CANGACEIRO: FRUTO DA FALTA DE
JUSTIÇA QUE IMPERAVA NO SÉCULO
PASSADO NO SERTÃO NORDESTINO
Reportagem de Tomislav R. Femenick, publicada no jornal Diário de Pernambuco, de 23 junho de 1968.
É preciso que se faça um pouco de justiça quando tivermos de
revisitar a vida dos cangaceiros e bandidos que infestam o Nordeste
brasileiro, numa fúria de preamar de crimes, tropelias e devastações.
Quando se diz “cangaceiro”, eu me recordo do famoso, Jesuíno
Brilhante, que fizera justiça com o trabuco, na falta daquela que
deveria punir com a Lei.
FALTA DA JUSTIÇA – A falta de Justiça, no interior do País, gerou
esse fruto perigoso que foi o cangaceiro, irmão siamês do banditismo.
Jesuíno Brilhante, no entanto, não foi um bandido, na expressão do
termo; foi o homem do cangaço, rebelde contra os seus inimigos. Isso nos
idos do Império e albores da República, tendo como cenário, municípios
do interior norte-riograndense e paraibano. Esse cangaceiro-cavalheiro
protegia os fracos, as mulheres e todas as vítimas das misérias daqueles
tempos.
Antônio Silvio foi cangaceiro, também, e, como rezam as histórias
das suas façanhas, protegia os pobres, dava esmolas, defendia os
injustiçados. Devassava com os seus cabras, emboscando e, algumas vezes,
queimando as propriedades e matando seus inimigos. Quando entrava numa
fazenda, povoado ou vila, pedia apenas abastecimento para continuar a
luta a fim de não ser capturado.
RIFLE PELO EVANGELHO – Deixou prole e alguns de seus filhos, são de
hoje oficiais das nossas forças armadas. Na cadeia dizia haver trocado o
rifle pelo evangelho e morreu manso e regenerado. Tornou-se cangaceiro
para vingar a morte de seu pai, cujo matador ficara impune e sob a
proteção de maiorais políticos.
Cangaceiros houve no Nordeste, em várias épocas: gente que
enfrentava de armas na mão os mandões e até a polícia que lhes dava
caça. Não empregavam o chumbo das duas espingardas e garruchas, para o
latrocínio, o massacre, o assassínio de populações inermes. Eram, antes
de tudo, injustificados que se rebelavam contra a má justiça, que, ainda
hoje, gera a revolta das consciências indene a corrupção moral. Há,
entretanto, o bandido, ladrão e assassino, que usava e abusava da lei do
sertão, para matar friamente, massacrar criaturas indefesas e
inocentes, para destruir, roubar e violar mulheres.
FIGURA DE SALTEADOR – Na fila sinistra desse tipo de bandido, está a
figura torva de “Lampião”, – corvo asqueroso e feroz sicário sedento de
sangue e salteador. Produto do tempo, que os tuxauas políticos do
sertão bravio escoravam o seu poderio eleitoral na força brutal do
cangaceiro misturado ao banditismo, pode Virgolino Ferreira, livremente,
talar fazendas, povoados, vilas e até cidades. Os seus sequazes,
recrutados nas paragens sombrias do Riacho do Navio, Serra Duman, Gruta
do Diabo, Vila Bela, porteiras, antros de fanatismo, ignorância e
crimes, constituíam a mais terrível malta de salteadores e bandidos.
Bandido sim, o “Lampião” que hoje serve, o seu nome tenebroso, o
seu estendal de crimes, de temas e assuntos para revistas, livros, radio
e cinema. “Lampião” da “mulher rendeira”, cantiga que hoje muita gente
boa vive a entoar, sem se aperceber de que ela contém o veneno mortal,
destilado pela alma danada de um bronco, bruto e feroz que desconhecia
as fronteiras da virtude e do mais elementar sentimento de piedade
humana. Houve, realmente, de 1912 a 1030, clima propício ao vicejar
dessa planta daninha e maldita que foi o banditismo nordestino.
RAZÕES – As agitações políticas que abalaram os grandes centros do
País as suas raízes plantadas no obscuro sertão. Os coronéis e chefetes
políticos, de vilas e cidades, cercavam-se de contraventores da lei, a
sua brigada de choque e paus para toda obra. Os afamados Contendas, os
Dungas, os Zeinácios de Barro, os Maciés e caterva, foram chefes temidos
pelo seu poderio nos rifles de assalariados.
O banditismo oficializado tomou foros de coisas aceita de fato, nos
vastos sertões do Nordeste, sendo Juazeiros a Meca das hordas bárbaras
que iam receber a bênção do Padrinho Cícero. “Lampião”, ali, invernava
com os sequazes, descansando, refazendo-se, e se reabastecendo de armas e
munições que lhe eram ofertadas ou vendidas pelos seus agentes e
protetores, existentes até nos meios “mantenedores da ordem”. Só depois
que “Lampião” assaltou Mossoró e diante do movimento geral de repulsa e
repercussão causada pela sinistra aventura, fracassada felizmente, e que
se generalizou o combate ao banditismo no Nordeste, numa ação
convergente de todos os governos. Uma caça às feras, constantes e
sistemáticas foi estabelecida, até que, afinal, o tenente Bezerra deu
cabo da vida ao quadrilheiro famoso pelas suas correrias sangrentas
através de vasto trato do sertão nordestino.
PLANO AUDACIOSO – Foi um ambiente favorável ao banditismo que se
arquitetou o mais audacioso plano de assalto a uma cidade à margem do
litoral potiguar. Muito distante do repelente hinterland onde imperava o
trabuco a serviço do latrocínio, do assassino e das ambições criminosas
de coronéis boçais e valentões de tocais – tradicional cidade da
Libertação de 1883 – mansas, ordeira e pacífica, estava, por uma série
de barreiras geográficas e morais, afastada de ser vítima de um assalto.
Primeiro foi a velha Apodi, um mês antes do tenebroso 13 de junho de
1927. Velhas rixas políticas determinaram a horrível pilhagem de maio,
insuflada e dirigida de longe por espúrios elementos sedentos de
vinditas, sangue e latrocínio. Incêndios, mortes, roubos, terror foi a
colheita rubra de um grupo de bandidos.
Incentivo e encorajamento a outras empreitadas, foi o resultado do
saque de Apodi. “Lampião” distante, foi convidado pelo carbonários desse
crime nefando a tentar, em estilo maior, um assalto que o compensaria
as canseiras da longa travessia. Dos sertões adustos de Pernambuco e
Ceará, às fraldas cinzentas da Serra Mossoró, umas oitenta léguas, o
grupo de “Lampião” troteou em boa cavalhada e armado até os dentes,
desceu das serras escarpadas à planície verde dos carnaubais e oiticicas
seculares, certo de fácil colheita em dinheiro e objetos de custo alto.
É certo o ditado popular: “o boi manso aperreado arremete”
certamente; uma centena de homens valorosos deu, em “Lampião” e em seu
grupo de mais de oitenta cabras um carreiro desabalada, deixando mortos e
feridos. O quadrilheiro de fama voltou à sua Caverna do Caco, para não
mais voltar à boa terra de Poti. Em Limoeiro, no Ceará, foi recebido com
farta mesa de boas comidas. Aqui, porém foram-lhe ofertados repastos de
chumbo.
Combatido, em toda a parte, sem tréguas nem estágios, o bandido
feroz foi cedendo em audácia e força, como que amaldiçoado pela vítimas
inocentes da maior e mais infeliz das suas tropelias, e aventuras
sangrentas: o ataque à velha, tradicional, mansa, ordeira e operosa
cidade de Santa Luzia de Mossoró.
40 CABRAS DE LAMPIÃO TOMARAM PARTE NO ASSALTO A MOSSORÓ – José
Leite, temível do grupo de Lampião, que no Rio de Janeiro fora ordenança
de coronel Antônio Francisco de Carvalho, quando foi capturado, após o
ataque frustado à cidade de Mossoró, teve oportunidade de conversar com o
delegado de então a narrar certos fatos da vida errante que levava com
seus companheiros de aventuras.
A narrativa do bandoleiro foi, na época, explorada pelos
jornalistas do jornal “O Mossoroense”, então órgão semanal, que se
ocupou do fato, tecendo comentários sobre o cangaço, que nos serve para
evocar certos e determinados aspectos da entrevista de José Leite,
conhecido na vida criminosa do cangaço como Jararaca.
HISTÓRIA – Ele fora ferido quando Lampião e seu grupo tentava tomar
de assalto a residência do então prefeito Rodolfo Fernandes. Informou na
entrevista que “um tiro desfechado por defensores tocaidos na torre da
igreja de São Vicente atingiu meu companheiro Colchete. Corri para
ajudá-lo o fui igualmente ferido. A bala atingiu meu pulmão direito.
Parei e caí. Fiquei alguns minutos rolando pelo chão e com dificuldade
me dirigi para a estação central, onde fui novamente ferido. Com imensa
dificuldade, arrastei-me para a ponte ferroviária, onde em seus
dormentes fiquei até que fui capturado e levado para a prisão”.
ESTRATÉGIA – Conta Jararaca que Lampião dividira i bando em dois
grupos, a fim de facilitar a tarefa de assalto. Um dos grupos recebia as
ordens do próprio Virgolino Ferreira e outro de Massilon Leite. Os que
estavam comandados por Lampião atacaram pelo lado do cemitério e cada
cangaceiro dispunha de 400 a 500 cartuchos.
GRUPO – Quando do ataque a Mossoró, ainda conforme narrativa de
Jararaca, o bando contava com os seguintes elementos: Sabino, Massilon,
Ezequiel, Virgino, Luiz Pedro, Chumbinho, José Delfino, Manuel Antônio, Á
de Ouro, Candeeiro, Serra do Mar, Vicente Feliciano, Luiz Sabino,
Fortaleza, Moreno, Euclides, Beija-Flor, Quindu, José de Souza, Trovão,
Camilo, Bitivi do Cariri, Dois de Ouro, Jurema de Medeiros –
pertencentes às famílias dos Nóbregas e Medriros do Sabugi – Paraíba,
Sabiá, Pingo de Ouro, José Relâmpago, Vinte e dois e seus irmãos Lua
Branca ,Antônio Cacheado, Pernambuco, Chá Preto, Barro Nova, Pai Velho,
José Pretinho, Luiz Pedro, Mergulhão, Coqueiro e Vareda.
REBATE FALSO – Jararaca, que é pernambucano, de Pajeu de Flores, e
contava, na época, 26 anos de idade, segundo o relato, não demonstrava
arrependimento do que fizera. Explicando por que decidira ser um fora da
lei, disse ser “coisa da vida”. Considerava o cangaço coisa ruim e era
um dos poucos que evitavam que seus companheiros de crime maltratassem
os prisioneiros.
Preso, com muitos curiosos por perto, tendo alguns mais exaltados,
nas imediações da cadeia, ameaçando linchá-lo, o bandoleiro jamais se
perturbou e a tudo olhava com um sorriso nos lábios. Após sua
condenação, quando narrou os fatos, teve oportunidade de dizer que
quando tempos depois, uma volante da polícia militar da Paraíba deu
entrada na cidade, trajada à moda dos cangaceiros, houve uma correria
geral, pois se pensava ser Lampião que voltava para libertar os
prisioneiros e liquidar todos. O fato é que nada disso acontecia, pois o
que “Lampião desejava, quando retornava ao local de qualquer massacre,
era conseguir dinheiro a fim de subornar a polícia pernambucana”.
PODER DO DINHEIRO – Contou Jararaca que na Polícia Militar da
Paraíba existia um sangrento, o Kelê, que usava cabelos longos, como
promessa que fizera de vingar um seu irmão, que fora assassinado por
Lampião, quando ambos viviam no cangaço. Kelé, ex-cangaceiro,
pertencente ao grupo de Jararaca, passara para a vida militar por
dinheiro, pois o Governo da Paraíba esquecera seus crimes, lhe
oferecendo o posto de sargento e a direção de uma “volante” para dizimar
os bandidos.
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