11/10/2019



REVISITANDO UM MITO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A simplicidade de Oscar Niemeyer era contagiante. Fez-me pegar a caneta como eu gosto e me habituei e passar a escrever ao sabor da emoção. Ateu, mas tão socialista na oferta como Francisco de Assis. Agnóstico, mas tão sábio quanto Agostinho. Reconhecido mundialmente no traço e no poder do concreto quanto Paulo nas planetárias epistolas: lógico e conciso. Tão comunista quanto cristão na concepção arquitetônica de igrejas e capelas pelo Brasil afora. Humilde, acessível e carismático tanto quanto João Paulo II na arte de conquistar o povo de Deus pelo olhar de plenitude e fragilidade. Niemeyer foi maior que qualquer rei do rock, do rap, dos ricaços de qualquer conglomerado empresarial neste país. Isso tudo porque foi um simples, que viveu, amou, se divertiu e se deu a respeito. Nunca ninguém leu o seu nome envolvido em falcatruas em meio a tantas criações e obras em governos mil.
Limpo e feliz, criativo e dedicado, suavizou o concreto e até a morte, nunca dela falando, mesmo a vida se esvaindo. Inspirou-se no mestre Le Corbusier. Brasília, de parceria com Lúcio Costa, ele foi o cara e o coroa quando expirou aos 104 anos. Postava- se tímido, fumante (vejam só), gostava do romance, mas na arquitetura era instintivo. Falava em Deus, mas não acreditava em religião. Já li esse fato em entrevista que concedeu. Claro que foi maior que sua arte. Falava em céu, firmamento, estrelas, tudo criado pelo Supremo Arquiteto do Universo, enquanto ele era “o maior arquiteto do Brasil e um dos melhores do mundo”. Neste último conceito o seu estilo foi inimitável, único e incomparável.
Oscar Niemeyer possuía o dom de viver, daí a longevidade: sem ostensividade, vaidade ou vã glória. Laureado em todo o mundo, mas avesso às homenagens. Quando se sentiu ameaçado no regime militar autoexilou-se em Paris. Não conspirou, não ameaçou nem foi terrorista. Apenas, confiava no comunismo como na sua arquitetura. Ficará conhecido e perenizado pela arte e não pela crença política. Mesmo assim, dava-se a respeito, mais do que muitos que a professaram. Sua morte foi lamentada em todo mundo. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Israel, Espanha entre outros países, ele deixou um legado de obras cativantes, admiradas pela tipicidade e a “curva livre e sensual das suas linhas”.
Mas, a chama inapagável de Niemeyer não se notabilizou tão somente no milagre que esculpiu com a linha reta embelezando as curvas de tantas edificações. Embora centenas, todavia, dezenas de suas criações ao vivo ou a cores pela TV e fotos eu já admirava. Fui, exatamente, me emocionar com a simplicidade cósmica desse personagem. Famoso, rico honestamente – frise-se – no entanto, pacífico, modesto, recatado, ciente de sua transitoriedade. Enfim, um cristão sem reza, oração, igreja ou templo. Um pintor de arcos voltaicos, de auroras boreais, de crepúsculos planaltinos, de galáxias estelares, com um pincel singelo, a pobreza de um proletário, revolucionário, vidente, vermelho mas suave no canto e na voz. Uma personalidade marcante para não ser esquecida que tinha no crayon o sentimento do mundo, apesar da “vida ser um sopro”, como dizia.

(*) Escritor

REVISITANDO UM MITO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A simplicidade de Oscar Niemeyer era contagiante. Fez-me pegar a caneta como eu gosto e me habituei e passar a escrever ao sabor da emoção. Ateu, mas tão socialista na oferta como Francisco de Assis. Agnóstico, mas tão sábio quanto Agostinho. Reconhecido mundialmente no traço e no poder do concreto quanto Paulo nas planetárias epistolas: lógico e conciso. Tão comunista quanto cristão na concepção arquitetônica de igrejas e capelas pelo Brasil afora. Humilde, acessível e carismático tanto quanto João Paulo II na arte de conquistar o povo de Deus pelo olhar de plenitude e fragilidade. Niemeyer foi maior que qualquer rei do rock, do rap, dos ricaços de qualquer conglomerado empresarial neste país. Isso tudo porque foi um simples, que viveu, amou, se divertiu e se deu a respeito. Nunca ninguém leu o seu nome envolvido em falcatruas em meio a tantas criações e obras em governos mil.
Limpo e feliz, criativo e dedicado, suavizou o concreto e até a morte, nunca dela falando, mesmo a vida se esvaindo. Inspirou-se no mestre Le Corbusier. Brasília, de parceria com Lúcio Costa, ele foi o cara e o coroa quando expirou aos 104 anos. Postava- se tímido, fumante (vejam só), gostava do romance, mas na arquitetura era instintivo. Falava em Deus, mas não acreditava em religião. Já li esse fato em entrevista que concedeu. Claro que foi maior que sua arte. Falava em céu, firmamento, estrelas, tudo criado pelo Supremo Arquiteto do Universo, enquanto ele era “o maior arquiteto do Brasil e um dos melhores do mundo”. Neste último conceito o seu estilo foi inimitável, único e incomparável.
Oscar Niemeyer possuía o dom de viver, daí a longevidade: sem ostensividade, vaidade ou vã glória. Laureado em todo o mundo, mas avesso às homenagens. Quando se sentiu ameaçado no regime militar autoexilou-se em Paris. Não conspirou, não ameaçou nem foi terrorista. Apenas, confiava no comunismo como na sua arquitetura. Ficará conhecido e perenizado pela arte e não pela crença política. Mesmo assim, dava-se a respeito, mais do que muitos que a professaram. Sua morte foi lamentada em todo mundo. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Israel, Espanha entre outros países, ele deixou um legado de obras cativantes, admiradas pela tipicidade e a “curva livre e sensual das suas linhas”.
Mas, a chama inapagável de Niemeyer não se notabilizou tão somente no milagre que esculpiu com a linha reta embelezando as curvas de tantas edificações. Embora centenas, todavia, dezenas de suas criações ao vivo ou a cores pela TV e fotos eu já admirava. Fui, exatamente, me emocionar com a simplicidade cósmica desse personagem. Famoso, rico honestamente – frise-se – no entanto, pacífico, modesto, recatado, ciente de sua transitoriedade. Enfim, um cristão sem reza, oração, igreja ou templo. Um pintor de arcos voltaicos, de auroras boreais, de crepúsculos planaltinos, de galáxias estelares, com um pincel singelo, a pobreza de um proletário, revolucionário, vidente, vermelho mas suave no canto e na voz. Uma personalidade marcante para não ser esquecida que tinha no crayon o sentimento do mundo, apesar da “vida ser um sopro”, como dizia.

(*) Escritor

08/10/2019


A cana de Graça (I)

O título parece engraçado. E foi proposital, apenas para tentar suavizar uma página trágica da nossa história política e literária, que, na esteira dos artigos das semanas anteriores (“Dostoiévski e o seu cárcere” e “Wilde no cárcere”), conto agora: a prisão de Graciliano Ramos (1892-1953).
Graciliano nasceu na pequenina Quebrangulo, no estado de Alagoas, em 1892. O pai era comerciante, classe média nordestina, e Graciliano era o primeiro de mais de uma dezena de irmãos. Jovem, perambulou pelo Nordeste. Foi parar no Rio de Janeiro, onde ingressou no jornalismo. Voltou às Alagoas. Em 1927, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios. Dizem que não foi um bom administrador. Renunciou em 1930. Foi morar em Maceió, capital do estado. Foi preso – injustamente, registre-se logo – em 1936. Um ano de cárcere. Depois do padecimento da prisão, nunca mais voltou à sua terra natal. Além de jornalismo e política (até como militante comunista), fez muita literatura. Crônicas, contos, memórias e romances. De fato, ele foi um dos mais importantes contadores de estórias dessa terra boa, mas sofrida, que chamamos de Nordeste, ao lado de gente como José Américo de Almeida (1887-1980), José Lins do Rego (1901-1957), Raquel de Queiroz (1910-2003) e Jorge Amado (1912-2001). “Caetés” (1933), “São Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas Secas” (1938), esta talvez sua mais badalada obra, estão aí para comprovar. Graciliano faleceu no Rio de Janeiro, com 60 anos de idade. O ano era 1953.
Como já dito acima, Graciliano Ramos foi “em cana” em 1935. Uma prisão gratuita e, claro, injusta. As tais “atividades extremistas”, alegadas como motivos para a sua prisão, pelo governo de Getúlio Vargas (1882-1954), nunca existiram. Como relata Dênis de Moraes, na excelente biografia “Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos” (originalmente de 1992, editora José Olympio), à época, sequer comunista Graciliano era. E ele até criticou o levante de então, a tal Intentona Comunista de 1935. Na verdade, ele foi preso sem processo, sem uma culpa formada e sem sequer ser previamente ouvido.
Nem mesmo foi Graciliano vítima de um erro, com queriam fazer acreditar alguns, para minimizar a culpa de outros ou as suas próprias. Como diz Nélson Werneck Sodré, em prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (uma publicação da Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes), “é falso o que sustentam alguns, que Graciliano Ramos foi submetido a tudo isso em virtude de um tremendo, de um profundo, de um lamentável equívoco. Nada disso. Era a ele mesmo que se pretendia ferir. Desde o primeiro ato do drama que foi forçado a viver, tudo foi cuidadosamente pensado, premeditado, claro e absolutamente intencional: a prisão arbitrária, a promiscuidade com os ladrões e assassinos, a viagem no porão, a ida para a Colônia Correicional, a ausência de processo”.
Coincidentemente, por estes dias, numa surrada revista que guardei – não sei o porquê, e certamente não foi para escrever este artigo 27 anos depois –, achei uma excelente definição do acontecido. “A carta: política & informação”, semanário que se dizia “a revista do Nordeste”. Certamente não mais circula. Mas na edição que tenho, de 24 de outubro de 1992, ano VII, nº 299, que comemorava o centenário do nascimento de Graciliano, lê-se: “Foi uma prisão gratuita, apenas com o sentido de perseguir um homem de ideias liberais que pregava contra os desmandos do governo de então. Suas ‘atividades extremistas’ não passavam de uma posição contrária ao governo de Vargas, que na sua opinião não se coadunava com as necessidades do povo brasileiro nem tomava o caminho de uma política condizente com o Brasil de então. Foi preso quando exercia o cargo de diretor da Instrução Pública e não se tinha nenhum conhecimento de atividades subversivas de sua parte. Mesmo assim, (…), foi encarcerado junto a marginais que se misturavam com políticos, literatos e homens públicos, presos apenas pelo crime de não rezarem pela cartilha do governo”.
Graciliano foi, sim, vítima de perseguição política e de ignomínia do poder de então. Foi quase um ano de infortúnio, de abandono e de angústia, largado em masmorras como se uma fera fosse. Mas ele não perdeu a sensibilidade, mesmo em meio àquela gente bruta, mil vezes mais bruta que a gente do sertão de “Vidas Secas”. Assim como a cachorra Baleia, desse que é o mais famoso dos romances de Graciliano, mesmo ao ser “sacrificado”, por suspeita de subversão, Graciliano ainda enxergava o “céu dos cachorros, cheio de preás”.
E foi ainda “em cana” que o grande alagoano imaginou as suas “Memórias do Cárcere”, para narrar as aventuras e os dramas, as suas e as de seus companheiros, pelos presídios do Brasil afora. E haveria Graciliano, como ninguém mais na história da nossa literatura, de penetrar na alma desses companheiros, “de sentir suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos”, segundo ele mesmo diz. “Memórias do Cárcere”, entretanto, só foi concluído anos depois. E restou como obra póstuma, publicada no ano de 1953, na Rio de Janeiro de sua adoção.
Sobre essas “Memórias”, especificamente, nós conversaremos na semana que vem. Rogo apenas um tico de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

04/10/2019

MEMÓRIA VIVA




03/10/2019


Marcelo Alves
ublicado antes de ontem, dia 29 de setembro de 2019, no jornal Tribuna do Norte (de Natal/RN):
Wilde no cárcere
Na semana passada, conversamos aqui sobre a experiência pessoal e literária de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) com o cárcere. Esse tipo de experiência e de posterior narrativa, entretanto, não é uma exclusividade do grande romancista russo. Pondo angústia e sofrimento no papel, outros grandes escritores também se permitiram retratar a realidade das masmorras, em seus aspectos visíveis e recônditos, nas quais são recolhidos, para cumprimento de duras penas, os que supostamente afrontam as leis penais.
Um desses grandes escritores, dos mais badalados, foi o irlandês Oscar Wilde (1854-1900), o autor do romance “The Picture of Dorian Gray” (1890) e da série de comédias teatrais “Lady Windermere’s Fan” (1892), “A Woman of No Importance” (1893), “An Ideal Husband” (1895) e “The Importance of Being Earnest” (1895).
Por mais incrível que isso pareça hoje – pelo menos para nós, minimamente civilizados –, Oscar Wilde foi processado e condenado, em 1895, na Inglaterra, pelo “crime” de homossexualismo. Wilde mantinha, desde pelo menos 1891, uma relação homossexual com Lord Alfred Douglas, o Bosie, alegadamente o grande amor de sua vida, apesar do seu casamento com Constance Lloyd, com quem teve dois filhos. Em 1895, o escritor tomou a insensata decisão de processar criminalmente o pai de Bosie, o Marquess of Queensberry, por crime contra a honra, dando início a uma série de eventos que levariam ao seu próprio julgamento por homossexualismo. O Marquês estava preparado. Vasculhou a vida íntima do escritor. Reuniu provas contundentes em sua defesa e foi absolvido à unanimidade. Kafkamente, como resultado, Wilde foi levado à prisão, com fundamento nas provas produzidas em seu desfavor no julgamento do Marquess of Queensberry. Preso por um mês, antes mesmo do seu próprio julgamento, ele teve a insolvência civil declarada. Já no banco dos réus e abandonado por Bosie, Wilde foi pego em mentiras e teve a vida ainda mais exposta. O veredicto: culpado. Pena: 2 anos de prisão, com trabalhos forçados.
Assim, em maio de 1895, Wilde é novamente preso. Após uma sucessão de transferências, finalmente chega à prisão de Reading, cidade no sudeste da Inglaterra, que se torna o cenário de sua “Ballad”. Por mais limpa e perfeita que seja em sua organização – e imagino que a prisão de Reading fosse bem melhor que a prisão siberiana de Dostoiévski –, qualquer prisão, da Ilha do Diabo às penitenciárias brasileiras, é sempre terrível. Mas acredito que a solidão do cárcere ou a promiscuidade que ali gracejam sejam muito mais dolorosas para homens sensíveis como Wilde, que, em sociedade, personificava, quase à perfeição, a figura do dândi. As humilhações pelas quais Wilde passou, o horror da prisão em si, por ele depois descritas, podemos bem imaginar. Ele ficou preso em Reading Gaol, hoje chamada HM Prison Reading, até 1897.
Ainda em Reading Gaol, Wilde escreveu uma longuíssima e tocante carta ao seu amante, o Bosie. Nela, ele relembra o caso de amor e suas experiências de condenado. O tom é de lamento e ataque. Em 1905, foi publicada uma versão reduzida dessa carta com o título “De Profundis”. Em 1949, apareceu uma nova versão com partes inéditas. E, finalmente, em 1962, a versão original revisada foi publicada, conforme nos informa A. Norman Jaffares, no “O’Brien Pocket History of Irish Writers: from Swift to Heaney” (de 1997).
Uma vez libertado, Wilde foi viver na França, autoexilado. Ali, em Berneval-le-Grand, cidadezinha da Normandia, ele escreveu o célebre poema “The Ballad of Reading Gaol” (“A balada da prisão de Reading”). A balada – denominação que se dá a certo tipo de composição musical ou poética – tem como ponto de partida a execução de um tal Charles Wooldridge, acontecida em 1896, quando Wilde estava encarcerado em Reading Gaol. Wooldridge, um militar, foi condenado à morte por haver brutalmente assassinado a própria mulher. O enforcado tinha 30 anos quando cumprida a sentença. Para além do testemunho, Wilde amplia o sentido da sua narrativa, para simbolizar a situação de todos os prisioneiros, mas não para criticar a justiça das decisões que os condenaram, e sim para mostrar, como “advogado” de uma reforma penal, a brutalização da punição do condenado à morte e de todos aqueles ali aprisionados e esquecidos. O verso autoaplicável “cada homem mata as coisas que ama” restou célebre.
Antes de terminar, quero fazer uma comparação. A reação mental e intelectual de Oscar Wilde ao martírio da prisão foi bem diversa da de Dostoiévski (vide o artigo da semana passada). Liberto em 1897, para a outrora celebridade londrina, agora falido e humilhado, sem contato com os filhos, restou o autoexílio do outro lado do canal. As habitações na França não eram as melhores; as roupas, também não. Wilde viveu sob o pseudônimo de Sebastian Melmoth. E, sobretudo, a sua produção literária tornou-se escassa.
Em 1900, com apenas 46 anos, convertido ao catolicismo, ele morreu de meningite, talvez causada pela sífilis. Certamente, agravada pela depressão e pelo alcoolismo. No Cemitério de Père Lachaise, em Paris, ainda hoje ele está preso nesse exílio.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP