17/01/2015


Marcelo Alves
Marcelo Alves



Os precedentes judiciais em uma federação (II)


Na semana passada, conversamos aqui sobre a vinculação vertical ao precedente dentro do sistema judicial federal dos Estados Unidos da América e sobre a mesma vinculação dentro dos limites de um sistema judicial estadual do imenso país. Na ocasião, disse que esses eram aspectos até certo ponto simples do funcionamento da teoria do “stare decisis” no EUA.

Hoje, chegou a hora de tratarmos de um aspecto bem mais complexo da temática: a inter-relação entre o sistema judicial federal e os vários sistemas judiciais estaduais daquele país.

Antes de mais nada, a regra é a independência entre a Justiça Federal e as várias Justiças Estaduais. Se dentro de um mesmo sistema judicial, uma linha clara de autoridade prevalece, devendo a corte inferior seguir o precedente da corte superior, o mesmo não se dá quando se inter-relacionam cortes de sistemas judiciais diversos (uma corte federal e uma corte estadual, é o exemplo disso). Nesse sentido, afirma Jane C. Ginsburg (na obra “Legal Methods”, publicado pela The Fundation Press): “é suficiente observar agora que a decisão tem completo status e efeito de precedente somente na circunscrição da corte que a prolatou”.

Entretanto, a regra da independência, para ser completamente entendida, há de ser encarada tendo-se em mente a existência de um direito federal e de vários direitos estaduais.

Levando-se em conta a existência dessas duas espécies de “direitos”, é seguro afirmar que os tribunais estaduais não estão obrigados pelas decisões das U.S. (Circuit) Courts of Appeal e das U.S. District Courts em matéria de direito não federal. E mesmo no que diz respeito às decisões das U.S. (Circuit) Courts of Appeal e das U.S. District Courts em matéria de direito federal, apesar de certas exceções, prevalece, na maioria dos tribunais estaduais, o entendimento de que também não estão eles vinculados a tais decisões.

É também digno de nota que até mesmo uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos pode não ser obrigatória, por exemplo, para uma corte do Estado de Maryland ou da Florida, ao menos que essa decisão da Suprema Corte cuide de matéria constitucional ou da interpretação da Legislação Federal.



Aqui, representa uma exceção o fato de a Suprema Corte dos Estados Unidos ser, conforme Victoria Sesma (em “El precedente en el common law”, obra já referida no artigo de domingo passado), “o único tribunal federal cujos precedentes podem ser obrigatórios para tribunais dos Estados. Mesmo que se possa encontrar diferentes formulações nas decisões dos tribunais dos EUA a respeito da autoridade dos precedentes da Corte Suprema dos EUA, de fato sua autoridade obrigatória limita-se aos precedentes relativos às questões federais. Quando surge um conflito entre um precedente de um tribunal estadual e um da Corte Suprema a respeito de uma questão federal, o precedente da Corte Suprema é obrigatório. Esta é a razão por que uma decisão da Corte Suprema dos EUA relativa à conformidade das leis estaduais com a Constituição Federal é obrigatória nos tribunais estaduais”.

Frise-se, entretanto, que, a bem da verdade, nestes casos em que existe a obrigatoriedade de seguimento da decisão da Suprema Corte americana, não se tem, propriamente, uma inter-relação entre cortes de dois sistemas judiciais diversos. Como explica William L. Reynolds (no livro “Judicial Process in a nutshell”, publicado pela West Publishing Co.): “a decisão da Supreme Court deve ser seguida pela Maryland Court ao lidar com um problema de direito federal, pois a Maryland Court, no caso, está, de fato, operando dentro do sistema federal”.

Aliás, o fato de uma corte estadual atuar como corte federal não é estranho a nós brasileiros. A nossa Constituição Federal dispõe, expressamente, no art. 109 que: “§ 3º Serão processadas e julgadas na Justiça Estadual, no foro domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela Justiça estadual” e “§ 4º Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau”.



No que tange ao sentido contrário da aplicação do precedente, ou seja, a vinculação ou não das cortes federais aos precedentes das cortes estaduais, a regra, em princípio, é a mesma. É preciso, mais uma vez, ter-se em mente a existência do direito federal e do(s) direito(s) estadual (ais). E mais: como registra Sesma, “de acordo com a doutrina de Erie v. Tompkins, o único common law substantivo é o common law dos Estados. De acordo com isso, os tribunais estaduais são os únicos órgãos que têm o poder de criar o common law de um determinado Estado e interpretar a Constituição e as leis deste Estado. O Tribunal Supremo do Estado resolve de forma final e obrigatória as questões jurídicas do Estado”.

Complicadinho, não?



Marcelo Alves
Marcelo Alves


Os precedentes judiciais em uma federação (III)

Chegamos, hoje, ao final da nossa “saga” sobre a aplicação dos precedentes judiciais nessa gigantesca e forte federação que são os Estados Unidos da América (vide os dois artigos publicados nos dois últimos domingos).

E o primeiro tópico a ser tratado hoje aqui é a inter-relação entre os vários sistemas judiciais estaduais.

Jane C. Ginsburg (na obra “Legal Methods”, já mencionada no artigo anterior), ao cuidar da influência de uma decisão judicial em “jurisdições” diferentes daquela de onde advém esta decisão, pede-nos licença para notar “um tipo de limitação territorial: uma decisão judicial é um precedente no sentido completo da palavra somente dentro do mesmo sistema judicial ou ‘jurisdição’”. Em outras palavras, no que tange à doutrina do precedente, a regra é independência entre as várias “Justiças”, e uma decisão judicial de uma corte superior só é vinculante para as cortes inferiores do seu próprio sistema.

Como exemplo disso, trazido pela mesma Ginsburg, “uma decisão da Suprema Corte da Califórnia é um precedente e é assim obrigatória para futuros casos ‘similares’ no próprio tribunal e em cortes inferiores da Califórnia, mas não é um precedente pleno que transcenda para futuros casos que surgirem nas cortes de Ohio ou Vermont ou de algum outro Estado”.

Todavia, não se pode deixar de lembrar que as decisões de outros Estados, sobretudo das suas “Courts of Ultimate Appelation”, podem ter - e frequentemente têm - forte poder de persuasão. Nesse sentido, como bem arremata Ginsburg: “A Suprema Corte do Tenessee, em apoio a um resultado que alcançou em um caso, pode citar ou mencionar decisões de tribunais de última apelação de Massachusetts, Oregon, Virginia e meia dúzia de outros Estados - até mesmo eventuais decisões da Inglaterra e de outras jurisdições filiadas à tradição do ‘common law’. Tais decisões de outros Estados não são precedentes no sentido pleno, mas devem ser considerados de acordo com o status e o peso de ‘persuasive authority’, o que significa que eles não são ‘vinculantes’ em qualquer sentido, mas podem ter influência, frequentemente, grande influência, em casos em que não haja precedentes locais ou eles sejam conflitantes ou confusos”.

Antes de terminar este conjunto de artigos, algumas palavras são necessárias sobre a vinculação dos tribunais americanos aos seus próprios precedentes (o que chamo de vinculação no plano horizontal).

Diferentemente do que ocorre na Inglaterra (onde se dá uma necessária vinculação às próprias decisões, com a honrosa exceção da United Kingdom Supreme Court, que substituiu a House of Lords como o mais alto tribunal do país), nos Estados Unidos, como regra aceita, nenhum tribunal está estritamente vinculado às suas próprias decisões anteriores. Em outras palavras, contanto que não o façam em descompasso com uma linha de precedente de um tribunal superior (isso é importante ser ressaltado), podem os tribunais americanos decidir em contrário aos seus próprios precedentes.

Uma exposição clássica da doutrina do “stare decisis” nos Estados Unidos, no que tange à vinculação das cortes às suas próprias decisões, pode ser encontrada na decisão da Suprema Corte americana em Hertz v. Woodman 218 US 205 (1910). Nela, o justice Lurton afirmou (apud Victoria Sesma, em “El precedente en el common law”): “A regra do stare decisis, embora recomende a consistência e uniformidade das decisões, não é inflexível. Se deve ou não ser seguida é uma questão totalmente sujeita à discrição do tribunal, que é chamado novamente a considerar uma questão que já foi decidida anteriormente”.

Por fim, para que não haja um falso entendimento da questão, é necessário deixar claro que, apesar de não haver a necessária obediência aos seus próprios precedentes, os tribunais americanos, sobretudo por uma questão de política (busca da estabilidade, da uniformidade etc.), normalmente os têm seguido.

Bom, com este e os dois anteriores artigos, espero que vocês tenham gostado da nossa “viagem” pelo direito dos Estados Unidos da América. Eu gostei de escrevê-los (os artigos). Embora confesse que viajar “de fato” por aquele imenso país tenha sido muito - mas muito mesmo - melhor.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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