OS “CABOCLOS DE CARÚBAS”
Tomislav
R. Femenick – Da diretoria do
IHGRN. Mestre em economia, com extensão em sociologia e história.
O agrupamento de pessoas
conhecido como “caboclos de Caraúbas” é formado por descendentes de Francisco
de Souza Falcão, tenente-general português que chegou a Caraúbas por volta de 1745, trazendo uma carta de sesmarias (título de propriedade que os reis de Portugal davam aos
novos povoadores) que lhe dava direitos sobre as terras da região.
Vindo da cidade do Cabo, em Pernambuco, com familiares e alguns agregados ele
se instalou às margens do Riacho das Carnaubeiras, um afluente do rio Apodi,
onde formou uma fazenda de gado, origem da cidade de Caraúbas.
A família Souza Falcão
exerceu a liderança política e econômica do lugar, até quando as perdeu para os
Fernandes Pimenta. Desde então os seus descendentes passaram a viver nas
localidades Pedras, Retiro, Baixa Grande, Defuntos, Cachoeira e,
principalmente, Mirandas, vivendo com um mínimo contato com outras pessoas que não
os do seu grupo. Hoje esse isolamento está quebrado e os “caboclos” se
miscigenaram com os outros moradores da região, subsistindo apenas na tradição
de alguns pequenos grupos.
Como resultado desse
isolamento (enquanto houve) e dos casamentos endogâmicos (entre familiares), alguns
deles apresentavam atrofia nas juntas ósseas, membros superiores bem maiores do
que o normal, bem como alterações nas articulações das palavras e pouco
desenvolvimento cognitivo. Na segunda metade do século passado foram registrados alguns casos mais graves de anomalias físicas,
inclusive um de hermafroditismo.
POR HERANÇA OU POR TOPONÍMIA?
Subsiste um aspecto a ser resolvido. Talvez baseadas no fato de que a
palavra “caboclo” designa um
individuo nascido da união de índios e brancos, algumas pessoas dizem que os “caboclos
de Caraúbas” são descendentes de índios, chegando a identificar na sua linhagem
Felipe Camarão, o índio herói nacional da resistência à invasão holandesa.
Todavia, os próprios “caboclos
de Caraúbas” não se identificam como tal e atribuem essa designação ao fato de
seus ancestrais serem provenientes da Cidade do Cabo. Para complicar mais ainda
essa problemática, no Município de Caraúbas e nos que ficam em seu entorno há
uma grande população autenticamente resultado da miscigenação de índios com
brancos, notadamente nos sítio Cachoeira e Apanha-Peixe.
PESQUISA ESTÁ ESPERANDO
PUBLICAÇÃO
As primeiras pesquisas científicas sobre os “caboclos de Caraúbas”
foram desenvolvidas em 1967, pelos departamentos de antropologia
cultural, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mossoró, e de sociologia,
da Faculdade de Serviço Social de Mossoró, então faculdades isoladas, antes da
formação da Universidade Regional do Rio Grande do Norte, a atual Universidade
Estadual do Rio Grande do Norte.
Na época desses estudos existiam
cerca mil pessoas nos agrupamentos dos “caboclos”, que viviam em uma pequena
faixa de terra com aproximadamente 100 quilômetros
quadrados. Semianalfabetos, não recebiam nem visitas dos políticos nas épocas
de campanhas (aos analfabetos não era dado o direito de voto); muito menos recebiam
qualquer assistência dos governos.
A pesquisa
pioneira das faculdades mossoroenses não chegou a ser publicada na época de sua
realização. Consta que foi “requisitada” pelas autoridades militares; vivia-se
o tempo da ditadura militar. De lá para cá, diversos estudos já foram
publicados sobre os “caboclos de Caraúbas”, entre eles os de autoria de Maria
Consuelo Oliveira (1994), Raimundo Soares Brito (1999), José Nunes Cabral de
Carvalho (1983), Susana Rolim Soares Silva, (2002), Marcos Roberto Fernandes
Gurgel (2003), Marcos Roberto Fernandes Gurgel
(2003), Roberta Borges de Medeiros Falcão (2005), entre outros.
Em 1964, o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais chegou a manter uma escola que funcionava de sete da manhã
até a noite. Ali eram ministradas aulas para cerca de cinquenta alunos. Na
época em que os estudantes e professores coletaram dados sobre a povoação,
havia apenas uma pequena escola municipal, com menos de dez crianças
matriculadas, pois não existem condições para acomodar um número maior de
alunos.
Muitas pessoas do grupo
jamais tinham visto um médico e, segundo declararam, até então nunca tinham recebido
visita de nenhum profissional de saúde pública. Eram comuns casos de mortes causadas
por uma simples dor. O mais velho dos caboclos possível de localizar tinha
aproximadamente 80 anos, o que era um caso raro entre eles, pois a idade de
sobrevivência média foi calculada em torno de trinta anos. De uma maneira geral
não havia crime e eles não eram dados a bebidas alcoólicas. O maior número de
morte de adultos era por suicídio, geralmente por enforcamento.
A atividade econômica era
voltada para produção agropastoril, principalmente para o cultivo do milho,
feijão e mandioca e criação de caprinos e ovinos. O trabalho era feito com
ajuda mútua, no sistema de mutirão. Produziam farinha de mandioca, para o que
dispunham de três bolandeiras. Todo o excedente de produção era vendido na
feira de Caraúbas, aos sábados, ou em Mossoró; nesse caso via terceiros.
CONQUISTAS FUNDIÁRIAS E MELHORIAS
Pequenas, feitas de
taipa e barro batido, sem espaços para entrada de luz e ventilação, baixas e
sem higiene, assim eram as casas em que vivem os caboclos. No entanto, em uma
delas foi encontrado um rádio de pilha, como sinal de contato com o progresso. Nessa
casa, todas as noites eles se reuniam para ouvir musica e, surpreendentemente, as
notícias sobre política.
Muito embora já tivessem
sido os donos absolutos de toda a sesmaria de Caraúbas, nos anos 1960 eles não
eram os proprietários das terras em que viviam. Eram poucos os que possuem
títulos de domínio. No governo de Aluízio Alves, as terras dos caboclos foram
desapropriadas com o objetivo de doa-las legalmente aos seus moradores,
legalizando a situação de posse e domínio. Até 1967, trinta e cinco títulos já
tinham sido entregues e mais e cento e cinquenta aguardavam o andamento da
burocracia do Estado.
Quando do estudo
realizado em 1967, o maior problema do núcleo era a falta de água, conseguida
apenas em um açude ou em pequenas cacimbas. Às vezes era necessário que se
andasse mais de quatro quilômetros, para se conseguir “algumas latas ou barris d’água”. Foram relatados casos de crianças
que teriam morrido por falta de água.
O esforço para levar
água a esse povo se iniciou em 1968. Foi um misto de festa e pavor. Uns corriam
para perto e outros se escondiam longe. No entanto todos estavam curiosos e
admirados com aquele monstro que se erguia para o ar. Para eles, era algo
inexplicável. Essa cena aconteceu em um entardecer de meados de junho daquele
ano, na terra dos “caboclos de Caraúbas”, quando ali chegaram dois caminhões,
trazendo uma sonda que irá perfurar o chão para resolver um dos seus principais
problemas: a falta de água.
A perfuratriz tinha sido
prometida cinco dias antes por Dix-huit Rosado, então presidente do INDA-Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário,
mas ninguém acreditava que ela fosse realmente para valer, pois, “nem era época
de eleição”.
MÚSICA E DANÇA ATRAÍRAM A ATENÇÃO DE JORGE AMADO
O escritor Jorge Amado e
a pesquisadora Eneida (Eneida de Villas Boas Costa de Moraes, ou simplesmente
Eneida, como assinava seus livros), quando visitaram Mossoró em 1959, foram até
Caraúbas conhecer e estudar os caboclos, principalmente o “samba dos caboclos”.
Essa música e essa dança teriam se originadas no início do século XX, e serviram
para comemorar a colheita, no mês de junho. Jorge e Eneida anotaram que o ritmo
e a dança nada tinham com o samba propriamente dito, pois as mulheres arrastam
os pés e os homens fazem acrobacias, numa coreografia que faz lembrar as danças
ibéricas.
Na ocasião do estudo
acadêmico, quase que já não mais havia a prática dessa tradição folclórica. Somente
três homens e algumas mulheres sabiam dançar o “samba dos caboclos” e apenas um
só homem sabe executar a música (em uma sanfona). Hoje há um movimento que
tenta recuperar essa manifestação da cultura popular.
Em estudo mais recente,
a antropóloga Susana Rolim Soares Silva, afirma que: “Na atualidade, pode-se perceber que tal expressão cultural consiste
numa mistura de samba com danças juninas e é constituída basicamente por três
passos: o Martelo, momento no qual os protagonistas, colocados lado a lado,
pisam fortemente no chão; Cigana, quando os pares começam a rodopiar pelo
salão, equilibrando-se um parceiro no outro na tentativa de se manterem de pé,
e o Maracatu. Os instrumentos musicais que dão o tom da dança são: o triângulo,
a sanfona e o pandeiro, entre outros”.
A religiosidade dos
habitantes do núcleo dos caboclos é um misticismo voltado para uma antiga
imagem de São Sebastião, existente na igreja matriz da cidade. Esse “santo” teria
sido trazido para Caraúbas em 1750 (ou no final do século), quando foi iniciada
a construção da capela que posteriormente foi transformada na igreja que hoje é
a matriz da paróquia. Há alguns anos, os habitantes da cidade resolveram
comprar uma imagem nova e levar o São Sebastião “velho” para outra capela. Os
caboclos não deixaram, inclusive fazendo ameaças. No dia 20 de janeiro de cada
ano, elas vão à cidade para acompanhar a procissão do santo “velho”.
A imagem nova,
mais bonita, nem é olhada. O “santo” é o velho, para esses descendentes dos
fundadores de Caraúbas, uma das maiores cidades da zona oeste do Rio Grande do
Norte. Na festa de São Sebastião, “a
cultura cabocla ganha maior visibilidade, legitimação e diferenciação em
relação a outros grupos, sobretudo os caraubenses, embora estejam unidos pela religião,
pela fé e pela tradição na família vinda de Portugal” – anda segundo Susana
Silva.