emoção que vivi ao longo dos cinco anos que passei na F.J.A.
Ali
há o convívio equilibrado entre o místico e o humano. Território livre da
fantasia, Cunhaú é o grande palco onde melhor se revela a alma de uma época e
os seus valores essenciais. Numa singular procissão de lembranças, hoje, os
gestos, os passos, as silhuetas dos que povoaram o templo e as cercanias se eternizam.
Cunhaú exerce sobre nós um poderoso fascínio, uma paixão obscura e recôndita,
nunca aplacada nem satisfeita, a conduzir a imaginação em viagens lendárias e
míticas, ao universo feudal dos Albuquerque Maranhão, dos fidalgos, dos colonos,
dos escravos, dos religiosos, dos índios e dos invasores, como se tudo ainda
estivesse suspenso no ar, como nos versos de Manoel Bandeira. A reflexão dessas
paredes da Capela de Nossa Senhora das Candeias nos conduz a essa pátria dos
sonhos, terra das ilusões, de almas taladas à ferro e a fogo, como se fôra um
desejado e atingível Paraíso Perdido.
Enfim,
evoco a Capela de Cunhaú, neste canto de página emergido do escuro nebuloso e
mágico, engrandecida na reconstituição de arquitetos, engenheiros, pedreiros e
serventes, todos historiadores manuais de sua magnitude esplendorosa.
Hélio
Galvão, à maneira proustiana, diz que o tempo perdido pode ser procurado.
Talvez até recuperado. O poder da evocação pode fazer o milagre de repassar aos
nossos olhos a paisagem que desapareceu, as pessoas que já não vivem ou refluir
aos ouvidos a voz emudecida e trazer de novo à memória, aos pedaços, episódios,
fatos, gestos, modos que não vimos nem participamos.
A
necessidade da restauração da Capela era um desejo acalentado há muito tempo. A
decisão política culminou com a determinação do então Presidente da
SPHAN-Pró-Memória, Dr. Marcos Vinícius Villaça, através da visita à mesma
conosco acompanhado, em princípio de 1985. Adotamos como critério a
reincorporação dos elementos antigos constituintes da mesma, como a lápide, a
pia de água benta, local do sino e finalmente a imagem de Nossa Senhora das
Candeias, sua padroeira, com a finalidade de mantermos acesa, para gerações
futuras, a chama que testemunha nosso passado histórico.
Ver
a Capela hoje é ouvir, é sentir. Por isso, ouçamos Cascudo, novamente, que
dizia em 1949, pedindo a sua restauração:
"O Forte dos Reis Magos e Capela de Cunhaú
tem sido constantes tão vivas e permanentes na minha atividade provinciana como
os dois movimentos fisiológicos da respiração.
A Capela de Cunhaú é o
santuário do Rio Grande do Norte.
Lugar de morte pelo ódio e
em louvor da fidelidade à tríade antiga consagradora, a Deus, ao Rei e à
Família.“
Era
a antevisão de Cascudo há 45 anos atrás. O apelo emocional depois atendido.
A
Fundação José Augusto, ao restaurar em 1985 aquele relicário, ressuscitou um
desfile sonoro, a paisagem das almas, o firmamento de sonhos, o chão dos
túmulos que guardam os espíritos. Enfim, resgatou a memória histórica do Rio
Grande do Norte.
(*) Escritor.