22/01/2015

PADRE MOTA




MESTRE DE MOSSORÓ

Tomislav R. Femenick – Historiador, membro da diretoria do IHGRN.



Luiz Ferreira da Cunha Motta nasceu em Mossoró no final da última década do século XIX. Estudou em sua cidade, em Natal, Recife, João Pessoa e Roma, onde se ordenou Padre em 1922, às vésperas de completar 25 anos de idade. Sua tese em teologia, apresentada à Pontifícia Universidade Gregoriana, obteve a classificação de “bone probatus”; aprovada com excelência.

Regressou à sua cidade no dia 21.10.1922. Segundo reportagem do jornal “O Nordeste”, o novo sacerdote foi recebido na Estação da Estrada de Ferro pelo Padre Manuel Gadelha, Vigário da Paróquia de Santa Luzia, seus familiares e pelo povo, que compunha uma enorme multidão. Formou-se, então, um extenso cortejo em direção à Matriz. Soltaram foguetes e a banda do Grêmio Musical tocava músicas sacras e alegres. No altar-mor da igreja de Santa Luzia, o Padre orou demoradamente ao som de “Sacerdos Magnus” e palmas da multidão.

Quando do regresso à terra natal, o Padre Mota encontrou quase a mesma Mossoró que deixara. O município tinha pouco mais que dezesseis mil habitantes. A cidade possuía trinta ruas, doze praças, cinco travessas e uma avenida, com 1.872 casas, sendo 840 de tijolos e telha, e 1.032 de taipa. Havia menos de trinta escolas primárias, um Grupo Escolar e uma escola de nível ginasial – o “colégio das irmãs”, pois o Santa Luzia estava fechado. As vias públicas eram cobertas com barro e pedregulhos. Não havia calçamento. Quando chovia, as ruas ficavam lamacentas e escorregadias. Durante o dia, o sol imperava abrasador. A escuridão das noites era cortada apenas por poucas lâmpadas de 32 velas, instaladas pela Intendência Municipal. Para reduzir o breu da noite e afugentar os mosquitos, em frente das residências eram acesas fogueiras, misturando-se estrume de gado às brasas.



O PADRE



O novo sacerdote ocupou vários cargos eclesiásticos: capelão do Colégio Sagrado Coração de Maria, vice-diretor do Colégio Diocesano Santa Luzia (quando este reabriu suas portas), capelania do Sagrado Coração de Jesus, responsável pelo ensino da religião para cerca de 1.200 crianças, vigário da Paróquia de Santa Luzia de Mossoró (quando deu início à construção da Capela de São José) e vigário geral da Diocese, de 1936 até o seu falecimento. Na hierarquia da igreja, o seu posto mais alto foi o de Monsenhor.

Meses após tomar posse como vigário da Paróquia de Santa Luzia, o Padre Mota promoveu uma reunião na sacristia da Capela do Sagrado Coração de Jesus, com um número bem reduzido de pessoas. Além dele, apenas seu pai, Vicente Ferreira da Mota, e o comerciante e industrial Miguel Faustino do Monte. O motivo da reunião: a criação da Diocese de Mossoró. Muitas, muitas outras pessoas se agregaram a esse esforço.

Miguel Faustino ficou encarregado de levar o assunto junto à Diocese de Natal, a qual a Paróquia de Mossoró estava subordinada. O coronel Mota junto às autoridades, comerciantes e industriais da cidade, e o Padre Mota, juntamente com o Cônego Amâncio Ramalho, se encarregariam de arregimentar apoio entre os outros clérigos locais. Entretanto, tudo isso deveria ser tratado com absoluto sigilo, para não melindrar as autoridades eclesiásticas da Diocese da capital do Estado. Se houvesse dúvidas quanto ao segredo, dever-se-ia recorrer ao sigilo confessional. O Padre Mota reconheceu: “Foi um recurso maquiavélico, mas a causa era nobre e divina”.

O passo mais importante foi dado por Miguel Faustino junto ao bispo de Natal, Dom Marcolino Dantas. A ele disse que estaria disposto a fazer uma generosa contribuição em bens e dinheiro, quando fosse oportuno transformar a Paróquia de Mossoró em Diocese. Essa contribuição visaria formar a sua estrutura material, para que ela pudesse funcionar sem percalços.

O trabalho durou mais de seis anos. No dia 14.09.1934, o Padre Mota recebeu um telegrama de Dom Marcolino em que este lhe comunicava a criação da Diocese de Mossoró, através de uma bula papal emitida por Pio XI, assinada em Roma e datada de 28 de julho daquele ano. No dia 18 de novembro de 1934, por deferência especial do Bispo de Natal, e em seu nome, o Padre Luiz Ferreira da Cunha Mota presidiu o ato inaugural da nova diocese, pela qual tanto lutara. A celebração teve lugar na Catedral de Santa Luzia e contou com a presença de autoridades e do povo da cidade.



NA LINHA DE FRENTE DURANTE A BATALHA CONTRA LAMPIÃO



Consta que o ataque de Lampião a Mossoró teria sido a ele sugerido pelo político cearense Isaias Arruda e pelo cangaceiro potiguar Massilon Leite Benevides. Como teste, o bando desse último invadiu com sucesso a cidade de Apodi. Então, vários grupos de cangaceiros se reuniram para, juntos, atacar Mossoró. O ambiente era confuso e havia mais de um comando, embora que Virgulino tivesse ascendência sobre todos. Pelo caminho, assaltavam vilas, povoados e fazendas, roubando, batendo, torturando e fazendo reféns, ao mesmo tempo em que destruíam, quebravam e incendiavam o patrimônio daqueles que não eram seus apaniguados ou acólitos. Mas todos esses casos eram preliminares da grande luta: Mossoró.

A cidade se preparou para fazer sua defesa. Foram organizadas trincheiras em diversos pontos da cidade. Segundo o historiador Vingt-un Rosado, no dia 13 de junho de 1927: “Treze horas. O padre Mota [...] vai fazer um reconhecimento pela Cidade. Sozinho, de­sarmado, ei-lo percorrendo todas as trincheiras. O padre Mota e o cônego Amâncio seguem até a atual Pra­ça Rodolfo Fernandes. Começara a luta. [...] Os dois sacerdotes, com extraordinário sangue frio, es­timulam os combatentes. Eram soldados desarmados, os únicos a percorrerem a Ci­dade, na hora difícil. [...] Na Rua Idalino Oliveira, uma bala vinda da Praça da Independência, quase os atingia”.

A luta terminou às cinco horas da tarde. Nenhum defensor da cidade estava, pelo menos, ferido. Os cangaceiros se reuniram ao lado de um muro lateral do cemitério. Um dos atacantes fora morto, seis estavam feridos, quatro em estado grave. Derrotado, Lampião fugiu.



LIÇÕES DE DEMOCRACIA NA CALÇADA DO PADRE



Muito se fala e pouco se sabe o que realmente é democracia.  Na verdade, a maioria a entende apenas como repetição do sistema em que vive ou desejam viver. Todavia, o fundamento maior da democracia é o entendimento republicano de que o indivíduo é “æquabilis in paribus”, igual entre os iguais.

A calçada do vigário era o espaço mais democrático da cidade. Era uma assembleia de amigos, à moda da democracia ateniense, onde todos podiam dizer o que quisessem, desde que ouvissem o que os outros falassem. Tudo de maneira pacífica e civilizadamente, sem discussões acaloradas. Nada foi planejado, apenas aconteceu. Na Mossoró de antigamente, cidade ainda pequena, havia o costume das famílias colocarem as cadeiras na calçada para mitigar o calor com o frescor dos ventos do final do dia. O Padre Mota também fazia isso e aproveitava o tempo para fumar seus charutos. Os vizinhos e as pessoas que passavam, sentavam-se para tirar alguns dedos de prosa. Como eram muitos, criou-se o hábito de todos irem buscar suas cadeiras na sala de visitas do reverendo e depois deixa-las no mesmo lugar. As mais ilustres figuras de todas as correntes políticas, inclusive alguns evangélicos, ateus e comunistas, frequentavam essas reuniões.

Antonio Capistrano, comunista desde 1960 e ex-vice-prefeito de Mossoró, diz que a calçada do Padre Mota era “o ponto de encontro de políticos, intelectuais e comerciantes da cidade, local suprapartidário, democrático, de papos sobre os diversos assuntos de interesses da coletividade, como também não deixava de ter as fofocas provincianas. Os que participavam dessas conversas lembram-se com muita saudade dos finais de tarde da calçada do padre; ele era espirituoso, piadista e conversador. Padre Mota parece que inspirou Che na sua famosa frase ‘ser duro sem jamais perder a ternura’. É essa a imagem que tenho do padre Mota. Severo nas suas convicções, mas extremamente humano nos seus atos. Isso é, para mim, a razão do bem-querer do povo mossoroense ao seu vigário geral. Homem pronto a servir, participando ativamente dos problemas da cidade”.



BRINCALHÃO, O PADRE ENSINAVA QUE DEUS NÃO É TRISTE



Uma das características do cidadão Luiz Ferreira da Cunha Mota, inseparável de sua condição de Padre ou Prefeito, era o seu humor ferino, brincalhão, travesso, com um toque de galhofa e de gracejo fino, sem ser grosseiro, nem nunca descambar para o impudor ou para a agressividade. O Padre Mota sabia rir e não gostava de lamúrias, tristezas ou lástimas. Dizia que Deus não é Triste. Se o fosse, não teria criado o mundo e a vida tão belos. Não teria feito os passarinhos cantar, o amor dos jovens, o sorriso das crianças, o sol, a lua, o mar”. O jornalista Lauro da Escóssia reuniu vários “causos” do padre e publicou um livro com o título de Anedotas do Padre Mota (1986).

Em 1951 aconteceu um caso emblemático do seu humor sagaz. Manuel Leonardo Nogueira levou uma filha para ser batizada na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, cujo vigário era o padre holandês Cornélio Dankers, o qual se recusou a fazer o batizado, alegando que os padrinhos, João Café Filho e sua esposa, eram comunistas. Note-se que Café Filho era o vice-presidente da República. Manuel Leonardo recorreu ao Padre Mota e o batizado foi celebrado na igreja Matriz. Meses depois, o padre Cornélio falando com o Padre Mota trouxe o assunto do batizado à conversa, dizendo que não compreendia a atitude do seu colega. O Padre Mota respondeu: “Cornélio, eu conheço Café. Ele não é comunista coisa nenhuma. No máximo, é um oportunista. Além do mais, ele estava longe. E, mesmo se eles [Café Filho e a esposa] estivessem aqui e fossem comunistas, eu nunca vi comunista comer criancinha”.



PADRE MESTRE



Luis da Câmara Cascudo assim escreveu sobre Padre Mota: “Padre Mestre Luís Mota, Prefeito de Mossoró, gordo, atarracado, baixo, com um passo airoso de moço-fidalgo. Padre que viveu oito anos de Roma e conheceu três Papas, que viu a Itália guerreira, bolchevista e fascista, que aprendeu a olhar o povo como organização e jamais como figura de retórica, aí está tua Mossoró, um orgulho para os olhos e uma saudade para o coração. Ninguém se iluda com tua fisionomia espirituosa e plástica, com o humorismo de tuas graças, com o infalível charuto, com a ponteira incansável de tua bengala negra. Nem pelas anedotas que contas, pelos fatos que evocas deliciosamente. Tua história vibra nesse cenário tu­multuoso e moderno de existência sem desfalecimento”.

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