A ficção jurídica (II)
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London - KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Na semana passada, afirmei aqui ser possível classificarmos algumas
obras da literatura – e falo sobretudo de romances, novelas, contos ou
peças de teatro – numa categoria ou gênero que denominei “ficção
jurídica”. Dei até alguns elementos que podemos encontrar e medir nessas
obras para os fins dessa categorização. São obras cujos enredos têm
considerável ligação com o direito, uma vez que, entre outras coisas:
(i) boa parte da estória se passa perante um aparelho judicial em pleno
funcionamento; (ii) como pano de fundo filosófico, elas focam uma tensão
entre a falibilidade de um determinado sistema judicial e a noção do
que é a verdadeira Justiça; (iii) são inspiradas em acontecimentos reais
ou mesmo em grandes eventos da história do direito.
Também fui categórico ao dizer que não estava sozinho nesta empreitada. De fato, não estou.
Na verdade, sobretudo nos Estados Unidos da América, no Reino Unido e
na França, desde pelo menos a década de 1980, estudos de “direito e
literatura” (“law and literature”, “droit et littérature”),
especialmente do “direito na literatura” (“law in literature”, “le droit
dans la littérature”), como os que faço aqui, vêm ganhando,
paulatinamente, cada vez mais adeptos.
Peguemos, por exemplo, a
situação dos Estados Unidos da América conforme constatada por Eliane
Botelho Junqueira já faz duas décadas (em “Literatura e direito: uma
outra leitura do mundo das leis”, Editora Letra Capital, 1998): “Em
pesquisa realizada em 1987 entre 175 faculdades de direito dos Estados
Unidos, 38 ofereciam uma disciplina que poderia ser classificada dentro
do tema law and literature (Gammette, 1989), número que, com certeza,
deve ser bem mais expressivo em 1995. Chama a atenção, por exemplo, o
curso ‘Law and Dickens’ oferecido pela Harvard Law School, uma das
principais faculdades de elite nos Estados Unidos”. A situação hoje no
Reino Unido – e eu posso falar isso porque constatei pessoalmente quando
do meu PhD por lá –, no que toca aos estudos do “direito na
literatura”, em termos de quantidade, variedade e qualidade, é
igualmente impactante. E na França, onde estive dia desses, pululam
livros como o excelente “Balzac: romancier du droit” (Editora
LexisNexis, 2012), publicado sob a direção de Nicolas Dissaux, e o ainda
melhor “La littérature française et le droit: anthologie illustrée”
(LexisNexis, 2013), de Claire Bouglé-Le Roux, os quais tenho em mãos
enquanto escrevo este artigo. Muito parecido se dá no Brasil, embora
mais recentemente, com a publicação de livros e artigos voltados à
temática e mesmo com a inclusão desta em alguns programas de cursos de
direito.
E aqui faço uma constatação, fundamentalmente seguindo o
que foi anteriormente observado por William P. MacNeil em “Novel
Judgements: Legal Theory as Fiction” (Editora Routledge, 2012): de fato,
a literatura ficcional tem tomado emprestado do direito muitos dos seus
temas, das suas personagens e da sua dramaticidade. Há uma infinidade
de temas jurídicos de que ela faz uso: justiça, sistema judicial,
prisões, crimes não explicados, homicídios, sequestros, fraudes,
corrupção, heranças contestadas, disputas por terras e por aí vai. Há as
personagens – policiais, advogados, promotores, juízes, partes,
criminosos e testemunhas – em torno das quais pode sempre girar uma boa
estória. E, por fim, há a dramaticidade que o mundo do direito,
sobretudo aquilo que se passa teatralmente em um tribunal, pode
emprestar à ficção.
De toda sorte – e é muito importante que se
registre isso –, se a literatura ficcional faz uso do direito, sob certo
sentido, este também tem se aproveitado daquela. Sem dúvida, embora não
seja bem o papel da literatura ficcional explicar tecnicamente o
direito (e mesmo qualquer outro conhecimento humano), sua contribuição
nesse sentido, sobretudo nas dimensões antropológica e sociológica, é
inegável. A literatura ficcional muito nos auxilia na compreensão do
direito e de seus fenômenos.
Antes de mais nada, como explicam
André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e
literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que
faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”,
publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008): “a literatura pode
servir como importante instrumento mediante o qual ocorre o registro –
histórico e temporal, evidentemente – dos valores de um determinado
lugar ou época – dentre os quais se inscreve a representação do sistema
jurídico, do poder, da justiça, das leis, das funções jurisdicionais,
etc. – no interior do imaginário coletivo e social”.
E mais
sutilmente, como lembram os mesmos autores, “a literatura constitui uma
espécie de repositório privilegiado através do qual se inferem
informações e subsídios capazes de contribuir diretamente na compreensão
das relações humanas que compõem o meio social, isto é, o caldo de
cultura no qual, ao fim e ao cabo, opera o direito”.
Some-se a
isso o fato de que a literatura ficcional geralmente apresenta uma visão
crítica do direito, desprovida ou para além das amarras de um legalismo
que, muitas vezes, embaça a visão e tolhe a iniciativa do jurista. A
análise do direito por intermédio da ficção nos permite o descobrimento
de outros dos seus sentidos, em regra bem mais próximos de um ideal de
Justiça.
Por derradeiro, há também quem defenda que alguns temas
do direito acham-se melhor formulados, aclarados e, sobretudo,
ilustrados em obras-primas da ficção do que em tratados, manuais ou
monografias especializadas da ciência jurídica. Acho até que eles têm um
quê de razão, muito embora, amante da literatura de ficção, neste
ponto, eu reconheça a minha suspeição.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London - KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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