MOTA NETO, A FORÇA DA NATUREZA
Tomislav R. Femenick
Vicente da Mota Neto era meu primo em
segundo grau. Era filho de Francisco Vicente da Mota e Maria Marcília de
Miranda Mota e nasceu Mossoró (RN), no dia 06 de novembro de 1914 e ali cursou
o primeiro e segundo graus. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito de
Fortaleza (CE), em 1937 e exerceu a advocacia em sua cidade natal, até que foi
nomeado Promotor Público.
Além de suas atividades na área do
Direito, dedicou-se ao segmento salineiro – uma das atividades econômicas de
sua família –, sendo um dos fundadores e presidente da Cooperativa dos
Salineiros do Norte-Riograndenses Ltda. Ainda no setor salineiro, foi
superintendente do Instituto Brasileiro do Sal, com sede na cidade do Rio de
Janeiro, quando esta ainda era a Capital da República.
Seguindo a tradição familiar, Mota Neto
também se dedicou à política partidária. Seu avô, Vicente Ferreira da Mota
(coronel da Guarda Nacional) tinha sido intendente da cidade de Mossoró; seu
pai, Francisco Vicente Cunha da Mota, havia governado o Município no período de
1914 a
1916; seu tio, monsenhor Luiz Ferreira da Cunha Mota (ou Padre Mota, como era
mais conhecido), foi deputado estadual e prefeito de Mossoró por 12 anos; e seu
irmão, Francisco Miranda da Mota, foi eleito vereador e vice-prefeito, tendo
assumido a Prefeitura de Mossoró no período de 1951 a 1953.
O primeiro cargo público assumido por
Vicente da Mota Neto foi o de secretário de seu tio, o Padre Mota, quando este
era prefeito da cidade. Posteriormente, quando a Cúria Romana restringiu as
atividades políticas dos sacerdotes católicos, Padre Mota renunciou ao cargo de
Prefeito e indicou Mota Neto foi para terminar o seu mandato. Com expressiva
votação, elege-se Deputado Federal Constituinte
em 1946 pelo PSD, voltando a ocupar o cargo de representante potiguar na Câmara
Federal na legislatura seguinte. Em 1958 elegeu-se Deputado Estadual e presidiu
a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte de 1960 a 1961.
A bancada do Rio
Grande do Norte na Assembleia Constituintes de 1946 era composta de nove parlamentares,
sendo cinco do PSD, três da UDN e um do PRP/PSP. Mossoroense, só o deputado
Vicente da Mota Neto que, com o senador Georgino Avelino e os deputados
Dioclécio Duarte, Augusto Varela e monsenhor Walfredo Gurgel, fazia parte da
bancada do PSD. Pela UDN, eram constituintes o senador José Ferreira de Souza e
os deputados Aluízio Alves e José Augusto Bezerra de Medeiros. João Fernandes
Campos Café Filho foi eleito pelo PRP/PSP.
Muito embora empresário do setor
salineiro mossoroense, Mota Neto era um defensor da classe trabalhadora. Sua
atuação política voltava-se para a proteção dos trabalhadores das salinas,
principalmente pela ameaça de desemprego da classe, pela mecanização e pelo
emprego de novas tecnologias do parque produtor de sal. Teve, ainda, expressiva
atuação junto à classe ferroviária, sendo um dos seus líderes, lutando por seus
direitos e conquistas. Sua base política foi toda a região Oeste do Estado,
muito embora mais concentrada nas cidades de Mossoró, Areia Branca, Grossos,
Apodi, Açu, Caraúbas e todos os Municípios do Estado cortados pela Estada de
Ferro Mossoró-Souza.
1. Um
articulador invulgar
Em todos os agrupamentos sociais há
indivíduos e grupos com interesses divergentes, situação que termina por
provocar a luta entre esses indivíduos e grupos, cada um deles buscando fazer
com que seus interesses sejam entendidos como os interesses homogêneos da
sociedade como um todo. É essa luta em busca da predominância que ínsita a
política e faz com que os homens procurem atingir o poder, pois somente através
dele o grupo predominante poder se impor aos demais. Se um dos conceitos sobre
política diz que ela é a arte de governar uma instituição, uma cidade, um
estado ou um país, uma acepção ampla, a define como o estudo do fenômeno do poder,
este entendido como a capacidade que as pessoas ou conjuntos associativos
organizados têm de exercer controle sobre as outras pessoas ou outros conjuntos
de indivíduos.
O estudo da política como ciência levou
alguns pesquisadores a vinculá-la a três situações, todas ligadas ao poder: a
luta pelo poder, o conjunto de instituições por meio das quais esse poder é
exercido e, por último, a interpretação teórica da origem, estrutura e razão de
ser do poder.
Visto por esses ângulos, Vicente da Mota
Neto foi um ser eminentemente político e partidário.
Dizia que na política não tinha nenhum inimigo; só tinha opositores. Porém o
seu caráter de amigo fiel aos correligionários e adversário ferrenho dos
opositores fazia com que, às vezes, ele abrisse luta interna em seu próprio
partido, o PSD. Foi o que aconteceu em 1960. Quando o PSD lançou Aluízio Alves
como candidato a governador, Mota Neto discordou e liderou a dissidência
pessedista que passou a apoiar as candidaturas de Djalma Marinho para
governador e Vingt-un Rosado para vice. Nessa campanha, como nas outras, foram
exploradas ao máximo as suas qualidades de orador de massa. Era anunciado nos
comício como o “embaixador da dissidência”.
A atuação política foi a credencial que
justificou a sua nomeação, pelo Governador Dinarte de Medeiros Mariz, para
Ministro (hoje Conselheiro) do Tribunal de Contas do Estado, em novembro de
1957. Meses depois, o TCE teve suas atividades interrompidas em decorrência das
circunstâncias políticas vividas naquela época. Ao lado dos outros ministros,
Mota Neto foi incansável na luta para fazer funcionar a Corte de Costas do
Estado. Percebeu que o mais importante era a união de todos em prol de uma
grande causa, que terminou por ser vitoriosa, com instalação TCU em 12 de
janeiro de 1961, já na gestão do governador Aluízio Alves, tendo Mota Neto como
seu primeiro presidente.
Aqui se destacou uma característica pouco
divulgada do político Mota Neto: a sua invulgar capacidade de articulador, o
seu poder de contornar dificuldades e encontrar soluções. Quando exercia as
funções de secretário da Prefeitura de Mossoró, o Padre Mota – seu tio e
prefeito na ocasião – sempre se socorria dessa qualidade do seu auxiliar. No
Congresso Nacional foi a Mota Neto que, por duas vezes (uma em 1949 e outra em
1952), os dirigentes a OAB-Ordem dos Advogados do Brasil recorreram, na
tentativa de alterar os artigos 10, 11 e 14 do regulamento então vigente da
instituição. Antes, na Constituinte de 1946, foi o grande articulador em defesa
dos interesses dos pequenos e médios produtores de sal, contra a tentativa de
domínio das grandes corporações salineiras, bem como na luta pela manutenção do
Instituto Nacional (depois Brasileiro) do Sal, embora fizesse criticas ao
comportamento elitista de sua direção.
2. O
teatro da política
Vicente da Mota Neto faleceu no Rio
de Janeiro, cidade onde viver grande parte de sua vida, no dia 13 de janeiro de
1981, aos 66 anos. Acometido de uma prolongada doença, um câncer sem condições
de reversão clínica, ele não faz da fatalidade uma tragédia. Não perdeu o seu
jeito alegre de viver; tão alegre que, às vezes, quem não o conhecia poderia
achar que era irreverente. Não podendo subjugar a doença, reverteu a atuação
dos personagens: recusou o papel de vítima e era ele quem confortava os
familiares e os amigos, dizendo que já tinha realizado tudo o que de bom deseja
da vida e que a tinha vivido intensamente, tirando dela tudo o que poderia ter
aproveitado. Veio ao Rio Grande do Norte se despedir dos amigos. Entre tantos,
em Natal tomou uns “whiskys regulamentares” com Ticiano Duarte; em Mossoró foi
com Emerson Azevedo apreciar o “néctar dos escoceses” no Bar de João Pinheiro.
Vicente da Mota Neto, o Mota Neto ou o Motinha dos mossoroenses era assim mesmo
– imprevisível, desconcertante, irrequieto; um bom vivant até nas adversidades.
Já sabendo da gravidade de sua
doença, foi a São Paulo se despedir de parentes, minha mãe, sua prima legítima,
eu e meus irmãos. Nós sempre tivemos uma relação muito próxima, principalmente
enquanto vivi em Mossoró.
Por exemplo: era em meu escritório que Mota Neto e Vingt
Rosado, então ferrenhos opositores políticos, se encontravam para “acertarem” o
nível em que deveriam se desenvolver as campanhas políticas comandadas pelos
dois. Mota entrava pela frente, o no. 10 da Rua Francisco Izódio;
Vingt vinha pela Avenida Augusto Severo, passava pela residência de Juvenal dos Santos Sobrinho e entrava por um acesso
lateral. Saiam cada um fazendo o mesmo caminho. Poucas pessoas sabiam
desses encontros. Pelo que eu sei, somente Aluízio Alves, Dix-huit Rosado, Emerson Azevedo e Elviro Rebouças.
Na visita que nos fez na
capital paulista Mota Neto não permitiu tristezas. Estávamos tomando vinho,
conversando sobre a nossa Província quando ele nos fez dois pedidos: que não
fossemos ao Rio quando “as coisas piorassem” e que eu tomasse nota de alguns
dados e fatos a seu respeito, principalmente sobre o que ele pensava sobre
política. Esses apontamentos já estavam quase que perdidos, tão fragmentados e
inelegíveis, resultado dos anos que se passaram e de tantas mudanças.
Recompondo e recordando alguns trechos, é possível trazer à tona alguns
fragmentos do pensamento político de Vicente da Mota Neto – constituinte de
1946, ex-deputado federal, ex-presidente da Assembleia Legislativa do Estado do
Rio Grande do Norte e primeiro presidente do Tribunal de Contas do Estado do
Rio Grande do Norte.
Sempre qualificado como um líder populista,
ele assim explicou sua maneira de fazer política:
– Política é
coisa séria e deve ser feita no interesse do povo, mas ela tem um lado que é
puro teatro. É assim em todo o mundo, porém no Brasil esse aspecto é
determinante da vitória ou da derrota. O político que não fala uma linguagem
que o povo entenda está fadado a perder tantas vezes quanto ele se candidate.
Assim perderam o brigadeiro Eduardo Gomes, Cristiano Machado e o general Lott a
presidência da República. No Rio Grande do Norte, foram derrotados Jocelyn
Villar, em 1955; Djalma Marinho, em 1960, e Dinarte Mariz, em 1965, quando concorreu
contra Walfredo Gurgel. No campo dos vitoriosos, o nosso Estado tem um dos
maiores líder populista (se querem chamar assim) do país – Aluízio Alves, um
homem que fala diretamente com o povo, sem palavras difíceis, intermediação e
sem arrodeios. Dizem que em política feio é perder – não é bem assim, mas tem
certo sentido. Ora, então a minha opção foi falar para o povo sobre assunto de
seu interesse e com palavras que ele entendesse. Se isso é populismo, então
sempre fui populista.
Interrogado se
essa sua maneira de pensar não seria um caminho eminentemente oportunista, Mota
Neto respondeu:
–
Oportunismo (e mais que isso, se aproveitar do povo) é usar os eleitores como
massa de manobra. É usar de certas circunstâncias para alcançar cargos eletivos
e não cumprir aquilo que foi prometido durante a campanha. Minha base eleitoral
sempre foi Mossoró, o Oeste, os salineiros, os ferroviários, os trabalhadores e
os pequenos produtores de sal. Na Câmara Federal, na Assembleia Legislativa e
até no Tribunal de Contas sempre fui fiel a essa base. Sempre fui assim e isso
até por inteligência, pois o povo não perdoa as promessas falsas assim como não
desculpa os falsos profetas. O povo quer ver o que os seus representantes fazem
por ele. Veja um exemplo: quando fui eleito deputado federal pela primeira vez,
fiquei muito envolvido com os problemas da Constituinte e da ordem jurídica
nacional (inclusive me debatendo pela alteração de alguns artigos do regimento
da OAB), embora também tivesse atuado em defesa dos salinistas, dos
ferroviários e dos assalariados de uma forma geral. O problema é que essa
“atuação populista” não foi divulgada. Resultado, só voltei ã Câmara como
suplente, assumindo a vaga de Café Filho, que foi eleito vice-presidente da
República.
Sobre sua relação
com Aluízio Alves:
– Na
Constituinte de 1946 não eram muito boas. Diria até que eram ruins, pois nem
nos falávamos. Uma vez ele tentou uma aproximação e eu refutei. Lembre-se que
nós todos estávamos aprendendo a fazer democracia e que ainda havia muito
radicalismo no ar. Depois passamos a ter um relacionamento, digamos assim,
cordial. Mas, nessa fase, nunca tomamos whisky juntos. Na campanha de 1960 Aluízio
deixou a UDN e foi lançado candidato a governador pelo meu partido, o PSD. Não
concordei e abri uma dissidência partidária e passei a apoiar Djalma Marinho.
Portanto, me posicionei contra Aluízio. Ai veio o episódio do Tribunal de
Contas do Estado. Três anos antes, o governador Dinarte Mariz havia criado o
Tribunal, nomeado os ministros (inclusive eu), porém não o instalou. Aluízio
ganhou as eleições e se posicionou contra o Tribunal. Ai veio a luta de todos
os ministros nomeados, independente dos partidos a que estavam ligados: fazer
entendimento com o governador. Foi nessa ocasião que nos aproximamos e fizemos
mais que uma parceria política, fizemos uma sólida amizade pessoal,
indissolúvel.
Falando sobre os Rosados, Mota Neto,
ressaltou alguns fatos:
– Sempre que
falam na minha posição política perante a família Rosado, me colocam como seu
antagonista. Não é bem assim. Em 1948 apoie Vingt, quando ele se candidatou a
prefeito de Mossoró; na campanha de 1950, quando Dix-Sept foi candidato a
governador, eu o apoie; quando Vingt foi candidato a vice-governador, em 1960,
eu o apoie novamente. Em outras ocasiões fiz oposição dura, com marcação ponto
a ponto, como nas campanhas de 1958, contra as candidaturas de Dix-huit e Vingt
(para o Senado e para a Câmara), e na de 1968, contra a Vingt-un (que se
candidatara a prefeito de Mossoró). Aliás, não por defeito de Toinho (Antonio
Rodrigues de Carvalho), o candidato que teve o meu apoio e que foi eleito, mas
pelas qualidades de Vingt-un, essa foi a única postura política que eu assumi e
que, às vezes, me questiono se agi cem por certo.
Instado a falar
sobre o movimento militar de 1964, o ministro Mota expressou o seguinte
pensamento:
– O
presidente João Goulart, com suas derivadas à esquerda, simplesmente alarmou um
parcela importante da população brasileira, justamente aquela que tem poder de
influenciar: a igreja, a classe média e os militares. Esses segmentos da
sociedade foram os que reagiram mais prontamente, mas havia a reação silenciosa
dos agricultores e industrial. O golpe foi consequência. O problema é que o
remédio se transformou em veneno, quando Costa e Silva resolveu se candidatar a
sucessão de Castelo Branco, dando inicio à casta militar que se apoderou da
presidência da República. O endurecimento da ditadura, com o AI 5, fez com que
os interesses pessoais e corporativos do donos do poder e de seus cupinchas
passaram a prevalecer em qualquer situação. As cassações políticas são o
retrato desse fato; a de Aluízio Alves é emblemática.
3. A força da natureza
Para Romildo Gurgel, seu companheiro e
sucessor na presidência do Tribunal de Contas do Estado, ele era “a própria
força da natureza”. Dorian Jorge Freire, simples amigo e nunca correligionário
ou eleitor, o descreve como “extrovertido, moleque, estroina, boêmio,
presepeiro. Livre, gratuito, irresponsável e indomável como a natureza de Mossoró”.
O Padre Mota, seu tio, contava que às vezes esperava ter um chicote para
amansá-lo e, em outras ocasiões, tinha desejo de possuir quatro mãos para
aplaudi-lo. Raimundo Soares de Souza, ex-prefeito de Mossoró, chamava-o de “o
ferrabrás inveterado e benfazejo”. Minha avó, sua tia e madrinha, dizia que ele
era “uma criança que não tinha crescido e se movia com a força do vento”. Todos
estavam falando do mesmo homem; Vicente da Mota Neto. E da história do político
Mota Neto não há como esconder ou tentar esquecer a importância do homem
Motinha, como era mais conhecido entre seus amigos de Mossoró, Natal, do Rio de
Janeiro e dos quatro cantos do Brasil. O que todos nele reconheciam era a
imorredoura alegria de viver.
Entretanto esse homem possuía outras
facetas. Essas se não pouco conhecidas são, porém, pouco comentadas; a
compenetração, seriedade e responsabilidade com que encarava tarefas que exigem
essas posturas. Em duas ocasiões essas suas qualidades foram postas à prova.
Primeiro por ocasião da redemocratização do país, logo após a segunda guerra
mundial, quando integrou a bancada do Rio Grande do Norte à Assembleia Nacional
Constituinte, na qualidade de deputado federal. A segunda, quando teve que
liderar, juntamente com Romildo Gurgel, um movimento entre os primeiros
ministros nomeados e não empossados do Tribunal de Contas, para que a Corte de
Contas do Estado fosse efetivamente posta em funcionamento. Em
sua última visita à capital paulista, por volta de 1980, tivemos uma longa
conversa, da qual tomei notas dos pontos mais importantes. Esses dois assuntos
foram destaques.
Sobre a criação do Tribunal de
Contas do Estado, em novembro de 1957, no
governo de Dinarte Mariz; o imbróglio acontecido no inicio do governo de
Aluízio Alves (que não permitia a estruturação do TCE, porque o novo governo
interpretava o ato do seu antecessor como “uma herança de fim de governo”), e
suas articulações que terminaram por criar condições para o funcionamento da
Corte, Mota Neto fez o seguinte relato:
– Dinarte Mariz assinou
a lei que criava o Tribunal e nomeava os componentes do seu plenário, quando
ainda faltavam mais de dois anos para o fim do seu governo. Portanto, nada
poderia identificar esse ato como uma partilha de final de mandato, de um
governante que não elegeu o seu sucessor. Entretanto é necessário que se faça
uma viagem no tempo e retornemos a 1960. A campanha política desse ano talvez
tenha sido a mais disputada e a mais sectária da história do Rio Grande do
Norte – pelo menos o foi depois de 1945 para cá, mesmo considerando os anos
dessa ditadura que ai está. Só para se ter uma ideia do cenário, vejamos dois
caso. Aluízio era da UDN, saiu e foi o candidato do PSD. Eu era do PSD, criei
uma dissidência e apoie Djalma Marinho, candidato da UDN e do governador
Dinarte Mariz. A campanha foi dura e com ataques nem sempre limpos, de lado a
lado. Foi nesse ambiente que a verdadeira alma de Aluízio Alves apareceu,
mostrando-o como um homem esculpido para comandar massas, comandar o povo, o
povão. Do nosso lado tínhamos o Djalma, uma cultura extraordinária, um homem de
conduta impoluta, porém um homem destinado às lides de gabinetes. Mas havia o
apoio de Dinarte e, inevitavelmente, o poder da máquina governamental. Nesse
contexto os ânimos se acirraram. Cada lado tudo fazia para vencer; e muitos
jogando jogo sujo. O resultado foi o radicalismo se espalhando por toda a
campanha. Parecia até que os candidatos não eram simples opositores. A luta
deu-lhes a performance de inimigos. Como não poderia deixar de ser, passada a
campanha ficaram as sequelas do combate.
– Quando Aluízio Alves
assumiu o governo em 1961 – continuou –, o radicalismo político ainda reinava
no Estado e ele seria o primeiro governador a ter suas contas examinadas pelo
Tribunal que foi criado por Dinarte, como ministros nomeados por Dinarte. Sua
atitude foi a esperada, recorreu à justiça contra a criação e instalação do
TCE, pois esse faria parte do “inventário de Dinarte” e seria uma espécie de
vingança contra o homem que o derrotou, impedindo a eleição de Djalma Marinho.
A situação foi parar nos tribunais de Brasília. Foi ai que nós, os ministros
nomeados, nos unimos para superar o problema. Empenhei toda a minha capacidade
de articulador e Romildo Gurgel toda a sua argúcia, no sentido de fazermos
funcionar o Tribunal de Contas, pois sua ausência fazia do Rio Grande do Norte
uma anomalia na República. Fizemos prevalecer a constitucionalidade de sua
criação, perante o Supremo Tribunal Federal. Mas a batalha final foi convencer
o governador Aluízio Alves que o TCE, como instituição, era maior e mais
importante que todos nós. Assim, não havia porque apequena-lo com atos de vendeta
política. A partir daí nossas relações com o executivo foram bastante
amistosas. O mais importante disso tudo foi que, na tentativa de solucionar
esse problema, tive de me aproximar de Aluízio Alves. Descobri uma grande
figura humana. Hoje nossa amizade é sólida e inabalável.
A propósito de sua atuação na
Constituinte de 1946, Mota Neto relatou que:
– Aqui temos que fazer
uma incursão pelo passado. Até antes do termino da segunda guerra mundial, o
Brasil não tinha conhecido nada que se parecesse com uma democracia verdadeira.
No Império e na República Velha os votos eram manipulados, a votação era aberta
e somente uma parcela muito pequena da população podia votar. No governo de
Vargas tínhamos avanços e recuos, porém sempre prevalecendo ‘a vontade do
dono’, do próprio Getulio Vargas. Ai o Brasil vai à guerra contra as ditaduras
de Hitler e Mussolini. A vitória dos aliados nos deixou em uma situação impar:
se combatíamos as ditaduras na Europa, tínhamos de combater a ditadura aqui
mesmo. Não deu outra. Vargas caiu e foi convocada uma Assembleia Constituinte.
Mas nós, os que fomos eleitos, não conhecíamos a verdadeira democracia. Nossa
herança, o que recebemos dos nossos pais, das gerações anteriores e da tradição
era um legado de autoritarismo, a ponto de tratarmos os simples opositores como
se todos eles nos fossem hostis. Via de regra, logo no começo dos trabalhos da
Constituinte era assim que nos comportávamos. Depois, com o passar dos tempos,
começamos a entender que as coisas não deviam ser bem assim. Ai a Constituinte
andou e acho que fizemos um belo trabalho. Eu me orgulho de ter participado da
Assembleia de 1946.
Solicitado a falar sobre sua atuação na
primeira legislatura da Câmara Federal, após o Estado Novo, Mota Neto disse:
– A minha participação
pode ser vista de dois ângulos: a minha atuação interna, com trabalho
intramuros, sem visibilidade pública, e a minha participação perceptível, que
podia ser vista. Dediquei-me muito mais aos trabalhos de comissões e
subcomissões, principalmente aquelas que estavam ligadas ao ordenamento
jurídico do país que queríamos. Para isso contei com a ajuda da Ordem dos
Advogados do Brasil, que colocou três jurisconsultos a minha disposição. Um
deles foi o grande Sobral Pinto, em cujo escritório se davam as reuniões de
estudo; para que não se dissesse que a OAB estava se imiscuindo na
Constituinte. Acho que me sai bem, porém foi um trabalho sem holofotes. Também
fui atuante em plenário, abordando os problemas do
Rio Grande do Norte, defendendo a indústria salineira – principalmente os
pequenos e médios produtores – a realização de obras e serviços no interior do
Estado, a ampliação e modernização das ferrovias e a incorporação das ferrovias
Mossoró-Souza e Mossoró-Porto Franco à Rede Ferroviária do Nordeste, o que
terminou por acontecer.
5. A
força do direito
Ordenar quer dizer organizar um conjunto
de elementos, relacionando-os de forma lógica, atribuindo-lhes categorias e
escalões de importância e prioridades, de tal forma que todo fator possua uma
causa e um efeito. Esse é um dos pensamentos básico da doutrina do direito,
ciência que tem por finalidade regulamentar a conduta social do ser humano.
Utilizando-se de conceitos abstratos e de normas concretas, a ciência do
direito estrutura o ordenamento jurídico das relações das pessoas e dos vários
segmentos da sociedade. Assim é que as leis, os códigos, regulamentos e outros
elementos do direito dão o arcabouço geral das prerrogativas e
responsabilidades dos cidadãos. Daí por que a ordenação jurídica de um país é
um enunciado objetivo e obrigatório de como devem ser executados esses direitos
e deveres.
Entretanto, a ordenação jurídica e a
realidade objetiva devem ser consideradas em suas respectivas plenitudes;
compreendidas no contexto histórico, nas condições sociais, econômicas e
políticas e seus condicionamentos. Entendida
desta forma, conclui-se que somente uma Constituição nascida de uma situação
histórica propícia a essas condicionantes pode dotar um país de uma ordenação
jurídica orientada pelos parâmetros da razão. Por isso é que nenhuma Assembleia
Constituição pode construir um estado de direito, se os senhores constituintes
abandonam as circunstancias da realidade cultural, social, política e
econômica, se se voltarem eminentemente para elementos abstratos. Se assim
fizerem, a Constituição (e as leis que dela derivarem) poderá ser apenas uma
carta de intenções, desassociada da vida real da nação.
No último encontro que mantive com
Vicente da Mota Neto, por volta de 1980, já perto do seu falecimento, ele
abordou a sua participação na Assembleia Nacional Constituinte de 1946,
oportunidade em que atuou, formal ou informalmente, nos trabalhos das comissões
e subcomissões que estavam ligadas a formatação do ordenamento jurídico do
país. Nessa tarefa ele contou com o assessoramento informal da Ordem dos
Advogados do Brasil, nas pessoas de três renomados jurisconsultos, inclusive o
doutor Sobral Pinto, em cujo escritório se davam as reuniões. Naquela ocasião
pedimos a Mota Neto que ampliássemos nossa conversa sobre o assunto.
– A própria composição
da Assembleia, a origem dos partidos políticos pelos quais foram eleitos os
deputados e senadores constituintes, ressalta a dificuldade de se ampliar as
conquistas democráticas no pós-guerra. Hoje, passados quase 35 anos, podemos
ver a situação real: na Câmara Federal o PSD, o meu partido, tinha mais de 150
representantes, a UDN cerca de 80, o PTB getulista tinha pouco mais de vinte, o
PCB 14 e os outros menos de 20. No plenário geral (Câmara e Senado juntos)
estavam o ex-presidente Artur Bernardes, do PR, e Luis Carlos Prestes, do PCB,
inimigos ferrenhos na década de 1920; Otávio Mangabeira e Afonso Arinos, da UDN
e antigetulistas, e também Gustavo Capanema e Agamenon Magalhães, ex-ministros
da ditadura de Vergas... e o próprio Getulio. Como se ver, o predomínio
aparente era de forças liberais e democráticas que, juntas dominariam
folgadamente. Mas a realidade era outra. No PSD haviam muitos coronéis do tipo
da República Velha e na UDN e no próprio PTB o liberalismo democrático era mais
de fachada que de propósito. Ai estava a dificuldade de se fazer uma Carta
Magna que assegurasse uma ordem jurídica que reconhecesse realmente os direitos
do todos os cidadãos e não somente dos mais afortunados.
– A grande dificuldade, minha e de um grande
numero de constituintes compromissados com a ordem jurídica do país que
queríamos – continuou Mota Neto –, estava no aprimoramento do texto do Capítulo II, do Título IV, da nova Constituição, que
trata dos Direitos e das garantias individuais das pessoas. A grande vitória
foi inserir o parágrafo 35, que obrigava o Poder Público a conceder assistência
jurídica gratuita aos necessitados.
E olha que isso era apenas um retorno de uma garantia existente em Constituições
anteriores à editada pelo Estado Novo getulista. Que direitos são esses,
afinal? Basicamente são quatro: a defensoria pública gratuita, para aqueles que
não podem arcar com os custos advocatícios e processuais; o de requerer aos
poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidades e abusos
praticados por esse mesmo poder público (já previsto nas Constituições 1824 e
1934, porém restringido na Carta de 1937, que o limitava à situações ‘de
direitos ou do interesse geral’); o de pleitear a anulação de ato considerado
lesivo ao patrimônio público, e a obtenção de certidões de repartições
públicas, em defesa de direitos ou para esclarecimentos (esses dois últimos já
contemplados na Constituição de 1934). Notes alguns que esses princípios foram
respeitados até pelos atos, Constituições e leis editadas pelo atual regime
militar.
Indagado sobre a formatação dos poderes
do estado e das suas relações com a sociedade civil, respondeu:
– A
democracia representativa exige que se faça uma ordenação clara dos poderes e
dos limites dos poderes do estado em sua relação com a sociedade civil. É
preciso, também, que se faça claramente a extensão dos direitos dos indivíduos
e, para que isso aconteça, as leis têm que ser coercitivas para os cidadãos e,
necessariamente, para o executivo, o legislativo e o judiciário. Da mesma
maneira que as pessoas não podem extravasar dos seus direitos, o estado não
pode arbitrar, determinar, seus poderes. Esta é a mais pura forma de
manifestação do Estado Democrático de Direito, a maneira de se evitar o
predomínio do poder do mais forte. Para darmos mais aptidão a esse aspecto
constitucional contamos com a colaboração de um grande jurista potiguar, Miguel
Seabra Fagundes, que menos de dez anos depois terminou por ser Ministro da Justiça
no governo de Café Filho. Esse foi um trabalho duro, pois tivemos que enfrentar
as obstruções de parte daqueles que esperávamos que assim o fizesse – Gustavo
Capanema, por exemplo – e também de alguns parlamentares que julgávamos
populistas – principalmente do Estado de São Paulo. Era uma luta de bastidores
que não se refletia nem no plenário, nem na imprensa. Mas vencemos.
Por que é que tendo feito todo esse
trabalho para a construção de um estado democrático no país (para o qual
certamente teve que resgatar todo o seu aprendizado da ciência do direito) para
o grande público você é conhecido somente como um bom vivan, uma figura de grandes amizades, um vividor? Por que essa
sua face de construtor social é apagada, permanece escondida?
–
Primeiro porque sou mesmo um “bom vivan”, cultivo a amizades dos meus amigos e gosto
muito de viver a vida. E a vida não tem somente o lado serio. Não. Ela é uma
composição múltipla. Uma mesma pessoa tem vários papéis para representar. Por
que um homem que faz coisas sérias não pode dar umas boas gargalhadas? Pode
sim. O padre Mota foi um dos melhores prefeitos da historia deste país;
guardadas as proposições de Mossoró para com as outras cidades. Isso não lhe
impedia de ter o seu lado brincalhão. Getúlio e Juscelino foram grandes
presidentes, o primeiro chegado aos volteios gaúchos e o mineiro era um “pé de
valsa” danado. Lá fora também. O próprio presidente Kennedy, um mito da
historia, era muito dado às diversões. Do lado de lá, também. Fidel, Mao
Tse-Tung, Stalin e o próprio Marx; todos agiam da mesma forma. Então por que eu
haveria de ser diferente? O caso é que eu sou visto pelo povo, ando no meio das
pessoas, converso com elas e vivo a vida que elas vivem. Daí é que vem o rótulo
de populista, de vivedor. O trabalho sério, por sua vez, é realizado em
gabinetes, onde somente uma parcela das elites transita. Eu vivo as duas
versões: estou onde o povo está e convivo com as elites.
Pouco tempo depois dessa nossa
coversa, soube da morte de Mota Neto, o meu primo Motinha, “uma criança que não
tinha crescido e se movia com a força do vento”.