09/07/2019




Meio século da seca de 1969/1970
Tomislav R. Femenick – Mestre em economia, com extensão em sociologia.
Do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Reportagem recente deste jornal diz que três municípios do Estado estão em situação de calamidade hídrica. Outros 94 sofrem rodízio de abastecimento de água. Em outras palavras, o fantasma da seca continua a nos assustar. Mesmo as pessoas que vivem nas regiões que são afetadas pelos longos períodos de estiagem e aquelas que hoje estão, mal ou bem, protegidas pelos sistemas de poços profundos, cisternas, caminhões pipas ou adutoras, não sentem as agruras de antigamente.
Há meio século o Rio Grande do Norte sofreu um longo período de estiagem, que começou a se manifestar em 1967, quando as chuvas foram fraquíssimas, embora vez por outra surgissem tênues indícios que poderiam chegar; mais não chegaram. O problema se agravou até que, em 1970, aconteceu o clímax da falta de chuvas, trazendo sede, fome, terror e morte, principalmente nas zonas oeste e central. Nada menos de 131, dos 150 municípios então existentes no Rio Grande do Norte, foram incluídos entre os que receberam assistência com o envio de alimentos para a população.
Em Mossoró, a maior cidade do interior, 600 flagelados saquearam o Mercado Central e cerca de 30 pessoas morreram, em consequência da subnutrição. Para atenuar o problema, Departamento Nacional de Estradas de Rodagem abriu duas frentes de trabalho, ocupando oito mil homens nas rodovias Mossoró-Baraúnas e Mossoró-Luís Gomes. No primeiro dia de alistamento, não menos de mil flagelados se apresentaram.
A cidade de Assú, que lidera um vale de condições propiciadora à agricultura, sofreu a invasão de grupos de pessoas famintas, por três vezes seguidas. Os manifestantes, que solicitavam alimentação, se postados em frente à prefeitura, que distribuiu farinha, feijão, arroz e açúcar. Na região central do Estado, quatrocentos flagelados invadiram a cidade de Santana do Matos, e tentaram saquear o comércio. Alimentos da Caritas (órgão da igreja católica) foi destinado para amenizar a situação.
Em Apodi, a exemplo do que ocorreu no ano anterior, quando quase quinhentas famílias invadiram a cidade e exigiram comida e trabalho. Repetia-se a situação de calamidade provocada pela seca: sem condições de plantio e sem pastagem para o gado, a população do campo se dirigiu para a cidade e ameaçava saquear o comercio de produtos alimentícios. Trinta caminhões partiram de Natal para aquela cidade, com oitocentas toneladas de gêneros doados pelo programa “Alimentos para a Paz”, dos Estados Unidos, para serem distribuídos na região.
Pau dos Ferros foi invadida duas vezes. Na primeira, cerca de quatrocentos homens pediam à prefeitura abertura de frentes de serviço. Na segunda, o ataque atingiu proporções maiores, pois os flagelados acabaram com a feira semanal que ali se realizava, efetuando saques às bancas de mercearias. Novamente alimentos distribuídos pela Caritas minimizaram o problema.
 Em Patu quase duzentas pessoas famintas entraram na cidade solicitando trabalho e alimentação e saquearam algumas casas comerciais. A polícia foi solicitada para conter os manifestantes e afastar os aproveitadores. A prefeitura fez doação de farinha e algumas dezenas de rapaduras aos flagelados. A prefeitura, não tendo condições de contornar a situação, solicitou ajuda ao governo estadual. Em Almino Afonso quase duas centenas de camponeses invadiram a cidade, também reclamando por alimento e trabalho.
O então prefeito de Martins dizia que o número de mortes em sua cidade era tão grande que os sinos da igreja não tocam mais sinal (toque lento de sinos, geralmente fúnebre), só repiques (toque acelerado de sinos, indicativo de alarme). Em maior ou menor grau, também foram afetados pela seca os municípios de Campo Grande (então Augusto Severo), Caraúbas, Carnaubais, Felipe Guerra, Governador Dix-sept Rosado, Grossos, Itaú, Janduís, Marcelino Vieira, Pendências, Riacho da Cruz, São José do Mipibu, São Migue, Severiano Melo, Tabuleiro Grande, Umarizal e Upanema.
Todos esses relatos da estiagem foram retirados de reportagens que na época publiques nos jornais Diário de Natal, Diário de Pernambuco e O Povo. Muitos dos fatos presenciei: a invasão do Mercado Central de Mossoró, as correrias nas ruas de Assú, a polícia querendo conter os flagelados etc. Em Apodi chorei, quando vi uma criança morrer de fome nos braços de sua mãe, porque já não tinha força para ingerir o leite que comprei para ela.

Tribuna do Norte. Natal, 07 jul. 2019

05/07/2019



COMO CRIAR UMA DIOCESE: FÉ E ASTÚCIA
Tomislav R. Femenick – Mestre em economia com extensão em sociologia. Do Instituto Histórico e Geográfico do RN

O Monsenhor Luiz Ferreira Cunha da Mota, ou simplesmente Padre Mota, foi prefeito de Mossoró por quase dez anos consecutivos e vigário geral da diocese por mais de vinte e cinco anos. Ordenado em Roma – numa época em que isso era raro – se destacou como sacerdote, educador, político e administrador. Porém sua maior atuação foi como Vigário da Diocese de Santa Luzia. O grande trabalho do Padre Mota foi a criação da Diocese de Mossoró. Meses após tomar posse como vigário da Paróquia (em janeiro de 1926), o Padre promoveu uma reunião, na sacristia da Capela do Sagrado Coração de Jesus, com um número reduzido de pessoas. Além do Cônego Ramalho, do Padre Mota e seu pai, o Cel. Vicente Ferreira da Mota, apenas o comerciante e industrial Miguel Faustino do Monte. O motivo da reunião: a criação da Diocese de Mossoró. Miguel Faustino ficou encarregado de levantar o assunto junto à Arquidiocese de Natal, a qual a Paróquia de Mossoró estava subordinada; o Cel. Mota junto às autoridades, comerciantes e industriais da região; o Padre Mota e o Cônego Ramalho, se encarregariam de arregimentar apoio entre os outros elementos do clero. Entretanto tudo isso deveria ser tratado com absoluto sigilo, para não melindrar as autoridades eclesiásticas da capital. Se houvesse dúvidas quanto à capacidade de alguém guardar o segredo, poder-se-ia recorrer ao sigilo confessional – os leigos pedindo para se confessar; os Padres pedindo para confessar os leigos que viessem a se integrar no movimento. Anos depois, o já Monsenhor Mota reconheceu: “Foi um recurso maquiavélico, mas a causa era nobre e divina”. O primeiro passo foi dado por Miguel Faustino junto ao arcebispo de Natal, Dom Marcolino Dantas. Em uma conversa informal, disse ao prelado que estaria disposto a fazer uma generosa contribuição, quando fosse oportuno transformar a Paróquia de Mossoró em uma Diocese. Essa contribuição visaria a formar a sua estrutura material, para que ela pudesse funcionar sem os percalços e atropelos, próprios de uma nova entidade dessa natureza. O Cel. Mota formou uma comissão ad hoc da qual participaram Rodolfo Fernandes (que logo em seguida, teve que se afastar por motivo de saúde), Jerônimo Rosado, Raimundo Juvino, Rafael Fernandes Gurjão (futuro interventor do Estado, de 1935 a 1943) e outros. Segundo o próprio Padre Mota, dos que foram citados, apenas Raimundo Juvino teve que ser confessado, para guardar o segredo. O trabalho dos sacerdotes Luiz Mota e Amâncio Ramalho foi trazer para a ideia os clérigos que atuavam em outras paróquias da região. Alguns reverendos pensavam que o movimento poderia se transformar em um processo pela elevação do cônego ou do padre à condição de bispo. A solução: tantas confissões quando necessárias foram. Muito embora legítimo e de certo ponto até necessário, todo esse trabalho foi realizado em segredo, visando fazer com que a iniciativa da organização da nova Diocese partisse da Arquidiocese de Natal, a quem a Paróquia de Mossoró estava subordinada. Foi uma luta difícil, mas que mereceu ser batalhada. Havia muitos obstáculos a serem transpostos, que terminaram por ser vencidos, pois aquelas pessoas que sonhavam com uma Diocese para Mossoró eram soldados experimentados em outras batalhas. Os esforços de Padre Mota, do cônego Amâncio Ramalho e de outras pessoas (principalmente de Dom Marcolino Dantas), venceram as adversidades econômicas e políticas e surtiram efeito. Apenas Jerônimo Rosado, que faleceu no dia 25 de dezembro de 1930, não chegou a ver realizado aquele sonho. No dia 14.09.1934, o Padre Mota recebeu um telegrama de Dom Marcolino comunicando a criação da Diocese de Mossoró, através de uma bula papal emitida por Pio XI, datada de 28 de julho. Segundo Monsenhor Sales, “imediatamente, mandou repicar todos os sinos das igrejas da cidade e soltas girândolas de foguetões como uma demonstração patente do seu júbilo”. No dia 18 de novembro do mesmo ano, por deferência especial de Dom Marcolino Dantas, o Padre Mota presidiu o ato inaugural da nova diocese, pela qual tanto lutara. A reunião teve lugar na Catedral de Santa Luzia. O próprio Padre Mota fez o assento do acontecimento, no 4º Livro de Tombo da sua Igreja Matriz. Tribuna do Norte. Natal, 27 jun. 2019.

04/07/2019

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RN IHGRN <ihgrn.comunicacao2017@gmail.com>

Caros  confrades e confreiras,

Será amanhã, 05/07/2019 a Assembleia Geral Ordinária para a "Apreciação do Relatório de Gestão e Demonstração Contábil da Diretoria, exercício de 2018", conforme já comunicado a todos.
O EDITAL DE CONVOCAÇÃO foi publicado no Diário Oficial do Estado, edição número 14.440 do dia 25 de junho de 2019.
Rogamos o comparecimento de todos, para apreciarem as referidas contas.
Na certeza de um pronto atendimento, subscrevemo-nos,

A DIRETORIA


03/07/2019

Caçador de histórias

03/07/2019

Gustavo Sobral usa seu faro investigativo para remexer cartas, postais, rascunhos de textos, anotações em livros, manuscritos, papéis e mais papéis em busca de informações novas sobre importantes escritores e intelectuais potiguares, um deles é Oswaldo Lamartine [clique aqui para baixar o livro sobre a obra completa], a mais extensa de todas, que já toma um ano de pesquisa; Zila Mamede, cujo ensaio está pronto; Berilo Wanderley, obra que sairá em breve pelo selo Caravela Cultural; e Newton Navarro (contos inéditos reunidos).

Não importa onde esses documentos estejam, ele corre atrás, com determinação e curiosidade. Uma curiosidade que o retroalimenta. Que o faz partir de uma missão para outra, ou mesmo trabalhar em paralelo, em várias biografias ao mesmo tempo.

A determinação fez esse natalense, com formação em Jornalismo e Direito, ir a São Paulo se debruçar em documentos ainda não explorados na biblioteca do maior bibliófilo do país, José Mindlin. Lá, teve contato com a correspondência trocada entre Mindlin e a poeta potiguar Zila Mamede. Do que encontrou, foi atrás do acervo de Carlos Drumond de Andrade, outro que trocou cartas com Zila.


Da pesquisa sobre toda essa correspondência, ele escreveu um ensaio sobre a autora potiguar.
Parte já foi publicado na revista da Academia Norte-rio-grandense de Letras deste ano. Mas o texto inteiro, ainda espera para um momento certo de ser lançado em livro.



Em meio à pesquisa sobre Zila, aproveitando a estadia no Rio de Janeiro, Gustavo visitou o Instituto Moreira Sales, responsável por guardar vários acervos de importantes escritores brasileiros, dentre os quais Millor Fernandes, Paulo Mendes Campos e Rachel de Queiroz.


Foi nos documentos de Queiroz que Gustavo fez outra descoberta. A escritora cearense, autora do clássico “O Quinze”, trocou cartas com o escritor Oswaldo Lamartine (1919-2007). Na correspondência fica claro a importância de Oswaldo na construção de outro importante romance de Queiroz, “Memorial de Maria Moura”, publicado em 1992.

Ambientado no sertão nordestino e com uma espécie de cangaceira como protagonista, Rachel fez uso dos conhecimentos de Lamartine para escrever. “Ela tinha uns amigos que serviam como consultores, mas com o aprofundamento dos termos, eles disseram que não podiam mais ajudar e sugeriram o nome de Oswaldo Lamartine”, explica Gustavo, que, além de um texto em que Rachel faz elogios a Oswaldo, busca mais detalhes sobre o encontro entre os dois.

“Oswaldo desenhava muito, explicava a vestimenta do vaqueiro, com ilustrações, faz isso como recurso informativo. Essas ilustrações, essa troca de informações existe no acervo de Raquel de Queiroz. Pude consultar isso. Mas pode ser que ainda existam mais, porque o acervo de Rachel ainda não está todo catalogado”, detalha o autor.

Ainda investigando a vida de Oswaldo Lamartine, Gustavo também detalhou a relação do potiguar com outra mulher membro da Academia Brasileira de Letras, a também cearense Natercia Campos. Diferente de Rachel, Natércia não era sertaneja, mas era uma grande pesquisadora. Depois de ler a obra de Lamartine, escreveu para ele em busca de mais conhecimentos sobre o sertão para compor seu romance “A Casa”.

TRECHO
Rachel de Queiroz sobre Oswaldo Lamartine

“Conheci Oswaldo Lamartine quando começava a escrever o Memorial de Maria Moura, no início de 1990. E eis que surge aquele anjo magro, só querendo falar de coisas que ambos gostávamos – quer dizer de sertão. Hoje meu amigo, meu irmão, Oswaldo Lamartine. Acho que, no Brasil, ninguém entende mais do sertão e do nordeste do que Oswaldo”, escreveu Raquel de Queiroz em um dos documentos encontrados por Gustavo no acervo sob a guarda do Instituto Moreira Sales.

O mesmo que fez com Rachel, servir como grande colaborador sobre a linguagem e vivência sertaneja, Oswaldo fez com Natércia. E, de acordo com Gustavo, Oswaldo, já viúvo, ainda chegou a manter um namoro com a cearense.

Dentro da pesquisa sobre Lamartine, Gustavo vê alguns problemas que estão atrapalhando a finalização do trabalho, a ser lançado em livro, mas sem prazo e sem editora confirmada. “É impossível localizar a obra completa de Oswaldo Lamartine no Rio Grande do Norte. No futuro as pessoas vão saber que ele escreveu um livro, mas não terão como lê-lo. Nenhuma biblioteca pública do Estado possui a obra completa de dele. Não tem como terminar um livro sobre o autor sem conhecer toda sua obra”, comenta.

Para ler a biografia da obra de Oswaldo acesse O sertão de Oswaldo Lamartine de Faria
Para ler o ensaio sobre a correspondência de Zila Mamede acesse  Ensaio Zila Mamede


Para ler esse e outros escritos acesse www.gustavosobral.com.br
_________________

01/07/2019


UMA MANHÃ DE SÁBADO – Berilo de Castro




UMA MANHÃ DE SÁBADO –
Sábado, do mês de São João. Céu claro, manhã bonita e convidativa para um bom passeio, quem sabe, um encontro para um animado papo.
Dirijo-me até o Centro da cidade, onde poucos circulam e poucos compram. Vejo, com tristeza, o desprezo como são tratadas as suas ruas, suas praças e suas calçadas. Lamentável!
Dou uma caminhada pela Avenida Rio Branco, palco maior do comércio da cidade. Paro na antiga loja de venda de instrumentos musicais – Casa da Música, de Gumercindo Saraiva (1915-1988), hoje sede do melhor e mais diversificado Sebo da cidade – o Sebo Vermelho, de Abimael Silva, ponto de encontro de poetas, escritores e bons leitores da cidade.
Para alegria maior, me deparo com a grande figura do amigo, Castilho, exímio desenhista, ex-atleta (goleiro) do América F. C. da década de 1950, boêmio e literato dos bons.
Boa conversa, boas recordações da infância, quando morávamos na rua Professor Zuza, Centro. Lembranças inesquecíveis dos seus moradores. Castilho conhece tudo e descreve com mínimos detalhes: suas casas e seus costumes.
Conta que, certa vez, acompanhado do poeta Nei Leandro, fizeram uma sumária varredura de casa em casa, relembrando os seus antigos moradores e de suas fantásticas histórias.
Em certo momento da boa conversa, chega uma figura desconhecida conduzindo um violão. e, sem muita conversa e sem muito escutar, senta na entrada do Sebo e começa a tocar e a cantar desafinado que só vendo, o que em nada agradou a Abimael e a todos que resenhavam. Ao terminar, pergunta por Gumercindo Saraiva e se tem corda de violão para vender, pois está precisando trocar duas cordas danificadas. Respondemos que Gumercindo estava de recesso eterno.
– Que pena! Que volte logo! Lamentou o seresteiro diurno; e saiu arrastando a sandália e a viola.
Discutimos e relembramos ainda o bom, barato e autêntico futebol potiguar das décadas de 50 e 60; os bons autores e suas obras primas. Comentamos sobre o inesquecível jornalista, escritor, cronista social e esportivo, locutor esportivo, compositor, brigão e cardisplicente: o gordo e sudorético pernambucano, Antonio Maria.
Foi uma bela manhã de sábado!
Grandes e pequenos crimes
As estatísticas da criminalidade estão aí. Entre nós, de fato, a coisa não vai bem. Por exemplo, no “Atlas da Violência”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, eu constatei que, no Brasil, só em 2017, foram 65.602 homicídios. E a solução para minorar esse gravíssimo problema, podem ter certeza, não é armar a minha tia Neusa ou o padeiro da esquina com uma pistola automática.
Mas isso – a questão de armar ou não a população contra a criminalidade – é outra história.
Fiz essa pequena introdução para tratar de outra questão: a curiosidade do público pelos tipos e atos criminosos, que no Brasil existem em abundância, e como isso acaba virando literatura.
Na verdade, como registra Enrico Ferri (1856-1929), em seu “Os criminosos na arte e na literatura” (Ricardo Lenz Editor, 2001), “na vida, com efeito, o subsolo da criminalidade é constituído pelo inumerável pulular daquilo que se poderia chamar os micróbios do mundo do crime. Ao contrário dos micróbios do mundo biológico, aqueles passariam desconhecidos e anônimos, e suas aparições, desaparições e reaparições rápidas, sob a lente opaca das audiências do tribunal de polícia ou entre os muros mais ou menos úmidos dos calabouços, não deixariam qualquer traço, se a estatística os esquecesse”.
Entretanto, vez por outra, anota o mesmo Ferri, entre esse amontoado de pequenos delitos cotidianos “sobressaem as fisionomias monstruosas ou loucas e, por vezes, geniais que, tornadas populares e minunciosamente descritas pela imprensa cotidiana e pela crônica judiciária, são definitivamente fixadas pela fantasia de um artista num drama, num romance ou num melodrama”.
Esse tipos e atos criminosos, tidos por “geniais”, ganham primeiro as páginas dos jornais, outrora impressos, hoje televisados ou digitais. Houve um tempo – e eu sou desse tempo – em que as páginas policiais dos nossos impressos, entre os quais esta Tribuna do Norte, eram as mais “desejadas” pelo público ávido de sensação. Era a crônica da cidade, das delegacias e dos tribunais, que ganhava, com a sucessão de dias, quase a forma de folhetim.
Houve até quem fizesse disso – da crônica jornalística policial – grande literatura. Truman Capote (1924-1984), com o seu “A Sangue Frio” (“In Cold Blood”, 1966), que descreve o assassinato de uma família no interior do estado do Kansas, nos Estados Unidos da América, é um exemplo disso. E sobre esse Capote, qualquer dia, conversaremos aqui.
De toda sorte, afastando-se da crônica jornalística policial – que supõe-se estar em consonância com a “verdade” dos fatos –, esses tipos e atos criminosos, que fogem do vulgar, de tão “bons”, acabam ganhando, para a posteridade, os traços e as cores da ficção. Esses crimes, desde sempre atrozes, mas agora sentimentalmente aperfeiçoados, acabam destinados à imortalidade na grande arte de um grande autor. Outrora nos tão adorados folhetins (vide o caso de Émile Gaboriau, sobre quem escrevi no domingo passado). Depois em romances de fôlego ou peças de teatro.
Na ficção policial – e, até mais especificamente, na ficção forense –, de fato, muito comumente, a arte imita a vida. Eu já até tratei disso aqui, falando da queridíssima Agatha Christie (1890-1976), que, para escrever algumas das suas mais badaladas obras – vide os casos do romance “Murder on the Orient Express” (de 1934) e da peça “The Mousetrap” (premiere em 1952) –, teve por inspiração, ao menos como pano de fundo dos seus enredos, crimes de fato ocorridos.
De toda sorte, para encerrar o dia de hoje, tiro ainda duas conclusões. Mesmo no crime, se você quer ser famoso, é preciso ser grande. Crimes e privações as mais diversas restam ignoradas do grande público, ante a desatenção geral para as coisas miúdas, no velocíssimo ritmo da vida cotidiana. A história dos pequenos crimes e dos pequenos criminosos, até nisso relegados na vida, cai invariavelmente no esquecimento. Já os grandes crimes e os grandes dramas judiciários são “todo-poderosos sobre a imaginação e sobre os sentimentos do povo”, como descreve poeticamente o grande Enrico Ferri. Eles excitam a curiosidade pública, revivendo na massa (leitores ou não), mesmo que inconscientemente, lembranças hereditárias de instintos criminais, violências individuais ou coletivas das quais o ser humano é capaz, que hoje apenas disfarçamos com um ligeiro verniz esfumaçado de civilização.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP






O casarão construído por Luís Cúrcio Marinho entre 1948-1949,
na Rua João Pessoa, centro de Macaíba e que,
foi repassado ao comerciante Cícero Luís e Silva,
começou a ser demolido hoje, dia 24 de junho de 2019.
Macaíba perde parte da sua memória histórica
arquitetônica para a especulação imobiliária.

MEMÓRIA DEMOLIDA
Por Carlos Roberto de Miranda Gomes, da AML

            Para as pessoas de mais idade, a demolição de uma obra tradicional representa um golpe na memória, porque altera não apenas a geografia física do lugar, mas igualmente a sentimental.
            Senti isso no sábado retrasado quando resolvi visitar a Galeria B-612, na tradicional rua Dr. Barata, quase toda destruída pelo descaso, representando um oásis no oceano do esquecimento dos anos famosos entre 1942 e 1945.
            O fato repetiu-se neste último sábado, quando atendi ao chamamento para uma reunião da Academia Macaibense de Letras, outro oásis no pandemônio da desfiguração da cidade das macaibeiras, que já destruíra a casa de Auta de Souza, ameaça o Grupo que tem o seu nome e agora começa a demolir o casarão construído por Luís Cúrio Marinho, que vi ser construído e compareci à inauguração, quando vivia os melhores dias do começo da minha adolescência e gravei aquela construção de cores vivas, aquela primeira da Rua João Pessoa, à esquerda logo que se atravessava a ponte em direção ao centro.
            Essa casa fazia parte da minha vivência naquela terra hospitaleira, quando morei numa velha construção na Rua Pedro Velho, defronte ao Major Andrade, perto dos Maciel, dos Leiros, dos Fagundes e dos Marinho, do Cine Independência e do antigo Pax, que ostentava um belíssimo quadro do balão de Augusto Severo, que um dia alguém tocou fogo como coisa velha.
            Na minha antiga morada, desfigurada arquitetonicamente, ainda restam os dois janelões no alto onde vislumbrava a rua e assistia à passagem de pessoas feridas, carregadas em cadeiras, para o hospital que ficava bem perto, logo depois da Igreja dos Crentes, prédios que ainda estão de pé, mas com destinação diferente.
            A feira livre ainda funciona na mesma rua, mas também desfigurada, em menor extensão, sem o encantamento dos vendedores/cantadores de cordéis e dos animais de cargas que, na época do cio, desembestavam derramando os produtos que levavam para a venda. Hoje só automotores. Mesmo assim comprei algumas bananas prata, que me adoçaram a vida neste fim de semana.
            Lembrei do mercado velho, defronte do obelisco de Augusto Severo, com suas árvores que davam sombras refrescantes, parada dos ônibus que traziam os jornais e os meus gibis, da passagem dos “mixtos” tocando nas buzinas as músicas de Luiz Gonzaga, senti falta da festa da padroeira com o pau de sebo e os cordões azul e encarnado. Onde está Padre Chacon, de quem fui coroinha nas procissões. E o meu Cruzeiro jogando no campo vizinho ao cemitério, que tinha algumas partidas interrompidas quando a bola caía no campo santo e ninguém encontrava em tempo dos últimos lampejos do sol (principalmente quando estava se saindo bem contra algum time de fora e este pressionando para a virada).


            Não é mais a Macaíba do meu tempo, nem de outros mais próximos, que curti algumas vezes na companhia da minha inesquecível Therezinha. Está mais adensada fisicamente e mendicante das boas lembranças. De bom mesmo só o resultado da reunião da nossa Academia.
            Voltei triste para o meu exílio de Natal e conversei com ela, contando tudo, inclusive umas lembranças que comprei numa livraria religiosa da rua do Cruz (ou da Cruz?) para marcar a passagem pela terra que me outorgou a cidadania honorária, que muito me orgulha.