Jornalistas escritores do RN: Entrevistas
16/05/2017
(foto por Cícero Oliveira)
GUSTAVO SOBRAL, O desbravador da regionalidade[1]
Fascinado pela literatura potiguar, ele fala sobre sua
trajetória, revive memórias e destaca a importância do jornalismo em sua
obra
Andréa Tavares / Beatriz Vital / Cícero Oliveira / Jefferson Gomes
Ainda na infância, Gustavo Sobral encontrou na literatura uma fonte
inesgotável de materiais que respondiam às suas indagações, ao mesmo
tempo em que geravam mais curiosidade. Foi na biblioteca dos avós,
herdada na vida adulta, que ele teve grandes encontros com Machado de
Assis, Rubem Braga, Carlos Drummond e tantos outros nomes da literatura
brasileira. Conhecer o mundo, visto apenas nas páginas dos romances,
passou a ser o seu objetivo, e a carreira diplomática era o caminho mais
desafiador.
Gustavo formou-se em Direito em 2006, profissão que parecia a mais
adequada para um diplomata. Logo depois, fez em São Paulo um curso
preparatório para ingressar no Instituto Rio Branco. Sem sucesso, partiu
para a faculdade de Jornalismo, na Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, em 2008.
Quem ouve sua história, não consegue imaginar que o garoto natalense
que pretendia conhecer o mundo, hoje é quem faz o mundo conhecer um
pouco mais de Natal. Sobral usa seu faro jornalístico para remexer
cartas, postais, rascunhos de textos, anotações em livros, manuscritos,
papéis e mais papéis em busca de informações novas sobre importantes
escritores e intelectuais potiguares. Não importa onde esses documentos
estejam: ele corre atrás, com determinação e curiosidade. Uma
curiosidade que se retroalimenta, que o leva de uma missão para outra, e
faz o artista se confundir com sua arte.
A partir de que momento os livros começaram a se tornar indispensáveis em sua vida?
Gustavo Sobral: Meus avós tinham uma grande
biblioteca, porque meu avô comprava muitos livros. Sempre que eu ia lá,
trazia um livro, fosse o que fosse: biografia, livro de história do
Brasil, um romance brasileiro ou estrangeiro. Eu tinha uns 12 anos. Toda
semana, eu lia e devolvia um livro. Então, ia passeando pelos títulos,
descobrindo aquilo que me interessava no momento. Sempre que ia às casas
dos amigos, me enfurnava onde havia livros. Eu estudava no Complexo
Educacional Henrique Castriciano.
Lá também tinha uma biblioteca enorme, sobretudo de autores do Rio
Grande do Norte. Eu tinha bastante curiosidade pela literatura e pela
história do RN, então comecei a ler os autores daqui - Henrique
Castriciano, que foi um grande poeta, Câmara Cascudo. Havia uma pequena
academia de letras, para os alunos, e fui incentivado a participar,
tanto que cheguei a ser presidente de brincadeira. Fiquei na primeira
cadeira. Aquele era um espaço para trocas intelectuais. Fazíamos
leituras e tinha uma pequena revista, na qual publiquei alguns textos.
Nessa época você já pensava em ser escritor?
GS: Não. Eu fazia um curso de português com o
professor Bartolomeu Fagundes. Ele nos incentivava a ler jornal e a
escrever um comentário sobre alguma matéria. As aulas de literatura dele
eram as que me fascinavam. Aqueles livros que todo mundo acha chatos,
de vestibular, Graciliano Ramos etc., passaram a ter um sentido maior
para mim, porque Bartolomeu apresentava a obra e o autor de forma
crítica. Eu ficava esperando aquela aula. Era magnífico. Daí, cultivei o
hábito de também ler jornais, e não só os daqui. Para mim, o jornalismo
é uma grande ponte e fonte de conhecimento. No jornal, eu lia sobre
livros, exposições, filmes, críticas literárias, resenhas. Comecei a
colecionar jornal.
E o que você costumava ler?
GS: Eu lia as coisas mais improváveis. Havia uma
coleção chamada Civilização Brasileira, publicada pela editora José
Olympio, que meu avô tinha quase completa. Era linda, porque o símbolo
era a palmeira imperial. Nela, tinha um livro do Barão de Rio Branco que
explicava a questão do Acre. Até sobre isso eu li. Daí é que surgiu meu
interesse pela diplomacia.
O que interessava a você, na diplomacia?
GS: O diplomata é aquele que precisa conhecer a
história do seu país para mostrá-lo ao mundo, onde quer que esteja. Ao
mesmo tempo, tem oportunidade de conviver com outras culturas e, assim,
crescer. Então, como eu pensava em ser diplomata, sabia que deveria ter
cultura e conhecimento. Eu precisava ler, mas ler coisas boas e, nesse
aspecto, a biblioteca me ajudou bastante.
Mas você pensava em ser jornalista nessa época?
GS: Sim e não, porque minha meta era o Instituto Rio
Branco, era a carreira diplomática. Para ser diplomata, você pode ser
qualquer coisa, então fui fazer direito, que se aproximava mais daquilo
que eu queria. Mas a diplomacia também tem uma relação muito forte com a
cultura. Vinícius de Moraes, por exemplo, foi poeta e diplomata.
E como você se preparou para ser diplomata?
GS: Eu comecei a comprar meus próprios livros e a
construir minha biblioteca. Daí minha avó faleceu, e herdei a biblioteca
dela. Li quase tudo que tem lá. Até latim comecei a estudar, porque se
você quer ser autor, precisa conhecer a língua com a qual trabalha. Fiz
um curso preparatório para o Instituto Rio Branco. A prova para
ingressar no instituto é um terror.
Você tem de ter conhecimentos de geografia, de línguas, de política
internacional, direito internacional, conhecimento de mundo. E também
uma preparação humanística muito forte. No curso tive professores
surpreendentes e me interessei por ciência política. Li Hannah Arendt,
Aristóteles.
Você considera que teve uma infância privilegiada?
GS: Sim, porque sempre tive liberdade para exercer
minha vocação. Ninguém me incentivou, nem me privou. Vim de uma casa de
grandes leitores. Lia-se muita literatura brasileira - Jorge Amado,
Fernando Sabino - e ouvia-se muita MPB - Chico Buarque, Vinícius de
Moraes.
Você tem um autor preferido?
GS: Não. Tenho vários, e mudam de acordo com minha
área de interesse. Não leio por diletantismo. Por exemplo, agora estou
voltado para os cronistas do RN e minha biblioteca e só crônica. Se você
quiser conhecer minha biografia, tem de conhecer, primeiro, a minha
biblioteca. Ela vai crescendo de acordo com os meus interesses. Tem uma
parte que chamo de “cascudiana”, outra de literatura do RN, outra de
história do RN.
Nossas publicações têm tiragens pequenas e os livros são difíceis de
encontrar, por isso fui construindo a biblioteca. Recentemente, peguei
uma parte das obras que não iria mais ler e doei à BCZM [Biblioteca
Central Zila Mamede]. Eu fui um grande leitor de lá durante a graduação
em Jornalismo, então foi uma forma de agradecer e de saber que se eu
precisar daquele livro, ele estará lá.
Quando você decidiu fazer jornalismo?
GS: Não passei na primeira prova do Instituto Rio
Branco. Foi uma frustração e voltei para casa. Eu sempre tive muito
interesse por memórias. Minha avó era uma grande contadora de histórias.
Minha vocação não era tanto para o direito, na forma prática, era mais
intelectual, e então decidi fazer jornalismo. Em 2008, fiz a prova e
passei. Minha primeira aula foi com o professor Luciano Oséas.
Foi a melhor coisa do mundo, porque tinha um site para o qual a gente
precisava produzir matérias. Como eu precisava escolher um caminho para
escrever, fui passeando pelas áreas, até chegar à arquitetura. Fiquei
me perguntando: “Onde estão nossos artistas: Dorian Gray [Caldas],
Newton Navarro?” Então decidi que escreveria sobre aquilo que não
encontro para ler. E aí, em 2010, ingrssei no mestrado em Estudos da
Mídia, onde trabalhei com jornalismo cultural. Fiz o mestrado e comecei a
escrever sobre arquitetura potiguar, tudo ao mesmo tempo. Escrevi um
livro [
Arquitetura moderna potiguar, 2011].
Nele, uso muitas fotografias. Pensei esse projeto não apenas como
texto, mas como forma. O espaço em que aquilo está escrito também
determina a leitura. As notas, coloco de lado, para o leitor não
precisar ficar baixando a cabeça. Nas falas, não uso aspas, porque quero
confundir, quero integrar o meu discurso ao discurso da pessoa que está
contando a história comigo, que são os arquitetos pioneiros ou
moradores das primeiras casas. Eu quis inovar com esse livro.
Inovar, em que sentido?
GS: Eu sempre pensei em como fazer esse trabalho
experimentando a linguagem e o estilo jornalístico. Tanto que o livro
não tem capítulos, mas retrancas. E as histórias sempre têm ligação com a
vida da cidade ou com a minha vida. A capa traz a casa dos meus avós,
que foi uma das primeiras casas modernistas. Começo contando a história
do dia em que o imóvel foi derrubado.
Não me coloco em primeira pessoa. Gosto de ser um narrador distante,
mas que percebam que estou ali. No dia em que a casa caiu, vi que uma
história havia se apagado. Muita coisa tinha sido vivida lá, e estava
representada enquanto existia uma estrutura física. Depois, ficou uma
história apenas sentimental. Aí, comecei a escrever.
Da queda da casa veio a ideia do livro?
GS: Não. A ideia do livro já existia, mas eu não
sabia como contar essa história. A queda da casa foi o ponto de partida.
Cheguei em casa e comecei a redigir a mão. Sempre escrevo a mão. Eu
tinha a estrutura do livro. Fui para o computador e apenas complementei
com as entrevistas, com os livros que já tinha pesquisado. Digo que
contei a história da arquitetura moderna do RN dentro da aventura da
arquitetura brasileira.
Em que livros você trabalhou depois?
GS: Tenho um colega do mestrado, Helton Rubiano, que
é editor de livros e também tem interesse pela literatura potiguar. Nós
conversávamos sobre como há autores importantes que não são reeditados.
Aí encontrei um livro de contos chamado
O solitário vento de verão,
de Newton Navarro. A Natal contemporânea precisa conhecer Newton
Navarro. Mas para fazer esse livro, eu precisava contar quem era esse
homem.
Então, voltei para os ensaios. Mas como incluir o ensaio dentro de um
livro de contos? No posfácio. Li outros livros de Newton Navarro,
entrevistei pessoas, busquei notícias de jornal. Comecei esse trabalho
em 2012. Nas entrevistas, encontrei pessoas que conheceram Newton
Navarro. Cada um com quem eu conversei me fazia um perfil do Newton
pintor, Newton cronista, porque ele foi um homem múltiplo. Pensei: “Por
que não fazer um livro de depoimentos?” Aí escolhemos as personagens e
começamos a fazer o livro, eu, Helton e nossa amiga Angela Almeida, que
fez as fotografias.
Chama-se
Saudade de Newton Navarro. Daí conheci um grande
poeta potiguar chamado Paulo de Tarso Correia de Melo, que é
colecionador, e ele tinha crônicas de Newton Navarro datadas dos anos
1960. Então fizemos um livro de crônicas de Newton Navarro. Também fiz o
perfil biográfico do jornalista Berilo Wanderley [
Berilo Wanderley – o cronista da cidade].
E já tenho outro material. Descobri que Berilo foi estudar na Espanha em 1960 e que mandava crônicas para a
Tribuna do Norte,
contando como era viver por lá. Pensei que daria um livro, também.
Então, continuo com o projeto de publicar grandes escritores, que também
eram grandes jornalistas. A revista
Bzzz me convidou para escrever sobre Zila Mamede. Descobri que Zila era um mundo.
De onde vem essa vontade de escrever sobre Natal?
GS: A casa dos meus avós ficava no limite entre os
bairros de Petrópolis e Tirol. Eu circulava muito por aquela área.
Frequentava a livraria do Essa, a banca do Tota. Enfim, decidi que
precisava escrever um livro sobre Petrópolis. Queria escrever sobre
Natal, mas era muita pretensão. Como estava lendo sobre vinhos e comida,
pensei em escrever sobre pontos de Petrópolis e discutir temas. Então
fiz um livro-crônica, uma grande crônica sobre esse bairro.
Brinco que é um falso guia. Falo de charuto, de chá, das bebidas, a
partir dos lugares que têm no bairro, das histórias que vivi e que me
contavam. Queria alguém que fizesse os desenhos. Convidei um artista da
cidade, mas ele não aceitou, o que foi uma pena, porque eu queria um
livro ilustrado. Inventei um guia de bairro. E comecei a ler guias,
guias de literatos que faziam guias, que são idílicos, por assim dizer.
Fiz em um mês, mas digo que fiz durante a vida toda, porque foi o que
vivi. É um livro pequeno. Meus livros sempre são muito pequenos, como
uma conversa.
Quando não acho quem faça a ilustração, faço eu mesmo. Ao mesmo
tempo, eu fazia um curso de editor gráfico e precisava de um trabalho
final. Decidi ilustrar meu livro. Então, digo que escrevi, fiz a
pesquisa, a apuração, a redação, a edição, os desenhos, os títulos. Mas
você nunca faz um trabalho sozinho. Tenho leitores-cobaias, pessoas de
diferentes idades, como meu pai.
Sempre converso sobre o livro que estou fazendo. E surgem ideias. As
conversas, o viver, são constitutivos da obra de um escritor. O livro [
Petrópolis: Guia prático, histórico e saboroso do bairro]
foi um sucesso. Rapidamente se esgotou. Na época em que produzi o livro
sobre arquitetura, algumas pessoas pensavam que eu era arquiteto. Até
convite para fazer reforma numa casa, recebi. Daí, desse meu interesse
pela arquitetura, surgiu o interesse em escrever sobre casas, mas não
sobre o aspecto físico apenas, mas sobre o aspecto sentimental, a
história.
Fale um pouco dessa pesquisa.
GS: Fiz uma série curta e ofereci para a
Tribuna do Norte.
Mas não queria fazer o trabalho sozinho. Convidei Arthur Seabra, que é
arquiteto e ilustrador, para fazer desenhos e dar outro olhar, outra
interpretação, outra linguagem. Volto àquela história de que jornalismo
não é só texto. Teve muita pesquisa também, porque o jornalista é um
pouco antropólogo, etnólogo. A série fez sucesso e nós continuamos. No
fim, fizemos 30 casas. A pesquisa vai virar um livro.
Nessas buscas, qual a maior descoberta que considera ter feito?
GS: Eu tinha muito interesse por Oswaldo Lamartine.
Comecei a colecionar sua obra. Onde via um livro dele, comprava e lia.
Mas comecei a perceber que existiam lacunas. Percebi que não havia
livros sobre Oswaldo Lamartine, a quem Rachel de Queiroz agradece no
romance
Memorial de Maria Moura pela inestimável ajuda, um
homem que teve correspondência com grandes escritores, um homem de
grandes amizades, pesquisador responsável.
Comecei a conversar com amigos, fui a bibliotecas, achei uma coisa,
achei outra. Fui lendo sobre a obra dele e descobri que as pessoas que
faziam análise da obra só conseguiam chegar ao livro
Sertões do Seridó.
Mas e o resto? Em minhas pesquisas encontrei um elogio de Rachel de
Queiroz que dizia assim: “Tenho aqui numa pastinha ao meu lado,
desenhos, anotações de Oswaldo”.
Fui ao arquivo dela no Instituto Moreira Sales, no Rio de Janeiro, e
comecei a encontrar coisas que não conhecíamos, que ninguém tinha visto.
Ao mesmo tempo descobri cartas que Zila Mamede escreveu para Carlos
Drummond, que nunca haviam sido consultadas. Faço esses dois trabalhos
ao mesmo tempo. Levanto Oswaldo, as relações dele, e escrevo sobre Zila.
O máximo de informações que colho, apresento aqui em Natal. São
trabalhos que têm começo, mas demoram a ter fim.
O mercado da literatura potiguar é...
GS: Riquíssimo. Newton Navarro foi tão bom quanto
Rubem Braga. Mas falta divulgação. As pessoas não conhecem. Não
valorizamos o que temos. Porque, no momento que você sabe quem Navarro
é, que ele tem uma crônica de qualidade e que está disponível, você terá
interesse.
Como é a sua relação com outras plataformas, como os e-books?
GS: O livro sobre arquitetura tinha essa proposta.
Mas fui convencido por Helton Rubiano, o editor, que era para leitor de
impresso. Penso que cada plataforma veio para somar, e não dividir. É
outra mídia, na qual tudo que é compartilhado vira algo perene. Criam-se
conexões. As mídias convivem, mas cada plataforma tem linguagens que
precisamos explorar. O público do aplicativo pode ser o mesmo do livro,
mas vai receber o conteúdo de forma diferente.
As suas leituras são mais voltadas à pesquisa ou você reserva momentos à leitura por mero prazer?
GS: Sempre que leio, estou me divertindo, mas, ao
mesmo tempo, analiso, investigo. Rachel de Queiroz dizia que não era
escritora, era jornalista. Ela publicou muito mais crônicas do que
romances, e ninguém olhou para isso. Então, por que não investigar a
Rachel jornalista? Fiz esse trabalho também; li tudo de Rachel de
Queiroz.
Na sua opinião, a literatura salva?
GS: Salva. Como dizia Ferreira Gullar, porque a vida não basta.
[1] Esta entrevista integra o e-book
Jornalistas escritores do RN: entrevistas, organizado por Socorro Veloso e John Willian Lopes. Natal: Editora Tribo, 2017. p.83-93